domingo, 9 de outubro de 2011

As Mil e Uma Noites (Parte 1)


O REI CHAHRIAR E SEU IRMÃO O REI CHAHZAMAN

Conta-se - mas só Alá sabe tudo - que havia nas dobras do tempo e dos séculos um rei da dinastia dos Sassan que reinava nas ilhas da Índia e da China. E tinha dois filhos: Chahriar e Chahzaman. Ambos eram governantes justos, e seus povos amavam-nos.

Certo dia, Chahriar sentiu irresistível saudade do irmão e enviou seu vizir para convidá-lo.

Chahzaman respondeu: "Ouço e obedeço”.

Fez os preparativos necessários, encarregou o vizir de governar na sua ausência e partiu. No meio do caminho, lembrou-se de que havia esquecido um documento que queria mostrar ao irmão e voltou para apanhá-lo. Ao chegar ao palácio, encontrou a mulher deitada no seu leito imperial com um escravo negro.

Pensou: "Se tais coisas acontecem quando ainda não saí da cidade, qual não será a conduta desta devassa se demorar-me muito tempo no reino de meu irmão?" Sacou da espada, cortou as duas cabeças e retomou viagem.

Mas uma grande tristeza apoderou-se dele. Emagreceu, empalideceu.

Ao vê-lo assim, o irmão preocupou-se e indagou-lhe sobre as causas de sua depressão. Ele não quis contar. Para distraí-lo e diverti-lo, Chahriar organizou uma excursão de caça e um safári, em sua honra. Assim mesmo, no último momento, desculpou-se, e seu irmão saiu sozinho com os convidados.

No palácio do rei, havia janelas que davam para o jardim. O rei Chahzaman olhou através de uma delas e viu vinte escravas saírem do palácio acompanhadas por vinte escravos e dirigirem-se para um açude no meio do jardim. E ficou espantado ao reconhecer no meio do grupo a própria esposa do irmão, a qual, num determinado momento, chamou a si um negro gigante e entregou-se a ele na presença de todos, dando assim sinal para que escravos e escravas se juntassem e imitassem a rainha.

Observando tudo isso, Chahzaman pensou: "Por Alá, minha desgraça é menos pesada que a de meu irmão”.

E, instantaneamente, a alegria voltou-lhe ao coração e as cores às faces pálidas.

Quando Chahriar voltou, alegrou-o ver o irmão recuperado e quis saber a causa de mudança tão repentina. "Posso contar-te a causa de minha depressão, não de meu restabelecimento”, disse Chahzaman. E contou-Ihe o que acontecera entre ele e sua mulher. Mas o irmão queria saber também o segredo de seu restabelecimento e insistiu. Chahzaman acabou por lhe contar o que observara da janela do palácio. - Primeiro, gostaria de ver tudo isso com os próprios olhos, disse Chahriar.

-É fácil, replicou o irmão. Proclama que estás viajando para um país longínquo, sai publicamente da cidade e a ela volta em segredo, e poderás assistir a tudo da janela como fiz.

Imediatamente, o rei encarregou um pregoeiro de anunciar a sua ida numa viagem demorada. Os soldados acompanharam-no e instalaram um campo fora da cidade. O rei entrou em sua tenda e ordenou aos criados que não deixassem entrar pessoa alguma. Depois, disfarçou-se em mercador e, voltando
secretamente ao palácio, pôs-se à janela indicada. Menos de uma hora depois, viu vinte escravas e vinte escravos rodearem a rainha, viu o negro gigante e tudo o que seu irmão lhe descrevera.

O rei quase perdeu a razão e disse ao irmão: "Vamos procurar outro destino pelos caminhos de Alá, pois só teremos direito a voltar a nossos tronos se localizarmos homens mais desgraçados que nós."

Saíram do palácio e viajaram dias e noites até que chegaram a um prado à beira-mar. Naquele prado havia um córrego de água fresca. Os dois irmãos sentaram-se debaixo de uma árvore para beber e descansar. Logo, viram o mar agitar-se e dele sair uma coluna de fumaça negra, e a fumaça transformar-se num gênio de enorme estatura, carregando um cofre. Aproximou-se da árvore, sentou-se e abriu o cofre, e os dois irmãos viram nele uma mulher de grande beleza que lembrava as palavras do poeta:

“Apareceu na noite e transformou-a em dia”.

E os viajantes se orientaram pela sua luz. Seus olhos eclipsam os sóis e as luas.
As criaturas dançam de alegria quando ela chega. E a natureza chove lágrimas quando ela se vai.”

