domingo, 16 de outubro de 2011

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) XVII – A Adesão das Elvinistas


CAPITULO XVII
A Adesão das Elvinistas

Arregalei os olhos de surpresa. Nem por sombras eu havia imaginado aquela hipótese e confessei-o a miss Jane.

— A surpresa não foi unicamente sua, senhor Ayrton. Alguns minutos passados depois do gesto decisivo do formidável Jim Roy, e cinquenta milhões de eleitores negros recebiam a imprevista senha como se rece¬bessem violenta pancada no crânio. A sensação de atordoamento foi geral. Pelo cérebro dos despigmentados passara tudo, menos aquilo. Nem um negro sequer imaginara tal hipótese. Mas a perturbação foi se desfazendo, e á medida que se ia desfazendo iam se iluminando as caras com um sorriso novo no mundo. Um sorriso sem significação, puramente reflexo. O sor¬riso do grilheta que nasceu de algemas ao pulso e de súbito as vê se esvaírem em névoa ao contacto de mágico talismã.

— "Livre, apenas? Não! Também senhor, agora..." O sigilo das comunicações radiadas era perfeito.

Onda que partisse com recado para fulano jamais errava de porta ou se deixava transviar pelo caminho. Mesmo assim miss Astor, cujo maquiavelismo de espírito não extremava a rubra ideologia elvinista dum maravilhoso senso das realidades, conseguira feliz êxito na caçada que armou á onda portadora da senha de Jim Roy. Não corromperia a onda, de si incorruptível, mas cor¬romperia um dos seus destinatários — talvez o único agente infiel de quantos tivesse Jim a seu serviço. Logo que recebeu a senha, esse espião chamou miss Astor ao aparelho das comunicações reservadas.

Estava ela a postos, na sede do partido, rodeada do seu ardente estado maior. Mal soou o chamado, dei¬xou as companheiras e literalmente atirou-se ao fone adivinhando do que se tratava. A viva expressão de curiosidade do Seu rosto, porém, demudou-se em derro¬cada. Seus olhos arregalaram-se e seus lábios, subita¬mente brancos, tremeram.

Vendo o transtorno de feições da chefa suprema, o estado-maior elvinista acudiu inquieto.

— "Que ha? indagou miss Elvin, agarrando-a pelos ombros. Resolveu Jim votar com Kerlog?"

Miss Astor quis responder mas não pôde. Sentiu uma nuvem turvar-lhe a vista, uma zoeira nos ouvidos, um turbilhão no cerebro. E descaiu para trás, des¬maiada.

— Como as de hoje... murmurei contente com aquele desmaio.

Miss Jane prosseguiu.

— O pânico apossou-se incontinenti do estado-maior elvinista e transformou a sala num rodamoinho de lin¬das baratas tontas. As sabinas entraram a correr de um lado para outro trefegamente a agarrar-se entre si, a gritar. Mas a voz aguda de miss Elvin se fez ouvir e as conteve:

— "Se Evelyn desmaiou, é que recebeu uma terrível noticia, e a única noticia terrível que Evelyn poderia receber é a da adesão de Jim a Kerlog. Logo, estamos derrotadas..."

E os olhos da sabina despediram uma terrível faísca de ódio — não político, não sexual apenas, mas especial, sentimento inédito do mundo e de pura criação elvinista. Miss Elvin cerrou o punho e ergueu-o na direção do Capitólio, ao mesmo tempo em que uivava qual loba ferida:

- "Não importa, Kerlog! Recorreremos aos grandes meios — á sabotagem, á boicotagem do gorila!"

- "Bravos! gritaram as elvinistas, recompostas da momentânea desorientação. Viva o boicote!"

Miss Elvin rangia os dentes.

- "Os infames monstros jamais poderão prever o plano infernal de sabotagem que contra eles organizei! Parecem ignorar, esses orgulhosos gorilas, que a natu¬reza os criou de uma carne toda ela calcanhares de Aquiles. Convido as sabinas presentes para uma reunião amanhã em minha casa a fim de estudarmos a apli¬cação imediata do plano diabólico. Ás oito horas lá todas!"

- "Bravos! Bravos! Sabotemos o gorila!"

