terça-feira, 11 de outubro de 2011

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) XIV - Eficiência e Eugenia


CAPITULO XIV
Eficiencia e Eugenia


— O aspecto da vida americana, continuou miss Jane, mudara muito por efeito das invenções e de um grande principio peculiar ao yankee.

Quem olhasse de um ponto elevado o panorama histórico dos povos, veria, na França, uma flâmula com três palavras; na Inglaterra, um principio diretor, Tradição; na Alemanha, uma formula, Organização; na Asia, um sentimento, Fatalismo. Mas ao voltar os olhos para a América perceberia fluidificado no ambiente um principio novo — Eficiencia.

Só a América encontrara o Sésamo que abre todas as portas. Só a América, portanto, era Ação num mundo a insistir em caminhos errados e sempre a oscilar entre dois pólos — Agitação Estéril e Marasmo Fatalista.

O principio da Eficiencia resolvera todos os problemas materiais dos americanos, como o eugenismo resolvera todos os seus problemas morais. Na operosidade e uniformidade do tipo, aquele povo lembrava a colméia das abelhas. Quasi não havia distinguir um indivíduo de outro, pois tomar um homem ao acaso era ter nas mãos uma poderosa unidade de eficiencia dentro de um admirável tipo de ariano pele-avermelhado.

As mulheres não mais evocavam fisicamente as suas avós, magras umas, outras gordas, esta toda nádegas, aquela uma tábua ou de enormes seios e dentes de cavalo — verdadeira coleção de monstruosidades anatêmicas. Nem recordavam socialmente as pobres cativas de dantes, forçadas a girar no triangulo de ferro — casamento, celibato á força ou promiscuidade.

Finas sem magreza, ágeis sem macaquice, treinadas de músculos por meio de sábios esportes, conseguiram alcançar a beleza nervosa das éguas puro-sangue — o que trouxe a decadência do hipismo. Já não necessitavam os homens de dedicar-se aos cavalos para satisfação da ânsia secreta da beleza perfeita…

– Que pena ter-se perdido o porviroscópio do professor Benson! exclamei. O que eu não daria para uma espiadela nesse maravilhoso futuro!... Lindas, então, assim? perguntei levemente assanhado.

– E hábeis, respondeu miss Jane. Competiam com o homem em todas as profissões num absoluto pé de igualdade, realizando o velho ideal da independência. Os filhos lhes pertenciam e não ao progenitor, sistema matriarcal muito mais dentro da natureza, visto como o filho é mais da mãe do que do pai na proporção de nove meses para meio minuto.

Tossi uma tossezinha de encomenda; miss Jane não o percebeu e continuou:

– O característico mais frisante dessa época, toda via, estava na organização do trabalho. Todos produziam. Muito cedo chegou o americano á conclusão de que os males do mundo vinham de três pesos mortos que sobrecarregavam a sociedade — o vadio, o doente e
o pobre. Em vez de combater esses pesos mortos por meio do castigo, do remédio e da esmola, como se faz hoje, adotou solução muito mais inteligente: suprimi-los. A eugenia deu cabo do primeiro, a higiene do segundo e a eficiencia do ultimo. Aliviada da carga inútil que tanto a embaraçava e arfeava, pôde a América aproximar-se de um tipo de associação já existente na natureza, a colméia — mas a colméia da abelha que raciocina.

– Que maravilha! exclamei pesaroso de ter vindo ao mundo cedo demais. E o governo, miss Jane? Deixou de ser essa calamidade que é hoje?

– Os princípios da eficiencia tambem haviam penetrado no organismo governamental. Deixou o governo de sugerir a lembrança dos hediondos "sistemas de parasitismo" de outrora e de hoje, como a realeza de França ou o devorismo orçamentário de certas repúblicas nossas conhecidas, onde fazer parte do estado é conquistar o direito à inação da piolheira vitalícia — dormir, apodrecer na sonolência da burocracia que não espera, não deseja, não quer, não age — suga apenas. Tudo isso desapareceu, todas essas baixas formas de parasitismo. Tornou-se o estado americano uma organização em coisa nenhuma diversa das organizações particulares. Apenas maior e com funções privativamente suas.