O gênio tirou a mulher do cofre e disse-lhe: "Vou dormir um pouco”. E, apoiando a cabeça nos joelhos dela, fechou os olhos e dormiu. Ao ver os dois reis, a mulher acenou-Ihes para se aproximarem. Mas eles explicaram por sinais que tinham medo do gênio.

"Não tenhais medo”, replicou. "Ele nunca acorda antes da hora habitual. Dispondes de muito tempo”.

E como eles continuaram a hesitar, tirou a cabeça do gênio de cima dos joelhos, depositou-a sobre uma pedra e disse aos reis: "Se não vos aproximardes e me furardes, acordarei o gênio que vos submeterá à mais horrível das mortes."

Então eles fizeram o que ela queria. E ela mostrou-lhes um pequeno saco cheio de anéis: - Sabeis o que são estes anéis? Perguntou. São os anéis de 60 homens que copularam comigo sob os comos deste cretino Afrit. Agora, dai-me vossos anéis para que os junte à minha coleção. Acrescentou:

“Este Afrit apaixonou-se por mim, raptou-me na noite de meu casamento e me encarcerou neste cofre, sendo mortalmente ciumento. Mas ele não sabe que seja o que for que uma mulher deseja, nada a impedirá de consegui-lo”.

Disse o poeta:
“Não confies nas mulheres
E não dês fé às suas juras.
Pois seus humores dependem de seus ovários.
Exibem amor fingido
E agem com perfídia.
Que a história de José te ponha de pré-aviso.
Não vês que o demônio expulsou
Adão do paraíso
Por causa de uma delas?”


Os irmãos olharam um para o outro e disseram: "Se a este gênio acontecem coisas assim apesar de sua força e vigilância, podemos sentir-nos consolados”.

E regressaram a seus palácios. Chahriar mandou cortar a cabeça de sua esposa e dos quarenta escravos e escravas. E a fim de prevenir qualquer futura traição, decidiu casar-se cada noite com uma nova donzela e mandar matá-la na aurora. Em três anos, centenas de moças foram assim sacrificadas. A tristeza e o horror encheram o reino. As famílias fugiam para salvar as filhas. Até que, um dia, o vizir, encarregado de conseguir uma nova donzela procurou e
nada encontrou. Voltou para casa abatido e receoso do que o rei faria com ele.

Ora, este vizir tinha ele mesmo duas filhas que superavam todas as demais moças em beleza, charme, finura, educação e inteligência. A mais velha chamava-se Sheherazade, e a mais nova Duniazad. Sheherazade havia lido inúmeros livros e conhecia a história dos povos, reis, poetas dos tempos antigos e modernos. Era eloqüente, e sua voz tinha um timbre melodioso muito agradável.

Vendo o pai assim infeliz, perguntou-lhe qual era a causa de sua infelicidade. Contou-lhe. Então disse Sheherazade:

"Por Alá pai, deve casar-me com este rei. Não importa que morra ou sobreviva, saberei livrar as filhas dos muçulmanos desta calamidade”.

O vizir atendeu à vontade da filha, e levou-a ao rei Chahriar. Entretanto, Sheherazade dera as seguintes instruções à irmã: "Quando estiver com o rei, mandarei chamar-te. Assim que o rei acabar seu ato comigo, dize: Conta-nos, querida irmã, uma daquelas histórias maravilhosas que fazem o tempo passar de maneira tão deliciosa.' Então, contarei minhas histórias, e quiçá resgatarei assim as filhas dos muçulmanos."

Quando o rei se aprontava para deitar com Sheherazade, começou ela a chorar.

- Que tens? Perguntou o rei.

- Ó meu soberano, tenho uma jovem irmã de quem gosto muito e queria despedir-me dela antes de morrer. O rei mandou vir Duniazad. Duniazad chegou e jogou-se nos braços da irmã; depois, ficou encolhida ao pé da cama até que o rei acabasse de arrebatar a virgindade de Sheherazade.

Depois, Duniazad disse à irmã: "Alá te acompanhe, ó querida irmã. Por que não nos contas uma de tuas maravilhosas histórias para que a noite passe mais agradavelmente?”

- Fá-lo-ei com prazer se meu soberano permitir.

- Sim, conta-nos uma de tuas histórias, disse o rei a Sheherazade, esperando suavizar assim sua habitual insônia.