A grita fez efeito de sais nos nervos da chefa des¬maiada. Miss Astor entreabriu os olhos, passou as mãos pelo rosto como a afastar as ultimas sombras e, reen¬trando na posse dos seus sentidos, ergueu-se de pé. Circunvagou pelo ambiente o olhar ainda trocado e em tom de mistério exclamou por fim, como se estivesse a falar consigo própria:

— "É indispensável um entendimento com Kerlog. Tudo mudou..."

O espanto das elvinistas atingiu o auge. Estarre¬ceram todas, de olhos arregalados e bocas entreabertas. Não compreendiam nada.

Miss Astor prosseguiu:

- "Temos de nos aliar de novo ao homem..."

- "Nunca! rugiu miss Elvin, escarlate de furor. Transigir, nunca!..."

O relógio da sala interrompeu o tumulto com o pingar das onze — a hora eleitoral.

— "Sim, declarou pausadamente miss Astor. Sim, porque já não se trata de um mero choque político entre as duas facções da raça branca. Trata-se da luva que nos vem de lançar ao rosto a raça negra. Jim Roy neste momento já deve estar eleito Presidente da Republica..."

Se uma granada de gás estupefaciente houvera explodido na sala, outro não seria o aspecto daquelas sabinas apalermadas pelo inaudito da surpresa. Trans¬formaram-se em verdadeiras mulheres de Lot, mudas e imóveis, com os olhos cravados na líder feminina.

Miss Astor continuou:

— "Não me enganavam os meus pressentimentos! Eu senti que Jim traíra. Ide ver na fachada do Capitólio o seu nome vitorioso..."

As elvinistas precipitaram-se para a janela e leram no frontão do monumento o nome de Jim Roy! Depois de 87 presidentes brancos surgia o primeiro negro, eleito por 54 milhões de votos. Miss Astor obtivera 50 milhões e meio e Kerlog 50 milhões e pico. Apesar de disporem de um eleitorado quase duplo do contra¬rio, os brancos perdiam a presidência graças á cisão entre os dois sexos provocada pelo elvinismo...

Foi instantânea e radical a mudança que se operou nas mulheres. Apreenderam num relance todas as conseqüências possíveis do golpe negro e tomaram-se de furiosa crise de sentimentalismo amoroso pelo homem branco, ser mau, opressivo, injusto, não havia duvida, mas afinal de contas o marido milenar da mulher. Mal com ele, pior sem ele. Estava tão longe o hipotético sabino...

Miss Astor tomou a palavra e fez-se a interprete do pensamento dominante.

- "Mulheres! Eis as conseqüências da nossa lou¬cura! Divorciamo-nos do nosso velho companheiro sexual e..."

- "Companheiro ilegítimo!" aparteou miss Elvin.

- "Seja, mas nem por isso menos companheiro. Di¬vorciamo-nos dele, declaramos-lhe guerra, difamamo-lo, e a paixão nos cegou a ponto de não vermos o polvo que espiava a brecha a fim de envolver o Capitólio nos seus tentáculos! Ah, Kerlog, que injusta fui contigo
recusando a fusão partidária que me propunhas! E como fui cruel respondendo ás tuas leais palavras com anfigurís em linguagem sabina! Vejo bem claro agora o nosso erro e, embora reconhecendo as queixas que a mulher tem do macho, também reconheço que sem o concurso dele nada valeríamos no mundo. Bastou um momento de divorcio para que a raça branca se visse nesta horrível situação: apeada do domínio e á mercê de uma raça de pitecos que, essa sim, tem contas terríveis a justar conosco..."

Palmas e bravos estrepitaram. Só miss Elvin, irredu¬tível no seu sonho, conservara-se de pé atrás.

— "E as minhas teorias? uivou ela. Que importa um momentâneo incidente eleitoral em face do fulgor das minhas idéias? Voto contra a aproximação com Kerlog e protesto contra o movimento de fraqueza, essa crise amorosa que vejo nas palavras de Evelyn! Propo¬nho o prosseguimento da luta com redobrado ardor.
Submissão de novo, nunca!..."

Mas nem uma só voz se ergueu para apoiá-la. Suas palavras tiveram como resposta um silencio de cemitério. Estava morto o elvinismo e de cinzas varridas todos aqueles cérebros e corações. Diante do silencio da assembléia ainda mais se exaltou miss Elvin, rompendo em apostrofes violentíssimas contra o "gorila pelado" e o "sentimentalismo ovelhum" das suas companheiras.

Dessa vez não foi o silencio de cemitério que aco¬lheu sua arenga. Foi a assuada.

