Poemas
Ao Euclides Bandeira
BAUCIS E FILEMON
Há de a Morte chegar um dia... E pois que bom
Se fosse como a de Baucis e Filemon!
Outono. A tarde vai num carro de veludo,
Lírio, rosa, carmim, e ouro, sobretudo.
A tarde gira, no passeio vesperal,
A luminosa flor estética do Mal.
Zéfiro, vendo-a, em seus vestidos sopra assim
Da flauta rude uns sons de folha de jasmim,
Uns sons de violeta e anêmona e açucena,
Uns sons que inda são mais leves do que uma pena,
E tão bons, e tão bons, que ao longe o mar semelha,
A subir e a descer, um rebanho de ovelha...
E os seus vestidos que são alvos como a paz,
Tingem-se de uma cor de sangue de lilás.
Ó tarde linda, ó tarde linda como Vênus,
Tarde de olhos azuis e de seios morenos.
Ó tarde linda, ó tarde doce que se admira,
Como uma torre de pérolas e safira.
Ó tarde como quem tocasse um violino.
Tarde como Endimion, quando ele era menino.
Tarde em que a terra está mole de tanto beijo,
Porém querendo mais, nervosa de desejo...
Tarde como no dia em que Júpiter louro,
Por amor de Danaê, desfez-se todo em ouro.
Tarde de se cair de joelhos, por encanto,
E de se lhe beijar a ponta de seu manto.
Ó que tarde sutil! ó luz crepuscular!
Com rosas no jardim e cisnes a boiar...
Outono lindo, lindo... Ao longo dos caminhos,
Como sempre, eles dois, velhinhos, bem velhinhos,
Inda mais uma vez olham essa paisagem,
Que, por assim dizer, é a sua própria imagem,
Terna como eles e com seus reflexos vagos
De ternura a tremer por sobre a flor dos lagos...
Paisagem verde, inda mais verde que um vergel,
Com abelhas, com sol, e com favos de mel...
“Que tarde linda, meu amor, que lindo outono!
Quem me dera dormir o derradeiro sono!”
– “Eu também, Filemon,” sorrindo Baucis diz,
“Já estou cansada, vê, de tanto ser feliz!” –
“Ó deuses imortais! ó piedosos céus!”
Mal, porém, mal porém tinham falado, quando
Pasmo viu Filemon Baucis se transformando
Numa tília, também ao mesmo tempo que ela
O via converter-se em carvalho, e singela,
Saudosamente, os dois se disseram adeus!
Janeiro – 1905
ESTÁTUA
... e olhou sua mulher para trás dele:
e converteu-se numa estátua de sal.
O salgueiro chora,
E o vento chora fino no salgueiro,
O vento chora triste... – Um Cavaleiro
(Ia passando sem olhar) olha e demora...
“Ah! – consigo murmura –
Nestes caminhos lôbregos, de joelhos,
Eu caminhei por sobre incêndios de loucura,
Num Éden prateado e com frutos vermelhos!
Outrora aqui vibrei meus lírios de alvoroço!
A lança de ouro às mãos rutila! à fronte o casco
De ouro a relampejar! e moço! e tudo moço!
Ó moço de Damasco! ó sonho de Damasco!
Turbilhões sensuais de proserpinas doidas!
Cantáridas em flor, brancas, morenas, todas
Luxurioso amei! amei! Eram tão belas!
– Ó Poentes de Outono! ó Luas! ó Estrelas!
Nuvem, que uma tormenta azulada de beijos
Eletriza, lirial nuvem dos meus desejos!
Na minha alma, cruéis, dormem fundos espaços,
Cova sinistra! Cruz Vermelha dos Abraços!
Barco esguio a dançar, carregado de aroma,
Seda, púrpura, arminho e veludo da Pérsia,
– Leito brando da minha angústia e minha inércia,
Em balanço, ondulando, uma entre mil assoma.
Alva!... não a beijei!... Minha vida foi como
Em choupos verdes a correr um passarinho.
Para quando guardei o acre, esquisito pomo,
Ó Desejo escarlate! ó flor cheia de espinho?