E Sheherazade pôs-se a falar…


O MERCADOR E O GÊNIO

Conta-se, ó afortunado rei, que viveu noutro tempo um mercador que possuía grandes riquezas e negócios em diversos países. Um dia, montou seu melhor cavalo e dirigiu-se a um desses países. No caminho, sentou-se sob uma árvore para descansar e alimentar-se. Ao comer tâmaras, lançava ao longe os caroços. De súbito, apareceu um enorme Afrit que se aproximou dele, brandindo uma espada e gritando:

"Levanta-te que te mato como mataste meu filho!"

Perguntou o mercador: "Quando e como matei teu filho?"

Respondeu o Afrit: "Quando atiraste os caroços, um deles atingiu meu filho no peito, e ele morreu na hora”.

Vendo que não tinha outro recurso, o mercador disse ao Afrit: "Fica sabendo, ó grande Afrit, que sou um crente que nunca falto à minha palavra. Possuo riquezas e filhos e uma esposa e inúmeros depósitos a mim confiados. Concede-me, pois, um prazo para que me despeça de minha família e distribua a cada um o que lhe é devido. Prometo voltar aqui no primeiro dia do ano, e tu disporás de mim como quiseres”.

O gênio confiou no mercador e deixou-o partir. Em casa, ele pôs em ordem suas obrigações, distribuiu suas riquezas e revelou a parentes e amigos a triste sorte que o esperava. Todos choraram, mas nada podiam fazer. No primeiro dia do ano, voltou ao lugar do encontro como prometera. Sentou-se a chorar sobre sua sorte quando apareceu um xeque venerável conduzindo uma gazela presa.

"Por que estás sozinho neste lugar assombrado pelos gênios?" Perguntou ao mercador. "E por que estás chorando?"

O mercador contou-lhe a história.

- Por Alá, retrucou o velho, teu respeito pela palavra dada é coisa rara, e tua história é tão prodigiosa que se fosse escrita com uma agulha no canto interno dos olhos, seria matéria de meditação para os que refletem.

Sentou-se, dizendo que ficaria lá até ver o que aconteceria. De repente, apareceu um segundo xeque, conduzindo cães lebréus pretos. Saudou o mercador e o primeiro xeque e perguntou-lhes: "Que fazeis neste lugar assombrado pelos gênios?"

Contaram-Ihe a história, e ele também disse que esperaria lá para ver como acabaria essa curiosa aventura. Logo em seguida chegou um terceiro xeque conduzindo uma mula. Saudou a todos e quis saber o que estavam fazendo naquela terra perigosa. Repetiram toda a história, e ele também se sentou para aguardar os acontecimentos.

Momentos depois se levantou um turbilhão de poeira, e o gênio apareceu com um gládio afiado na mão e os olhos soltando chispas. Agarrando o comerciante, disse-lhe: "Vem que te mato como mataste meu filho, que era o sopro de minha vida e o fogo de meu coração”.

O primeiro xeque, mestre da gazela, criou coragem, beijou a mão do gênio e disse-lhe: "Ó grande gênio, o mais elevado entre os reis dos gênios, se eu te contar a história desta gazela e ficares maravilhado, conceder-me-ás a graça de um terço do sangue deste mercador?"

O gênio concordou, e o xeque começou sua história:

“Ó grande Afrit, esta gazela era a filha de meu tio. Casei-me com ela quando éramos bem jovens e vivemos juntos trinta anos. Mas Alá não nos concedeu filho algum. Por isso tomei uma concubina que, com a graça de Alá, me deu um filho varão lindo como a lua nascente. Quando atingiu quinze anos, tive que viajar a negócios”.

Ora, a filha de meu tio fora iniciada na feitiçaria desde a infância. Aproveitando minha ausência, transformou meu filho num bezerro e a mãe dele numa vaca, e juntou-os a nosso rebanho. Ao voltar, perguntei por eles.

Minha esposa respondeu: “ A mulher morreu, e teu filho fugiu para não sei onde.”

"Um ano inteiro fiquei chorando, o coração reduzido a pedaços. No Dia do Sacrifício, pedi a meu pastor que me trouxesse uma vaca gorda. Trouxe-me a vaca que havia sido minha concubina. Mal me aproximei dela para matá-la, pôs-se a gemer e chorar. Parei, e pedi ao pastor que a degolasse. Cumpriu a ordem, mas não encontramos na vaca nem carne nem gordura, mas apenas pele e ossos.