- "Fora! Abaixo o sabino! Viva o Homo! Viva o macho forte que suplantou o macho fraco!..."

- "Sim, perorou miss Astor, viva o homem! Macho natural ou não, neto do gorila ou não, é ele o nosso marido pela milenar consagração dos fatos. Sempre vivemos ao seu lado, ora escravas, ora deusas, mas como irmãs de peregrinação nesta vida. Peludas que eramos ainda, e lá no fundo das idades já o ajudávamos a afiar o machado de sílex com que nos amparou das agressões do Urso speleus. Comemos juntos bifes crus de megatérios. Juntos nos derramamos por todos os recantos do globo e conseguimos a dominação hoje absoluta. Juntos subimos aos tronos e juntos fomos lançados ás feras do circo. De mãos dadas compusemos á sublime epopéia do amor — poema que principiou com a Vida e só com ela terá fim... O sabino, ainda que existisse, seria um fraco. O raptor valia muito mais do que esse hipotético bicho marinho, só existente, talvez, na ima¬ginação exaltada da nossa querida miss Elvin..."

- "Era o peixe-boi, o pesado animalão que os ho¬mens arpoam no Amazonas..." aparteou miss Dorothy Glynor.

- "O homem é o gorila, o gorila, o gorila..." urrava miss Elvin possessa.

- "Pois viva então o gorila! concluiu miss Astor e os aplausos foram delirantes. Fique miss Elvin com o boi do mar que nós ficaremos com o nosso velho e tradicional gorila. Á Casa Branca!..."

E numa verdadeira revoada precipitou-se para a Casa Branca o bando das ondeantes mamíferas com miss Astor á frente. Só ficou no recinto a sabina teimosa, a bater o pé e uivar para as cadeiras vazias:

— "Gorila, gorila, gorila, gorila..."

Nesse ponto miss Jane parou para tomar fôlego, enquanto eu dizia:

- Toma! Como tenho muita honra de ser neto do meu avô gorila, exulto com a derrota dessa renegada. Mas... e Kerlog, miss Jane? Como recebeu ele a no¬ticia da vitoria do negro?

- O presidente Kerlog recebeu o resultado do pleito com um assombro igual ao das mulheres, embora muito diferente na sua exteriorização. Convicto do apoio de Jim Roy a um dos partidos brancos, chegara a admitir por hipótese o triunfo de miss Astor; mas lá no intimo contava com o seu. De modo que quando na fachada do Capitólio surgiu o nome de Jim Roy, a sen¬sação que o empolgou foi de pesadelo. Kerlog apal¬pou-se e beliscou as carnes a ver se dormia. Não era pesadelo, não. Era coisa pior — fato. E como a hipótese da eleição de um negro nem por sombra lhe houvesse passado pela idéia, o seu desnorteamento fez-se absoluto.

Kerlog reclinou-se sobre a secretária e permaneceu durante alguns instantes imóvel, com a cabeça apoiada nas mãos. Dava tempo a que a idéia nova da eleição de um presidente negro penetrasse em seu cerebro, criando lá pelas circunvoluções um quadro inexistente. Custou a aboletar-se essa idéia. Não cabia em quadro nenhum e punha arrepios em todos perto dos quais passava...

Mas o 87.° Presidente possuía uma solida organiza¬ção mental; reagiu contra o golpe e logo reentrou no controle dos seus espíritos. Tomou um gole d'água e dirigiu a palavra aos atônitos ministros presentes.

— "Chegou afinal a crise prevista ha séculos e de maneira surpreendente. A hipótese que acaba de reali¬zar-se creio que jamais passou pelo espírito de nenhum americano, branco ou preto. É obra exclusiva de Jim Roy e explica a paciência com que vem ele automatizando a massa negra. Mas o fato está consumado. É um desafio, uma luva lançada ao rosto da raça branca, á qual nos cumpre dar troco. Não apresento nenhuma idéia porque não a tenho — ainda não houve tempo de se formarem idéias em meu cerebro. Creio que o mes¬mo se dará com todos os presentes..."

Um movimento geral de cabeças apoiou suas pala¬vras. Todos os ministros se achavam na mesma situa¬ção de espírito.

Kerlog prosseguiu. Fez ver a que terrível impasse a loucura das mulheres arrastara o país, situação insolúvel caso elas persistissem em se "desgorilarem" de sua ascendência.