Ora o Valpúrgio!... Só, como espectro de lua,
A Lembrança!... um palor diluído em folha rubra!
Quando evitar que o tempo o mármore polua,
E o musgo cresça, e as almas frágeis cubra?
Tudo em perfume se resume, que apunhala,
E a Demência derrama em asperges de hissope!
– Eia pois! eia pois! a caminhos de opala!...”
E o Cavaleiro toca o cavalo a galope.
Foge. Um Anjo, porém, melancólico implora...
Chama-o de longe um Anjo: – Olha mais uma vez!
Estas ruínas, ó Cavaleiro, bem vês,
São tua adaga de ouro e teu arnês de outrora! –
E era o Anjo a açucena endoidecida no Horto,
E a sua voz, luar do Paraíso Perdido!...
Luar de um círio sobre o azul de um lírio morto...
Luar de Além, do Além, além do Indefinido!...
Olha. Não vendo então que via, por seu mal,
O Nu... mais nu! O Nu de um nu de Apodros nuda!
Um esqueleto nu!...
E ei-lo que se transmuda,
– Outra mulher de Ló – numa Estátua de sal!
Abril – 1898
AZAR
A galope, a galope, o Cavaleiro chega:
Rei, ó meu bom senhor! com tua filha cega.
– Hoje, teu adivinho assim traçou no ar:
A frota d’El-Rei perdeu-se no alto mar!
Eu, ao descer a noite, ouvi cantar o galo:
Foi a Rainha que fugiu com um teu vassalo.
Teus exércitos, ó! as brônzeas legiões,
Morreram nos areais da Líbia como leões!
Nos teus domínios sopra o vento Noroeste:
A mangra, o gafanhoto, a seca, a alforra, a peste.
Uivam! Lobos? o Mar? o Vento? o Temporal?
Não. É a plebe que arrasta o teu manto real.
Lá vêm as três, ó Rei, lá vêm as três donzelas...
Tende piedade, meus irmãos, orai por elas!
Vêm tão brancas dizer que as noras sensuais
D’El-Rei mataram seus maridos com punhais.
Tuas pratas, teu ouro, e mais ricas alfaias,
Roubam do teu palácio os fâmulos e as aias.
Teu diadema, o cetro, as plumas e os Broquéis,
Em poeira, e sangue, e sob a pata dos corcéis!
O povo reza, que doçura! É bom que reze!
Pela tua alma... Já são horas... Quantas?... Treze.
Maldito seja quem Trono nem Reino tem!
Maldito seja o Rei! Maldito seja! Amém!
No vinho que te dão, e no teu melhor pomo,
No manjar mais custoso, onde entre o cinamomo,
Na linfa clara, vê, no leito ebúrneo, sei,
Nas palavras, no ar, dão-te veneno, Rei!
Ouvem os Arlequins missa, todos de tochas,
E estão vestidos de sobrepelizes roxas.
Resmungam baixo teu nome as velhas, e assim
Queimam em casa, cruz! a palma e o alecrim.
Estão rezando por ti muitos padre-nossos;
Os cães estão, porém, à espera de teus ossos.
Ó ventos! ó corvos! que estais grasnando no ar!
Eis o cadáver do bom Rei de Baltazar!
Dlom! dlem! dlom! dlem! Ouve, bom Rei, de serro a serro
Os sinos dobram, ai! dobram por teu enterro.
Ó ventos! ó corvos! que estais grasnando no ar!
Eis o cadáver do bom Rei de Baltazar!
Ventos, ó funerais! ventos, lamentos roucos,
Ó ventos roucos, ó redemoinhos loucos!
Dlom! dlem! dlom! dlem! Bom Rei, teus ossos não são teus,
Nem o teu trono é teu! Louvado seja Deus!
Nem a tua alma é tua, ó Rei, depois de morto,
Pois demônios estão dançando num pé torto!
Maldito seja quem Trono nem Reino tem!
Maldito seja o Rei! Maldito seja! Amém!
E a galope, a galope, o Cavaleiro esguio
Vai pregar a outro Reino: a Doença, a Noite, o Frio!
Julho – 1898
Há de a Morte chegar um dia... E pois que bom
Se fosse como a de Baucis e Filemon!
