sábado, 8 de outubro de 2011

Fábio Lucas Pierini (Mirna Pinsky e o Conto Fantástico para Crianças)


O conto fantástico, grosso modo, é uma narrativa ficcional de ambientação realista, contrariada pela irrupção de um elemento de ordem sobrenatural durante seu desenvolvimento, definição a que cheguei após a leitura de obras como Introdução à literatura fantástica (Todorov, 1969), La séduction de l’ètrange (Louis Vax, 1965) e La littérature fantastique: la poétique de l’incertain (Irène Bessière, 1974), para não citar mais outras obras menos esclarecedoras.

Ao contrário do que muitos pais e professores podem pensar, uma criança é um ser capaz de tratar sobre todo e qualquer assunto, desde questões consideradas verdadeiros tabus da humanidade como as relações sexuais e a morte, como também conseguem perfeitamente distinguir onde fica a fronteira entre o real e o imaginário, de acordo com a experiência e o trabalho do psicólogo Bruno Bettelheim. Isso quer dizer que uma criança sabe muito bem separar o que é o enredo de uma novela ou filme das atrocidades narradas por repórteres nos telejornais – o que deveria descartar muitas das questões levantadas acerca da violência nos desenhos animados e nos jogos de videogame , e tranqüilizar aqueles que vêem seus filhos rirem das pancadarias ficcionais e se comoverem ou sentirem revolta diante do sofrimento das crianças nordestinas ou africanas.

Porém, o que acontece – e essa é a proposta deste trabalho – quando uma criança entra em contato com uma literatura que não apenas mostra as duas faces dessa moeda (real/sobrenatural) como também incedssantemente joga cara-ou-coroa com o juízo do leitor sem nunca revelar qual é a face que fica voltada para cima após cada lance? Voltarei ao assunto mais tarde, após ter apresentado o conto “A zanga da princesa”, conto de abertura do livro Assombramentos, de Mirna Pinsky.

O livro Assombramentos comporta cinco contos fantásticos dirigidos ao público infantil, pois os protagonistas de cada contos são crianças de mais ou menos dez anos e têm, em rápidas canetadas, seu cotidiano descrito – vão à escola, fazem tarefa, têm reclamações à fazer sobre suas relações com os irmãos mais velhos ou mais novos, demonstram a força da relação que têm com os pais, sua visão de mundo, etc. – o que proporciona uma maior identificação com leitores de uma faixa etária que vai dos nove aos doze anos. Ainda que o leitor seja desatento ao detalhe da composição dos personagens, cada conto é dedicado a uma criança conhecida pela autora, mas desconheço os laços entre ela e as crianças a quem os dedica. Assim, o nome de cada protagonista tem alguma relação com o nome do homenageado, o que é o caso do conto que analiso a seguir: “prá Luciana, este desacerto”; Luciana, ou Lu, é a protagonista do conto A zanga da princesa.

O enredo desse conto é muito simples, pois Lu, de posse da máquina de escrever da mãe, pretende escrever uma história para servir de exemplo à idéia de que ninguém precisa ser bonito para ser amado. Um conto de fadas pode muito bem ter esse propósito, o de ilustrar uma idéia, bem como uma fábula. Contudo, veja o que Lu compõe em seu primeiro parágrafo:

“Era uma vez um menino muito rico, uma menina muito pobre e uma princesa. O menino muito rico se chamava Renato, a menina muito pobre se chamava Maria e a princesa se chamava princesa mesmo. Maria era muito feia, mas muito boazinha, ao contrário da princesa que era bonita, mas muito chata” (Pinsky, 1986, p. 06).

Ao iniciar sua narrativa, Lu destrói completamente a lógica dos contos de fadas, pois dá ao personagem de bom caráter a má aparência e ao de boa aparência, o mau caráter. Mas isso é pouco. Lu constrói toda uma situação moderna dentro desse pretenso conto de fadas, pois Maria tem uma mãe que envelheceu e adoeceu de tanto trabalhar para criar sozinha a filha após a morte do marido, num acidente de trânsito. Por ser muito boazinha, Maria vai trabalhar na casa do menino rico, Renato, para que a mãe possa ficar em casa descansando. Isso quer dizer que, para a criança Lu, a autora da história, uma situação de pobreza e outras dificuldades sociais como as descritas pelos contos de fadas tradicionais, não têm mais como consistir em verdadeiras dificuldades para o seu mundo e o seu tempo, e portanto é preciso escolher uma nova série de problemas a viver serem vividos pelo personagem.

Vejamos agora o lado da princesa, antagonista de Maria:

“A princesa morava no maior castelo do mundo. Por fora era todo de cristal, com torres de marfim. Por dentro tinha paredes de ouro cravejadas de brilhantes. O rei, pai dela, vivia sentado num trono de cinco metros de altura, todo de prata. Na cabeça usava uma coroa tão valiosa, mas tão valiosa, que sempre que tirava a coroa do cofre pra botar na cabeça, a guarda real pegava metralhadoras e granadas para protegê-lo” (Pinsky, 1986, p. 08).

Tudo anda conforma o velho roteiro dos contos de fadas, pois a ostentação dos metais preciosos e outros objetos valiosos é a mesma, exceto pela vigilância dos guardas: eles usam armas ultramodernas como metralhadoras e granadas. Outro dado que demonstra essa mescla de elementos modernos do cotidiano de Lu e do conto de fadas tradicional é a figura do mágico, que morava no fun do do castelo, dentro de um fogão: “O mágico fazia mágicas para o rei. Se o rei queria viajar para outro planeta, o mágico fazia ‘plim’ com sua varinha mágica e log aparecia um foguete para levar o rei” (Pinsky, 1986, p. 12). Ora, se ele é mágico, por que não faz “plim” e teleporta logo o rei para outro planeta, ao invés de fazer aparecer um meio de transporte para isso? Simples: porque uma criança moderna como Lu não conhece outro meio de viajar para outro planeta senão o foguete!