– Sempre sob o sistema representativo?

– Sim. O sistema representativo persistiu. Mas só eram eleitos homens cujo viver social os apontava como seres de escol pela força e equilibrio do cérebro. Não constituía uma situação sujeita a disputas, o ser deputado ou senador. Era uma contingência. Os homens de elite viam-se colocados nesses postos naturalmente, como o melhor músico das orquestras sobe naturalmente á cadeira da regência. O equilibrio mental tornou-se perfeito — mas apenas da parte dos homens. As mulheres, não obstante o levantamento físico e moral, permaneciam variáveis como no tempo de Francisco I.

– Souvent femme varie…

– Sim. Conquistaram a mais perfeita igualdade de direitos, mas ondeavam, arrastadas pelo vento das ideias. Trocaram o souvent do bom Francisco I pelo toujours de miss Elvin. Como a simplicidade dos trajes fizera desaparecer a hoje obsedante preocupação da moda, talvez em virtude do vinco mental elas mudaram a moda para o campo das ideias. O elvinismo, por exemplo, avassalou as mulheres americanas com a tirania do nosso cabelo á la garçonne. Excelentes mães de família e ótimas esposas batiam-se pelo "sabino" com inconsciência de pasmar. Mas chegadas em casa despiam o cérebro da extravagância e beijavam na testa o Homo que na rua vinham de condenar como "infame raptor".

O orgão de miss Elvin — Remember sabino! mantinha a exaltação dos espíritos num constante estado de fervura.

– Ainda havia jornais nesse tempo?

– Sim, mas jornais nada relembrativos dos de hoje. Eram irradiados e impressos em caracteres luminosos num quadro mural existente em todas as casas.

– E os cegos?

– O cego ficou para trás, Cegueira, mudez, surdez, estupidez, tudo isso não passava de reminiscências dum tempo de que os homens sorriam com piedade.

O rádio que temos hoje é um simples ponto de partida. Vale como valem para a eletricidade moderna as primeiras experiencias de Volta. Descobriram-se novas ondas, e o transporte da palavra, do som e da imagem, do perfume e das mais finas sensações táteis, passou a ser feito por intermédio delas. A consequência lógica foi uma grande transformação da vida. Pelo sistema atual vai o homem para o serviço, para o teatro, para o concerto — um ir e vir que constitui um enorme desperdício de energia e é o criador dos milhões de veículos atravancadores do espaço, bondes, autos, bicicletas, trens, aviões e outros. Com a fecunda descoberta das ondas hertzianas e afins, e sua consequente escravização aos interesses do homem, o ir e vir forçado se reduziu a escala mínima. O serviço, o teatro, o concerto é que passaram a vir ao encontro do homem. Foi espantosa a transformação das condições do mundo quando a maior parte das tarefas industriais e comerciais começou a ser feita de longe pelo rádio-transporte. Para dar uma ideia do que isso representava de economia de esforço e tempo, basta vermos o que era o jornal de miss Elvin. Pelo sistema atual, o colaborador ou escreve em casa o seu tópico ou vai escreve-lo na redação; depois de escrito, passa-o ao compositor; este o compõe passa-o ao formista, este o enforma e passa-o ao tirador de provas; esse tira as provas e manda-o ao revisor; este o revê e envia-o ao corretor; este faz as emendas e... e a coisa não acaba mais! Ê uma cadeia de incontáveis elos, isto dentro das oficinas, pois que o jornal na rua dá inicio á nova cadeia que desfecha no leitor — correio, agentes, entregadores, vendedores, o diabo.

