terça-feira, 11 de outubro de 2011

Júlia Lopes de Almeida (A Arte de Envelhecer)


Não somos só nós, minhas amigas, que vemos com terror brilhar por entre as nossas madeixas castanhas, louras ou pretas, o primeiro fio de cabelo branco. As dolorosas apreensões desse momento eram-nos só atribuídas a nós, como se não nascêramos senão para a mocidade e o amor.

O homem envergonhado, e com receio de se confessar vaidoso, sem perceber talvez que a primeira denúncia da velhice tem para nós amarguras mais sutis que a do simples medo de ficarmos mais feias, teve sempre para a nossa decepção um sorriso de inclemente ironia...

Poetas e contistas, valham-nos eles, e que Deus lhes prolongue a raça! engrinaldaram de rimas e períodos suaves a dor desse momento sagrado, em que as nossas esperanças fecham as asas, repentinamente murchas, e a luz dos nossos sonhos esmorece...

Mas se eles adivinharam a delicadeza do nosso sentimento, não nos contaram a espécie do seu, ao ver a luz pálida e fina de um fio prateado coleando por entre as ondas negras da cabeleira, ou as pontas castanhas do bigode. Pensávamos que os primeiros sinais outoniços, que são para as mulheres os mais terríveis, não os alarmassem a eles, sempre embebidos em tão grandes ideais, que nem tivessem vagar para perceber a ruína do próprio corpo. Enganamo-nos ; o homem é também sensível como nós às apreensões que a vista primeiro cabelo branco sugere.

Um fio de cabelo, nada há mais frágil, nem mais quebradiço nem mais leve, e entretanto vê-se que mundo de sensações ele prende e arrasta! Até aqui, eram só as nossas, supúnhamos, mas agora sabemos que são as de toda a gente!

Tenho diante dos olhos uma página de homem — A arte de envelhecer — que se me afigura ter sido escrita diante de um espelho pérfido. Essa página suave e bem feita analisa essa hora delicada e de difícil interpretação, em que há em todos o mesmo estremecimento de susto, e o mesmo estender de mãos para agarrar o que passou e que não voltará jamais — a mocidade.

A mocidade! Aos quarenta anos ainda a sentimos perto, aspiramo-lhes o aroma, como que lhe sentimos o hálito quente; já ela nos deixou, já ela se foi embora, e, todavia recrudesce em nós, mulheres, toda a alacridade vivaz da sua exuberância; há mais calor no nosso peito, mais ardor na nossa paixão, mais firmeza na nossa vontade. É nesse instante de supremo gáudio que um insignificante fio de cabelo branco nos vem lembrar que o bem que gozamos, tão conscientemente como o gozáramos até então com indiferença... Há de acabar!

Supus, não sei por que, à força de ouvir dizer, talvez, que essa hora para os homens chegasse mais tarde. Vejo que não. Sempre é consolador ter bons companheiros na desgraça...

Na arte de envelhecer, tema delicioso e que o autor poderia desenvolver em um volume grosso, há uma pincelada jeitosa e leve na referência à maneira por que sabemos disfarçar os estragos impiedosos do tempo... O que as palavras não dizem, mas a insinuação aponta, é que esse meio é a maquilagem, o artifício, o auxílio das cores sabiamente combinadas, a discrição dos véus e o efeito artístico do penteado... Saber compor a fisionomia, dar-lhe aparência agradável, torná-la bonita quanto possível, é a mais comum das preocupações femininas, para que não a confessemos.

Todavia, há uma revelação a fazer: é que raramente se põe aqui ao serviço desse cuidado o uso das tintas, das pomadas e dos vernizes. A não ser a inglesa, protegida por um clima que lhe aveluda a tez, não conheço mulher que menos recorra aos embustes do toucador que a brasileira. O pó de arroz, contra o qual antigamente alguns pais de família se insurgiam, é o único auxílio de que lançamos mão, mais ainda como um complemento de toilette, que o uso torna indispensável, que mesmo como um elemento de garridice.

O pó de arroz não só atenua o luzidio da pele, afogueada por uma temperatura quase sempre alta, como também suaviza, refresca e aromatiza. Positivamente, ele foi adotado por isto: não só embeleza como sabe bem.

De tal maneira isto é certo, que ninguém o oculta, como a um fator misterioso de formosura, que se quisesse guardar incógnito; ao contrário, damo-lhes caixas vistosas de cristal lapidado onde a luz incide em refrações irisadas. A velhice material, grosseira, ainda não mereceu da maior e melhor parte das mulheres brasileiras o sacrifício inútil da máscara confeccionada em sessões longas, com pincelinhos, camurças, óleos, tintas e esmaltes.

Mas A arte de envelhecer não teve por objetivo a arte de não parecer velho; mas sim de padecer com resignada calma as gradações da mudança. Isso depende, além da vontade, das circunstâncias de cada um...

A felicidade está em envelhecer sem arte, com outras preocupações mais elevadas e menos egoístas... Desde os primeiros anos de escola que os mestres se esforçam por fazer compreender às crianças que a beleza, sendo transitória, menos vale do que a bondade, e que

On ne saít plus que devenir
Lorsque l'on n'a su qu'être belle

O esforço para a perfeição material é sempre improfícuo, e o para o aperfeiçoamento moral sempre bem coroado. A arte de envelhecer é a de exercitar a alma nas doces práticas do benefício e saber derramar em torno a si até à última hora de consciência, a sombra que alivia ou o calor que reanima...

Fontes:
Júlia Lopes de Almeida. Livro das Donas e Donzelas. Belém/PA: Núcleo de Educação a Distancia da Universidade da Amazonia (UNAMA).
Imagem = http://www.ciclovittal.com

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