Outono. A tarde vai num carro de veludo,
Lírio, rosa, carmim, e ouro, sobretudo.
A tarde gira, no passeio vesperal,
A luminosa flor estética do Mal.
Zéfiro, vendo-a, em seus vestidos sopra assim
Da flauta rude uns sons de folha de jasmim,
Uns sons de violeta e anêmona e açucena,
Uns sons que inda são mais leves do que uma pena,
E tão bons, e tão bons, que ao longe o mar semelha,
A subir e a descer, um rebanho de ovelha...
E os seus vestidos que são alvos como a paz,
Tingem-se de uma cor de sangue de lilás.
Ó tarde linda, ó tarde linda como Vênus,
Tarde de olhos azuis e de seios morenos.
Ó tarde linda, ó tarde doce que se admira,
Como uma torre de pérolas e safira.
Ó tarde como quem tocasse um violino.
Tarde como Endimion, quando ele era menino.
Tarde em que a terra está mole de tanto beijo,
Porém querendo mais, nervosa de desejo...
Tarde como no dia em que Júpiter louro,
Por amor de Danaê, desfez-se todo em ouro.
Tarde de se cair de joelhos, por encanto,
E de se lhe beijar a ponta de seu manto.
Ó que tarde sutil! ó luz crepuscular!
Com rosas no jardim e cisnes a boiar...
Outono lindo, lindo... Ao longo dos caminhos,
Como sempre, eles dois, velhinhos, bem velhinhos,
Inda mais uma vez olham essa paisagem,
Que, por assim dizer, é a sua própria imagem,
Terna como eles e com seus reflexos vagos
De ternura a tremer por sobre a flor dos lagos...
Paisagem verde, inda mais verde que um vergel,
Com abelhas, com sol, e com favos de mel...
“Que tarde linda, meu amor, que lindo outono!
Quem me dera dormir o derradeiro sono!”
– “Eu também, Filemon,” sorrindo Baucis diz,
“Já estou cansada, vê, de tanto ser feliz!” –
“Ó deuses imortais! ó piedosos céus!”
Mal, porém, mal porém tinham falado, quando
Pasmo viu Filemon Baucis se transformando
Numa tília, também ao mesmo tempo que ela
O via converter-se em carvalho, e singela,
Saudosamente, os dois se disseram adeus!
Janeiro – 1905
ESTÁTUA
... e olhou sua mulher para trás dele:
e converteu-se numa estátua de sal.
O salgueiro chora,
E o vento chora fino no salgueiro,
O vento chora triste... – Um Cavaleiro
(Ia passando sem olhar) olha e demora...
“Ah! – consigo murmura –
Nestes caminhos lôbregos, de joelhos,
Eu caminhei por sobre incêndios de loucura,
Num Éden prateado e com frutos vermelhos!
Outrora aqui vibrei meus lírios de alvoroço!
A lança de ouro às mãos rutila! à fronte o casco
De ouro a relampejar! e moço! e tudo moço!
Ó moço de Damasco! ó sonho de Damasco!
Turbilhões sensuais de proserpinas doidas!
Cantáridas em flor, brancas, morenas, todas
Luxurioso amei! amei! Eram tão belas!
– Ó Poentes de Outono! ó Luas! ó Estrelas!
Nuvem, que uma tormenta azulada de beijos
Eletriza, lirial nuvem dos meus desejos!
Na minha alma, cruéis, dormem fundos espaços,
Cova sinistra! Cruz Vermelha dos Abraços!
Barco esguio a dançar, carregado de aroma,
Seda, púrpura, arminho e veludo da Pérsia,
– Leito brando da minha angústia e minha inércia,
Em balanço, ondulando, uma entre mil assoma.
Alva!... não a beijei!... Minha vida foi como
Em choupos verdes a correr um passarinho.
Para quando guardei o acre, esquisito pomo,
Ó Desejo escarlate! ó flor cheia de espinho?
Ora o Valpúrgio!... Só, como espectro de lua,
A Lembrança!... um palor diluído em folha rubra!
Quando evitar que o tempo o mármore polua,
E o musgo cresça, e as almas frágeis cubra?