– Já estive numa oficina de jornal e sei o que é isso. Puro inferno…

– Pois toda esta complicação desapareceu. Cada colaborador do Remember radiava de sua casa, numa certa hora, o seu artigo, e imediatamente suas ideias surgiam impressas em caracteres luminosos na casa dos assinantes.

– Que maravilha!…

– Sim, não houve industria que como a do jornal não sofresse a influencia simplificadora do radio-transporte — e isso tirou ao viver quotidiano a sua velha feição de atropelo e tumulto.

As ruas tornaram-se amáveis, limpas e muito mansas de tráfego. Por elas deslizavam ainda veículos, mas raros, corno outrora nas velhas cidades provincianas de pouca vida comercial. O homem tomou gosto no andar a pé e perdeu os seus hábitos antigos de pressa. Verificou que a pressa é indice apenas de uma organização defeituosa e anti-natural. A natureza não criou a pressa. Tudo nela é sossegado. Parece coisa muito evidente isto; no entanto foi a maior descoberta que fez o povo mais apressado do mundo…

– — Realmente! exclamei, chocado pelo imprevisto daquele aspecto do futuro. Eu que por assim dizer moro na rua, só com este quadro da rua futura já me estou assombrando com o horror da rua moderna. E, no entanto, se miss Jane nada me revelasse continuaria a ter como muito natural o tumulto de hoje.

– O hábito não nos deixa ver os defeitos, e daí a vantagem de convulsões como a de miss Elvin. O grande obstáculo ao progresso sempre foi o hábito, a ideia feita, a preguiça de constante exame do único problema material da vida — o do transporte.

– Único?

– Sim, único. Tudo é transporte na vida, senhor Ayrton, e o tumulto de hoje vem das imperfeições dos nossos sistemas de transporte. Tudo é transporte! A minha voz transporta ideias do meu cérebro para o seu. Esse livro que o senhor tem nas mãos é um sistema de transporte de impressões mentais. Que faz a firma Sá, Pato & Cia. senão transportar mercadorias de um lado para outro, com o fim ultimo de transportar para as burras dos sócios o dinheiro dos clientes? E que é o dinheiro senão um maravilhoso e engenhosissimo meio de transporte?

– For isso são as moedas redondas…

– Rodinhas... O homem deu o primeiro grande passo em matéria de transporte com a invenção da roda. Mas ficou nisso. Repare que a nossa civilização industrial se cifra em desenvolver a roda e extrair dela todas as possibilidades. Daqui a séculos, quando for possível ao homem uma ampla visão do seu panorama histórico, todo este período que vem do albor da história até nós e ainda vai prolongar-se por muitas gerações receberá o nome de Era da Roda. Mas do ano 2200 em diante começará o seu declínio e em 3000 e tantos estará passada. Num corte anatômico dessa época vi certo museu nos arredores de Pittsburgh que muito me impressionou — o Museu da Roda. Dormiam nas vitrinas, como dormem hoje os machados de sílex dos nossos avós, as modalidades infinitas de rodas sobre as quais ainda gira hoje a civilização, desde o rodízio brutesco dos carros de boi até a mínima engrenagem dos relógios de pulso. O rádio matará a roda, concluiu miss Jane.

Pus-me a refletir naquilo e a comparar a estreiteza do meu cérebro com a amplidão do cérebro da filha do professor Benson. Quantas rodas tinha ele mais do que o meu! E como rodavam bem lubrificadas as rodinhas do cérebro de miss Jane, todas postas sobre mancais de bilhas…

– De tudo quanto miss Jane acaba de expor concluo que a vida nos Estados Unidos passou a ser um céu aberto, comentei eu.

Não vou até lá, contraveio ela. Havia uma pedra no sapato americano: o problema étnico. A permanência no mesmo território de duas raças dispares e infusiveis perturbava a felicidade nacional. Os atritos se faziam constantes e, embora não desfechassem como
outrora nas violências da Ku-Klux-Klan, constituíam um permanente motivo de inquietação.