"Tive remorsos, inúteis como a maioria dos remorsos, e pedi ao pastor trazer-me um bezerro bem gordo. Trouxe-me meu próprio filho enfeitiçado. Quando me viu, rebentou a corda e jogou-se a meus pés com gemidos e lágrimas. Tive pena dele e ordenei que fosse substituído. Mas a malvada filha de meu tio disse:

‘Devemos sacrificar é este bezerro mesmo. Está gordo como convém.' Obedecendo a não sei que instinto ofereci, antes, o bezerro de presente a meu pastor.

"No dia seguinte, o pastor procurou-me e disse: Vou revelar-te um segredo que te alegrará e me valerá sem dúvida uma recompensa.' `O que é?' perguntei.

Respondeu `Minha filha é feiticeira. Ontem, quando me deste o bezerro, levei-o para a casa de minha filha. Mal o viu, cobriu o rosto com o véu e censurou-me:

`Pai, agora estás me expondo aos olhos de homens estranhos?'

Perguntei: `Onde vês homens estranhos?'

Respondeu: `Este bezerro é o filho de nosso amo, mas está encantado. E foi a mulher de nosso amo que o encantou, ele e a sua mãe!'

"Fui imediatamente com o pastor à casa de sua filha, e perguntei-lhe: `É verdade o que contaste a teu pai acerca desse bezerro?'

- Sim, respondeu.

- Ó gentil e compassiva adolescente, se libertares meu filho, dar-te-ei todo meu gado e todas as propriedades que teu pai administra.

"Sorriu e disse: `Ó amo generoso, aceitarei estas riquezas com duas condições: que me cases com teu filho e que me permitas enfeitiçar tua mulher. Sem isso, não tenho a certeza de poder prevalecer contra as suas perfídias.

"- Seja, respondi.

"Apanhou então uma bacia de cobre encheu-a de água e pronunciou conjurações mágicas. Em seguida, aspergiu o bezerro com a água, dizendo-lhe: ‘

Se Alá te criou bezerro, permanece bezerro; mas se estás enfeitiçado, volta a tua forma verídica, com a permissão de Alá.'

Após tremer e agitar-se, o bezerro recuperou a forma humana. Era meu filho! Joguei-me em seus braços e cobri-o de beijos. Depois casei-o com a filha do pastor, e ela encantou a minha esposa e metamorfoseou-a nesta gazela."

Bem espantosa, a tua história, bradou o Afrit. Concedo-te o terço do sangue deste malvado.

O segundo xeque adiantou-se então e disse:

"Ó rei dos gênios, se te contar a história destes dois cachorros e a achares tão espantosa quanto a da gazela, conceder-me-ás um terço do sangue deste homem?"

- Vai falando, disse o Afrit.

"Saberás, ó senhor dos reis dos gênios", disse o segundo xeque, que estes dois cachorros são irmãos meus. Quando nosso pai morreu, deixou-nos três mil dinares. Com a minha parte, abri uma loja e comecei a comprar e vender. "Meus irmãos preferiram a aventura e viajaram com as caravanas por um ano inteiro. Quando voltaram, tinham desperdiçado todo o seu capital. Estavam pobres e tinham aspecto lamentável”.

Tive pena deles. Mandei-os ao hammam, comprei-lhes roupas finas e, pondo meu capital de lado, dividi com eles, em igualdade, todo o lucro daquele ano. E moramos juntos por muito tempo. Mas de novo queriam partir e insistiram para que fosse com eles. Embora os resultados de sua primeira viagem não fossem alentadores, consenti em acompanhá-los com uma condição: dividir o dinheiro que tínhamos - 6 mil dinares -- em duas partes iguais; deixar a metade escondida para nos amparar em caso de necessidade e partilhar a outra metade entre nós três. Concordaram e agradeceram-me.

Com os 3 mil dinares, compramos as mercadorias mais indicadas, alugamos um navio, e embarcamos. Após viajarmos um mês, chegamos a uma cidade portuária onde vendemos nossas mercadorias com um lucro de dez por um. Quando voltamos ao porto para embarcar, encontramos lá uma mulher mal vestida que se aproximou de mim e beijou-me a mão, dizendo:

‘ Mestre, aceitas ajudar-me e me salvar? Por favor, casa-te comigo e me leva, e tudo farei para agradar-te.' Aceitei. Levei-a para o navio, vesti-a com esmero e partimos.

"Pouco a pouco fui tomado de um grande amor por ela. Não conseguia separar-me dela nem de dia nem de noite, e preferia sua companhia à de meus irmãos. Por sua vez, revelou-se uma mulher linda, inteligente, devotada e de nobre caráter”.

