terça-feira, 11 de outubro de 2011

As Mil e Uma Noites (Parte 2)


O CONSELHEIRO

Contam que certo lavrador possuía um burro que o repouso engordara e um boi que o trabalho abatera. Um dia, o boi queixou-se ao burro e perguntou-lhe: “Não terás, ó irmão, algum conselho que me salve desta dura labuta?” O burro respondeu: “Finge-te de doente e não comas tua ração. Vendo-te assim, nosso amo não te levará para lavrar o campo e poderás descansar.” Dizem que o lavrador entendia a linguagem dos animais e compreendeu o que eles conversaram. Na manhã seguinte, viu que o boi não comera sua ração. Deixou-o e levou o burro em seu lugar. O burro foi obrigado a puxar o arado o dia todo, e quase morreu de cansaço. E lamentou o conselho que dera ao boi. Quando voltou à noite, perguntou-lhe o boi: “Como vais, querido irmão?” Respondeu o burro:

“Vou muito bem. Gostei da luz do sol e da alegria dos campos. Mas ouvi algo que me fez estremecer por tua causa. Ouvi nosso amo dizer: “Se o boi continuar doente, deveremos matá-lo para não perdermos sua carne.” Minha opinião é que comas tua ração e voltes para tua tarefa a fim de evitar tamanho infortúnio.”

O boi concordou e devorou toda a sua ração. O lavrador estava ouvindo, e riu.

O HOMEM E SUA MULHER / O GALO E AS 50 GALINHAS

Na história intitulada O conselheiro, quando o homem deu uma risada ao ouvir o segundo conselho dado pelo burro ao boi, sua mulher (que não conhecia a linguagem dos animais) ficou perplexa e curiosa e quis saber por que ele riu. O homem não podia revelar que conhecia a linguagem dos animais. Respondeu à mulher que esse riso envolvia um segredo que lhe era proibido divulgar sob pena de morte. - Quero que me contes esse segredo, mesmo que tenhas que morrer insistiu a mulher. Como o homem amava sua mulher e nada lhe recusava, consentiu em revelar-lhe o segredo e perder a vida. Mandou, pois, vir o cádi e as testemunhas para deixar consignadas oficialmente suas últimas vontades. E mandou vir seus parentes e os de sua mulher para despedir-se deles. Todos aconselharam à mulher desistir de seu propósito e não empurrar para o túmulo seu marido e pai de seus filhos. Ela, porém, teimou, repetindo: “Quero conhecer o segredo, mesmo que ele tenha que morrer”. Toda essa movimentação despertou a atenção do cão e dos animais da capoeira. O cão censurou o galo por estar cantando quando o amo deles todos estava para morrer. O galo perguntou: “E por que nosso amo está para morrer?”

O cão contou-lhe a história. Comentou o galo: “Por Alá, nosso amo é muito tolo. Eu tenho cinqüenta esposas. Agrado a uma; desagrado a outra; mas não permito nenhuma rebelião entre elas. E ele tem apenas uma esposa e não consegue controlá-la. O que ele deve fazer é apanhar umas varas verdes nas amoreiras e bater nela até que se arrependa e não mais lhe exija nada.” O homem ouviu o que o galo disse ao cão, pensou e decidiu seguir o conselho do galo.

Cortou umas varas das amoreiras, escondeu-as no quarto do casal e chamou a mulher: “Vem comigo até nossa alcova para que te conte o segredo e me despeça de ti para sempre”. Quando a mulher entrou no quarto, o homem trancou a porta, apanhou as varas e bateu nela até que ficou cega de dor e gritou: “ Arrependo-me.“

E beijou lhe as mãos e os pés. Em seguida, saíram juntos em paz para iniciar uma nova vida. E os parentes e os vizinhos se regozijaram por eles.

AS BOTAS DE ABU-KASSIM ATTANBURI

Contam que vivia certa vez em Bagdá um homem chamado Abu-Kassim At Tanburi, que usava as mesmas botas havia sete anos. Todas as vezes que alguma parte delas se rasgava, ele a remendava, de modo que as botas se tornaram excessivamente pesadas e passaram a ser citadas em provérbio. Um dia, Abu-Kassim foi ao mercado de vidros. Um corretor lhe disse: “Ó Abu-Kassim, chegou hoje um negociante de Alepo com um carregamento de frascos dourados que ninguém quer comprar. Compra-o. Eu o revenderei para ti mais tarde, e tu ganharás o dobro de teu investimento”. Abu-Kassim comprou os vidros por sessenta dinares. Foi em seguida ao mercado de perfumes, e outro corretor lhe disse: “Ó Abu-Kassim, chegou-nos hoje de Tassibina um negociante com um carregamento de água de rosas da melhor qualidade! O negociante precisa prosseguir logo sua viagem, e podes, por isso, comprar-lhe a mercadoria por um preço muito barato; compra-a. Eu a revenderei para ti dentro em pouco, e tu ganharás o dobro de teu investimento”. Abu-Kassim comprou a água de rosas por sessenta dinares, colocou-a nos frascos dourados e levou-os para casa e os arrumou sobre uma prateleira. Depois, foi aos banhos públicos.