A ideia do expatriamento para o vale do Amazonas tinha um ponto fraco: só podia ser voluntária e o negro não se mostrava inclinado a trocar a cidadania americana por outra qualquer. O processo cientifico de embranquece-los aproximava-os dos brancos na côr, embora não lhes alterasse o sangue nem o encarapinhamento dos cabelos. O desencarapinhamento constituía o ideal da raça negra, mas até ali a ciência lutara em vão contra a fatalidade capilar. Se isso se desse, poderia o caso negro entrar por um caminho imprevisto, a perfeita camouflage do negro em branco, Tal saída, entretanto, era apenas um sonho dos imaginativos impenitentes. E como a repartição do país em duas zonas não fosse forma aceita pelos brancos, iam os Estados Unidos entrar no seu 88.° período presidencial com o mesmo problema que trezentos e trinta e nove anos antes preocupara o grande George Washington.

Enquanto miss Jane falava, naquele tom impessoal e frio de sábio a fazer conferência pública, toda ela cérebro e cultas expressões na boca, eu, humano que sou, envolvia-a nos meus ternos olhares de carneiro amoroso, e essa minha excessiva atenção á parte corpórea da encantadora vidente me fez perder muita coisa interessante das suas revelações. Distraia-me, preso àquele lindo presente de olhos azuis sempre a pairar pelas eras futuras. Quando, por exemplo, ela entrou a descrever o tipo dos negros descascados do ano 2228, confesso que perdi metade das suas observações. Achava-me no momento a namorar o mimoso lóbulo da sua orelha esquerda, onde brincava um raio de sol. Esse fio de luz acendia-lhe em ouro a penugem finíssima e o tornava do róseo translúcido de certos veios da ágata. Perdi-me no gracioso pedacinho de carne, como a sua dona andava perdida em plena despigmentação do século XXIII. A poesia falou em mim e uma imagem lírica entreabriu a pieguice das suas pétalas. Lembrei-me do baiser de Rostand, point rose sur l'i du verbe aimer, e perpetrei coisa melhor: depor naquele ninho de colibri o ovinho de um beijo...

Depois filosofei e pareceu-me apreender uma grande verdade: a beleza não passa de um total de parcelas que a mão da Harmonia soma.

Que terríveis torneiras abre o amor!

Mas ao chegar naquele ponto das suas revelações, miss Jane ergueu os olhos para o relógio. Em seguida apertou o botão da campainha.

Veio um criado.

— Chá, disse ela.

Eu já sabia da significação do chá, engenhoso ponto e virgula com que miss Jane punha fim ás nossas palestras domingueiras.

Regressei á cidade mais apaixonado do que nunca pela encantadora filha do velho sábio — sábia tambem ela, mas, ai! bem pouco feminina... O Amor que ardia em meu peito não a contagiava. Talvez nem sequer o percebesse. Ou percebera desde o inicio e dissimulava? Mulher, mulher... Sabina vingativa — false as water...

Fiquei na dúvida. Seria miss Jane um puro espirito, uma vibração de éter jamais interferida, ou tinha nervos como as demais, coração, sensibilidade como todas as mulheres?

No dia seguinte, no escritório, notou o patrão o ar distante com que eu colecionava umas faturas. Meu pensamento estava longe da firma, vogando em pleno período da simbiose desmascarada. Não sei por que motivo o senhor Sá mostrava-se nesse dia alegre e familiar. Vira o passarinho verde, com certeza. Tão familiar e alegre que em certo momento me atrevi a fazer--lhe uma pergunta:

— Acha o senhor Sá que é a mulher a fêmea natural do homem?

O honrado negociante não respondeu, mas fulminou-me com tais olhos que achei prudente esgueirar-me para a sala vizinha com o pacote de faturas na mão. Vim a saber depois que em conferência com o senhor Pato ele chegara á conclusão de que a queda no precipício me tinha evidentemente "perturbado as faculdades mentais"...
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continua… XV – Vésperas do Pleito

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.

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