— "E dado o modo de pensar é falar da líder femi¬nina, disse ele, não prejulgo o que esteja agora se pas¬sando pelo cerebro de miss Evelyn Astor. Mas é indispensável a todo o transe um entendimento com ela. É indispensável promovermos a harmonia dos partidos
brancos, porque só a união da raça branca nos salvará."

O ministro da Paz tomou a palavra (as guerras haviam cessado no mundo depois que aos ministros da Guerra se substituíram os ministros da Paz) e disse:

— "Acho inútil qualquer debate neste momento. A situação é obscura e..."

Não pôde acabar. Um tropel reboou nos corredo¬res. Era o bando elvinista que penetrava, com miss Astor á frente.

Kerlog empalideceu. Os extremismos daquela fac¬ção eram tantos que ele previu qualquer coisa seme¬lhante aos assaltos histéricos das antigas sufragistas britânicas. E apertou o botão da campainha de alarma, chamando a postos os guardas.

Miss Astor avançou para ele. Num instintivo gesto de defesa, Kerlog recuou em sua poltrona, vendo claramente definida a agressão iminente. Os ministros lan¬çaram-se das suas cadeiras em socorro do chefe su¬premo.

Era tarde, Miss Astor agarrara o presidente Kerlog pelo pescoço...

Agarrara-o não para estrangulá-lo, mas para beijá-lo entre lagrimas e soluços de comoção.

— "Kerlog, querido Kerlog! Venho em nome de todas as mulheres pedir perdão ao Homo, em ti repre¬sentado, da loucura a que miss Elvin nos arrastou. Diante dos supremos interesses da raça ofendida, cessa o divorcio sexual. Volta a mulher de novo aos braços do seu velho companheiro de peregrinação pelo mun¬do..."

Mal vindo do espanto, tonto ainda, o presidente Kerlog apenas murmurou:

- "A que horas, miss Astor! A que horas vem falar-me língua compreensível!..."

- "Perdoa, Kerlog! Foi uma nuvem que passou."

- "Mas lá estão as terríveis conseqüências impres¬sas na fachada do Capitólio."

- "Que importa? O que a mão do negro escreveu a tua apagará."

- "Fácil de dizer, miss Evelyn. Dentro da criatu¬ra civilizada dorme um troglodita. Receio que a exas¬peração desperte esse monstro."

- "Temos tudo por nós, o numero e a superiorida¬de mental."

- "Mas temos contra nós o momento, o impulso, a cólera, a vingança — as velhas inferioridades adormecidas mas não mortas. Receio que a America se inunde de sangue...

Miss Astor emudeceu por um momento, com os seios ofegantes. Depois disse:

— "E agora? Que vamos fazer?"

Kerlog respondeu com finura:

— "Vamos vencer. O perigo existia enquanto a pa¬lavra vamos só representava metade da raça branca. Se miss Astor me traz o concurso da metade rebelde, tudo muda ..."

A ex-sabina desprendeu-se do pescoço presidencial e gritou, voltada para as suas companheiras:

— "Cerremos fileiras em torno de Kerlog! É ele o nosso líder supremo — líder da raça, e acaba de traçar o incoercível programa branco: "Vencer!" Viva Kerlog!"

Uma burra delirante saudou as suas palavras.

— "Viva Kerlog! Viva o Homo!"

O ministro da Educação Social interveio malicioso:

- "Alia-se de novo então ao "gorila pelado", miss Astor?

- "Sim, respondeu ela, mais formosa do que nunca, tanto a sua fisionomia irradiava de entusiasmo. Aca¬bamos de fazer uma grande descoberta: o sabino de miss Elvin não passa de um estúpido boi de mar. Viva, portanto, o velho gorila!"

- "Viva! Viva!..."

E a onda feminina derramou-se barulhentamente pelos corredores afora, até despejar-se pelas escadarias.. .

Aliviado de um grande peso Kerlog voltou-se para os ministros e repetiu risonho o verso de Shakespeare:

— "She is false as water,..

- "Mas de muita força catalítica, rosnou o minis¬tro da Equidade. Cura pela ação da presença ..."

O ponto e vírgula com torradas veio interromper naquele dia as revelações de miss Jane. Retirei-me mais interessado do que nunca no desfecho da crise americana do século 23.
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continua… XVIII – O Orgulho da Raça

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.

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