O elemento sobrenatural que faz dessa uma narrativa fantástica não é outro senão a própria zanga da princesa: sentindo-se prejudicada pela autora, a princesa sai da história e rouba sucessivamente três vogais da (o, e, i) da máquina de escrever e faz uma chantagem com Lu, pois se ela não der um jeito de o Renato se tornar namorado dela (e não da Maria, pois essa é a intenção de Lu, para demonstrar sua tese), ela nunca mais devolveria os tipos da máquina de escrever e ainda levaria as folhas já datilografadas consigo. Porém, a princesa nunca “dá as caras” no mundo real, manifesta-se apenas por meio de bilhetes, fato que leva Lu a pensar que poderia ser brincadeira de alguém, como seus irmãos, mas que no entanto, não estão em casa e não podem ser responsabilizados; nem a mãe, pois “ela não é dessas coisas”.

Lu não se deixa abater e continua a escrever a sua história completando à mão o que a máquina não bate. Por fim escreve as ultimas linhas completamente à mão.Sua insistência é exemplar, mesmo em se tratando de combater um fenômeno sobrenatural, pois não é sempre que um personagem vem ao autor reclamar da sua função numa narrativa, muito menos fazer chantagem. A princesa desaparece com a história de Lu e após uma movimentadíssima troca de bilhetes, as folhas reaparecem amassadas e reescritas acompanhadas de um bilhete da pincesa:

“Corrigi aquela história boba que você inventou. Agora ficou legal. Mas para você aprender a não ser desaforada com as princesas, vou levar de lembrança as vogais que tirei da máquina. Só quero ver a bronca que você vai levar! Bem feito, vê se aprende a escrever histórias que prestem. Adeus. assinado: a princesa” (Pinsky, 1986, p. 19).

Lu relê a história “corrigida” pela princesa e nota uma série de rabiscos e descobre que ela foi totalmente mudada. Furiosa, a pequena autora decide retomar seus trabalhos no dia seguinte e decide mudar radicalmente o final: “além de perder Renato, a princesa perderia também seus joguinhos eletrônicos, afogados na torrente de lágrimas que ela choraria por causa do casamento dos dois. E a própria princesa se afogaria depois. Ponto final” (Pinsky, 1986, p. 20).

As ilustrações de Helena Alexandrino corroboram para a realização dessa irrupção do sobrenatural e tornar o conto realmente fantástico, pois dado seu estilo sugestivo, que não liga necessariamente o texto à ilustração, a artista desenha em muitas passagens do texto (na verdade, texto e imagem se misturam na diagramação do livro) a princesa em posição e expressão de reflexão e maquinação, e sempre olhando as palavras impressas, principalmente na primeira vez em que os tipos são roubados. Trata-se talvez do ponto mais distante que possa ser alcançado pela relação entre imagem e texto: a princesa ilustrada observa as palavras que compõem a realidade de seu universo, para mais tarde tentar alterá-lo, ou seja, sair da história e intervir na realidade do autor.

Feitas as considerações acerca do conto fantástico e como a autora, Mirna Pinsky, o traz para os leitores infantis, somadas a uma breve análise da relação texto/imagem e uma criação de personagens que soscitem a identificação com o publico infantil, volto à questão do efeito e também da necessidade de narrativas que ponham real e sobrenatural em conflito para os leitores das primeiras idades.

Segundo o psicólogo francês René Diatkine, vivenciar uma situação por meio da ficção é uma forma de realizá-la num plano que não é o real, ou seja, por meio da ficção ou outros jogos e bincadeiras de fantasia, as crianças podem dispersar e dispensar suas vontades de matar, roubar, destruir impunemente e sem culpa!

No caso do conto fantástico para crianças, Mirna Pinsky trabalha com situações absurdas, situações que estão além da compreensão humana, mas que apesar disso permeiam o cotidiano não só infantil como também adulto, pois essas situações absurdas são a base da ficção de Franz Kafka e de outros autores do século XX, buscando denunciar que o maltrato do homem pelo próprio homem não tem sentido algum, mas ainda assim, o homem se deixa maltratar por um sistema rígido, autoritário e de fundamentos absurdos.

Muito ao contrário dos personagens kafkianos, que por não reagirem imediata e energicamente a essse sistemasão completamente destruídos, os de Mirna Pinsky não se deixam abater quando querem provar suas convicções, mesmoquando se trata de uma princesa zangada que, de alguma maneira sobrenatural, abandona seu lugar no mundo ficcional.

Bibliografia
BESSIÈRE, Irène. La littérature fantastique: la poétique de l’incertain. Paris: Larousse, 1974
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980
DIATKINE, René. Histórias sem fim. Entrevista. Rio de Janeiro: Revista Veja, 1993, pp. 03-07
GUELFI, Maria Lúcia Fernandes. Literatura infantil – fantasia que constrói realidades. In: Educação e filosofia, 10 (20). pp. 131-154. Jul/Dez 1996.
PINSKY, Mirna. A zanga da princesa. In: Assombramentos. São Paulo: Edições Paulinas, 1986.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1975.
VOLOBUEF, Karin. Um estudo do conto de fadas. In: Revista de Letras. São Paulo, 1993.


Fonte:
http://www.literaturafantastica.hpg.ig.com.br/pinsky1.htm

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