Infelizmente, meus irmãos me invejavam cada dia mais e, uma noite, quando estava deitado com minha mulher, insinuaram-se em nosso aposento, apanharam-nos e jogaram-nos em alto mar. Minha mulher despertou nas águas e, de repente, transformou-se numa Afrita e carregou-me nos ombros até uma ilha. Depois, desapareceu e só voltou na manhã seguinte, ainda mais bela, e disse-me:

‘ Não me reconheces? Sou tua esposa. Como vês, sou uma Afrita. Amei-te desde o primeiro instante em que te vi. Tiveste pena de mim e te casaste comigo. Agora salvei-te da morte com a permissão de Alá. Estamos quites. Quanto a teus irmãos, sinto-me cheia de ódio contra eles e vou afundar o navio em que estão e matá-los.'

Muito me custou convencê-la a não os matar. Carregou-me então nos ombros, ergueu-se no espaço e depositou-me em minha casa. Retirei os 3 mil dinares de seu esconderijo, reabri minha loja e comprei novas mercadorias.

"Quando voltei para casa, achei estes dois cachorros presos num canto. Ao me verem levantaram-se e começaram a chorar e agarrar-se às minhas vestes. `

São teus irmãos,' disse minha mulher. `Pedi à minha prima, que é mais versada em encantamentos do que eu, para dar-lhes esta forma, da qual só poderão libertar-se daqui a dez anos.'

"É por isto, ó poderoso gênio, que me encontro neste lugar. Estou a caminho da morada daquela prima de minha mulher a quem vou pedir que restitua a meus irmãos sua forma anterior, pois os dez anos já decorreram.”

Exclamou o Afrit: "Tua história também é surpreendente. De coração, concedo-te mais um terço do sangue deste maldito. Mas vou tirar-lhe o terço que me é ainda devido”.

O terceiro xeque, o da mula, interveio então dizendo: "Ó grande Afrit, se te contar uma história ainda mais maravilhosa que essas duas, conceder-me-ás o último terço do sangue deste homem?"

O Afrit, que gostava muito de histórias raras, acedeu, dizendo: "Qual é a tua história?"

O terceiro xeque falou: “Ó sultão e chefe de todos os gênios, esta mula que vês aí é minha esposa. Uma vez, tive que fazer uma longa viagem, e quando voltei, certa noite, achei-a deitada com um escravo negro na minha própria cama”.

Estavam conversando, rindo, beijando-se e excitando-se mutuamente com pequenos jogos. Assim que me viu, lançou sobre mim uma água mágica que me transformou em cão e me expulsou de casa. Saí a errar pela cidade. Um açougueiro apanhou-me e levou-me para sua família.

"Assim que a sua filha me viu, cobriu a face com o véu e censurou o pai por expô-la a um homem estranho. `Onde vês homens?' perguntou o pai.

Ela respondeu: `Este cão é um homem. Uma mulher o enfeitiçou, e eu sou capaz de libertá-lo.' “

- Liberta-o, então, minha filha, pelo amor de Alá.

"Ela pegou uma vasilha de água, pronunciou certas palavras mágicas sobre a água, aspergiu-me com algumas gotas e disse: `Sai desta forma e retoma tua forma primeira.'

"Logo, voltei a ser homem e, beijando a mão da rapariga, disse-lhe que desejava muito que minha mulher fosse enfeitiçada do modo como me enfeitiçara. "

` É fácil,' disse a filha do açougueiro. E deu-me num vidro um pouco da água que usara para me salvar, dizendo: `Se encontrares tua mulher adormecida, borrifa-a com esta água, e ela tomará a aparência que tu indicares.'

"Fui para casa, encontrei minha mulher dormindo, aspergi-a com a água mágica, dizendo-lhe: `Sai dessa forma e toma a forma de uma mula.'

Num instante, transformou-se numa mula, como podes verificar, ó sultão e chefe dos reis dos gênios."

O Afrit virou-se para a mula e perguntou: "É verdade?" Ela abanou a cabeça como para responder: "Sim, é verdade”.

Ao escutar essa história, na qual o mal era punido, o gênio estremeceu de emoção e prazer e concedeu ao xeque a graça do último terço do sangue do mercador. O mercador, muito feliz, agradeceu aos três xeques e ao Afrit, e os xeques o felicitaram por sua salvação. E cada um voltou para sua terra.
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Continua: O Conselheiro – O Homem e sua Mulher/ O Galo e as 50 Galinhas – As Botas de Abu-Kassim Attanburi – O Carregador e as Jovens Mulheres
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Fontes:
Domínio Público
Imagem = Diario da Manhã

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