Enquanto se banhava, um de seus amigos o interpelou: “Ó Abu-Kassim, gostaria de ver-te mudar essas botas; elas já estão feias demais, e tu és um homem de posses pela graça de Deus”. “Tens razão”, retrucou Abu-Kassim, “seguirei teu conselho”.

Quando saiu do banho para vestir-se, viu junto de suas botas um par de sandálias novas. Pensou que fosse o seu amigo que lhas havia ofertado; calçou-as e dirigiu-se para casa. Ora, as sandálias novas pertenciam ao cádi, que estava tomando banho naquele mesmo local. Quando saiu, procurou suas sandálias e não as encontrou. “Meus amigos”, perguntou ele,”aquele que levou minhas sandálias não deixou nada no seu , lugar?” Procuraram e só encontraram as botas de Abu-Kassim, que todo mundo reconheceu, pois eram famosas. O cádi mandou os seus homens revistarem a casa de Abu-Kassim. As sandálias estavam, de fato, lá. O cádi ordenou a Abu-Kassim comparecer à sua presença, confiscou-lhe as sandálias e fê-lo flagelar, multar e encarcerar. Abu-Kassim saiu da cadeia cheio de cólera contra suas botas. Levou-as e atirou-as ao rio Tigre. Elas afundaram. Mas um pescador, tendo atirado sua rede à procura de peixes, recolheu as botas. Reconheceu-as e pensou: “Abu-Kassim deve tê-las perdido no Tigre.” Levou-as para a casa de Abu-Kassim; não o encontrou; mas viu uma janela aberta e jogou as botas para dentro da casa. As botas caíram sobre a prateleira onde estavam os frascos com a água de rosas. A prateleira desmontou-se; os vidros caíram no chão e se quebraram; toda a água de rosas se perdeu. Ao voltar, Abu-Kassim compreendeu o que se passara e começou a se lamentar e desesperar: “Ó desgraça! Estas malditas botas me arruinaram!” Então, foi de noite abrir um buraco para enterrá-las e livrar-se delas. Mas os vizinhos, ouvindo o ruído da escavação, pensaram que alguém estivesse procurando demolir a sua casa.

Queixaram-se ao governador, que mandou prender Abu-Kassim e o repreendeu: “Como te permites cavar junto ao muro de teus vizinhos?” Então, aprisionou-o e só o soltou depois de Ihe ser cobrada uma multa. Abu-Kassim saiu da cadeia mais furioso ainda contra as suas botas. Levou-as e atirou-as nas privadas do caravançarai. Mas as botas entupiram os esgotos; as imundícies transbordaram; o povo protestou contra o mau cheiro. Procuraram a causa e acharam as botas; examinaram-nas: eram as botas de Abu-Kassim! Levaram-nas ao governador e relataram-lhe o ocorrido. O Governador mandou vir Abu-Kassim, censurou-o severamente, encarcerou-o e obrigou-o a pagar o conserto dos esgotos e outra soma igual a título de multa. Abu-Kassim saiu da prisão com as botas e, na sua ira, jurou nunca mais se separar delas. Lavou-as e pô-las a secar no terraço de sua casa. Um cão as viu e, tomando-as por uma carniça, pegou-as. Mas enquanto pulava para outro terraço, as botas lhe escaparam e caíram sobre um homem, ferindo-o gravemente.

Examinaram as botas e reconheceram-nas. O caso foi levado ao juiz, que condenou Abu-Kassim a indenizar o homem, de todas as despesas requeridas pelo seu tratamento. Assim, Abu-Kassim gastou o último dinar que possuía. Apanhou então as botas e levou-as ao cádi e disse-Ihe: “Solicito de Vossa Excelência que redija um ato de separação solene entre minhas botas e eu, que proclame que nada mais temos um com o outro, que nenhum de nós é responsável pelo outro e que eu não poderei ser culpado pelo que minhas botas venham a fazer”.E contou ao cádi tudo que lhe sucedera por causa dessas botas.

O cádi soltou boas gargalhadas e deu um presente a Abu-Kassim antes de despedi-lo.
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Observação:
Afrit (masc. sing.), afrita (fem. sing.), afarit (plural): seres de outro mundo, ora visíveis ora invisíveis, possuindo em ambos os casos poderes ilimitados que escapam a qualquer lei.
Alá: Deus
Cádi: juiz.
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continua…


Fontes:
Domínio Publico
Imagem = Diário da Manhã
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