Tudo em perfume se resume, que apunhala,
E a Demência derrama em asperges de hissope!
– Eia pois! eia pois! a caminhos de opala!...”
E o Cavaleiro toca o cavalo a galope.
Foge. Um Anjo, porém, melancólico implora...
Chama-o de longe um Anjo: – Olha mais uma vez!
Estas ruínas, ó Cavaleiro, bem vês,
São tua adaga de ouro e teu arnês de outrora! –
E era o Anjo a açucena endoidecida no Horto,
E a sua voz, luar do Paraíso Perdido!...
Luar de um círio sobre o azul de um lírio morto...
Luar de Além, do Além, além do Indefinido!...
Olha. Não vendo então que via, por seu mal,
O Nu... mais nu! O Nu de um nu de Apodros nuda!
Um esqueleto nu!...
E ei-lo que se transmuda,
– Outra mulher de Ló – numa Estátua de sal!
Abril – 1898
AZAR
Ao Silveira Neto
A galope, a galope, o Cavaleiro chega:
Rei, ó meu bom senhor! com tua filha cega.
– Hoje, teu adivinho assim traçou no ar:
A frota d’El-Rei perdeu-se no alto mar!
Eu, ao descer a noite, ouvi cantar o galo:
Foi a Rainha que fugiu com um teu vassalo.
Teus exércitos, ó! as brônzeas legiões,
Morreram nos areais da Líbia como leões!
Nos teus domínios sopra o vento Noroeste:
A mangra, o gafanhoto, a seca, a alforra, a peste.
Uivam! Lobos? o Mar? o Vento? o Temporal?
Não. É a plebe que arrasta o teu manto real.
Lá vêm as três, ó Rei, lá vêm as três donzelas...
Tende piedade, meus irmãos, orai por elas!
Vêm tão brancas dizer que as noras sensuais
D’El-Rei mataram seus maridos com punhais.
Tuas pratas, teu ouro, e mais ricas alfaias,
Roubam do teu palácio os fâmulos e as aias.
Teu diadema, o cetro, as plumas e os Broquéis,
Em poeira, e sangue, e sob a pata dos corcéis!
O povo reza, que doçura! É bom que reze!
Pela tua alma... Já são horas... Quantas?... Treze.
Maldito seja quem Trono nem Reino tem!
Maldito seja o Rei! Maldito seja! Amém!
No vinho que te dão, e no teu melhor pomo,
No manjar mais custoso, onde entre o cinamomo,
Na linfa clara, vê, no leito ebúrneo, sei,
Nas palavras, no ar, dão-te veneno, Rei!
Ouvem os Arlequins missa, todos de tochas,
E estão vestidos de sobrepelizes roxas.
Resmungam baixo teu nome as velhas, e assim
Queimam em casa, cruz! a palma e o alecrim.
Estão rezando por ti muitos padre-nossos;
Os cães estão, porém, à espera de teus ossos.
Ó ventos! ó corvos! que estais grasnando no ar!
Eis o cadáver do bom Rei de Baltazar!
Dlom! dlem! dlom! dlem! Ouve, bom Rei, de serro a serro
Os sinos dobram, ai! dobram por teu enterro.
Ó ventos! ó corvos! que estais grasnando no ar!
Eis o cadáver do bom Rei de Baltazar!
Ventos, ó funerais! ventos, lamentos roucos,
Ó ventos roucos, ó redemoinhos loucos!
Dlom! dlem! dlom! dlem! Bom Rei, teus ossos não são teus,
Nem o teu trono é teu! Louvado seja Deus!
Nem a tua alma é tua, ó Rei, depois de morto,
Pois demônios estão dançando num pé torto!
Maldito seja quem Trono nem Reino tem!
Maldito seja o Rei! Maldito seja! Amém!
E a galope, a galope, o Cavaleiro esguio
Vai pregar a outro Reino: a Doença, a Noite, o Frio!
Julho – 1898
Fonte:
Emiliano Perneta. Ilusão e outros poemas. Re-edição Virtual. Revista e atualizada por Ivan Justen Santana. Curitiba: 2011
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Amo essa poesia, página 100
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