sábado, 5 de novembro de 2011

Júlia Lopes de Almeida (Carta)


"Minha querida.

Venho do circo. Lá ao fundo, na noite escura, em uma baixada do morro, há ainda um clarão avermeIhado rompendo o toldo e as paredes de lona suja, onde a rapaziada do bairro assobia ao ritmo da charanga desafinada. As personagens da pantomima esbordoam-se na última cena, fazendo voar as cabeleiras e as longas abas das casacas imundas. O povo ri, mas começa a voltar costas ao espetáculo.

Vêem já umas lanternas de doceiras trôpegas pela encosta, como estrelinhas cansadas. No meio da treva, mal atenuada pelos espaçados lampiões de gás, diviso as linhas ondeantes do morro, de onde escorre o aroma agreste das plantas, que o relento refresca e ativa.

Sinto-me triste; e a placidez da noite silenciosa, acolhe a minh'alma como um seio materno. Nunca a escuridão me pareceu mais doce; posso mostrar ao céu a amargura da minha face, porque só Deus a vê, e deixar que o desalento do meu
espírito se infiltre e transpareça no meu corpo.

Quem há que não tenha tido, ao menos, uma hora dessas, em que toda a força vital parece esgotada e não nos resta nem ao menos a vontade de reagir?

A meu lado uma voz fala, como um rumor continuado de água rolando em pedregulhos baixos. Mal me atrevo a esboçar um gesto com que lhe responda.

Decididamente a tristeza é o agente da preguiça!

A última bexiga da pantomima deve ter rebentado agora nas costas do estalajadeiro, que era velhaco e sonso. Calou-se a charanga, e o clarão rosado do circo sumiu-se de repente na treva. Aumenta a bulha de passos; ouço uma voz dizendo:

— O palhaço é muito engraçado!

Eu por mim achei-o estúpido, repetidor de trapaças antigas, de um rancismo bolorento. Engraxou-se mal, não tocou ao violão e pouco dançou da chula. Mas a razão não estaria do meu lado; a razão nunca está do lado da gente triste.

O palhaço devia ter cumprido a sua missão. Lembrei-me de ter visto torcer-se toda, em um acesso de hilaridade, uma espectadora velha, expondo no auge da expansão o seu único dente descarnado e longo. Outras caras da arquibancada foram surgindo na minha memória.

Olhar para os espectadores é, em certos espetáculos, o melhor espetáculo, e o único pitoresco num circo de roça.

O rosto dos velhos tem, sobretudo uma cândida expressão de deleite, mais demonstrativa de enlevo que os das crianças mesmo. A alegria desabrocha-lhes por entre as gilhas da face e as pálpebras franzidas, com o frescor viçoso de flores em ruínas. Aquela alegria curiosa, que eu invejo causa-me, entretanto uma certapiedade... É a profanação do uso, a abjeção do gosto. Parece-me que aquelas cozinheiras e operárias que pasmam radiantes para as misérias da arena só se deveriam sentir à vontade em um circo de sedas claras, com festões de lâmpadas elétricas e ramos de violetas em cada camarote...

Um equilibrista fecha a primeira parte, sustentando maravilhosamente uma pena na ponta do nariz.

A vaidade do homem devia ser grande naquele indivíduo! Cruzaram-se fardas de belbutina e casacas lutuosas dos ajudantes na arena.

Cerrei as pálpebras, aspirei o aroma de meu lenço e fiz de conta que estava vendo a pompa circensis com que se precediam os jogos no circo de Maxencio... e a ilusão talvez se prolongasse, se uma preta moça e tafula se não lembrasse de roçar pelos meus joelhos, exalando o cheiro de um raminho de arruda espetado na carapinha. Entonteci; e logo tudo me pareceu ignóbil: as desafinações da charanga, as pernas grossas das écuyères mal calçadas o ondear das fitas e das tarlatanas baratas, a repetição das sortes tantas vezes vistas, os assobios do povo, os estalos dos chicotes e das bofetadas, o ruído da mastigação de um vizinho, que enchia a boca de mendobi, o fumo dos cigarros, a deficiência das luzes, e os pregões de um espanhol maltrapilho anunciando biscoitos.

Restabelecido o equilíbrio, notei com surpresa que alguns daqueles saltimbancos tinham logrado prender-me a atenção em uma matinée do S. Pedro. Sim, era a mesma gente, era o mesmo trabalho. Somente a atmosfera através da qual eu os via era outra. Não se comia mendobi, mas pastilhas de chocolate; a sala era clara, limpa, e nos camarotes apinhavam-se crianças lavadas e cheirosas. Nesse dia os artistas tinham trabalhado bem, pareceram-me até pessoas de qualidade, que vinham por excepcional obséquio divertir a gente...

Para penitência relembro uma página de Tolstoi, sinto sobre o meu ombro fraco a sua mão pesada e como que o seu espírito sussurra ao meu:

— A alegria e a verdade estão neste barracão armado à pressa, como uma tenda de campanha, para a cambalhota e as miséria mal disfarçadas. Sedas? Flores? Luzes elétricas! São fantasias para gente de casaca, que não sabe rir. Só a gente rude conserva frescura e sensibilidade de alma. Os únicos velhos que têm riso gostoso são os ignorantes. Vai-te embora.

E eu vim-me embora, pensando nessas coisas quando, eis passa por mim um médico ilustrado a quem ouço dizer:

— Pois senhores, o palhaço tem graça! A opinião dos homens confunde-me. O homem, pelo simples motivo de ser homem, está determinado que tenha de tudo uma visão mais positiva, mais clara e mais perfeita do que a minha. Relembro a cena principal do clown:

Um sujeito de casaca e de chicote dá-lhe a incumbência de levar um embrulho de doces a certa moça...

Procuro fixar o resto: não posso foge-me a idéia para outro assunto.

O céu está estrelado, o ar doce, o aroma das magnólias sai dos jardins e envolve-me toda, como uma túnica invisível, que dá à minha alma uma pureza de Vestal.

Pirilampos salpicam o ar de fulgurantes esmeraldas viajoras. Chego ao alto e volto a vista para o local do circo: tudo em trevas; a noite como que suspira de alívio.

Passa-me ainda uma vez pelo espírito o romance explorado pelos velhos contistas: o riso agudo do palhaço que se rebola na arena e que se transmuda em soluços quando nos intervalos se atira sobre o corpo moribundo do filho; as sovas nas crianças roubadas, nos estudos da acrobacia, e o pudor das écuyères, virgens e recatadas.

Para mim, todo o palhaço tem sempre no bastidor um filho moribundo e todas as crianças sinais de pancada sob os maillots rosados.

E é talvez por isso que este circo de roça, grotesco, e em que as misérias se mostram tanto a nu, não consegue divertir-me nem dissipar-me a tristeza.

À hora em que vou chegando a casa, está o palhaço, e estão os seus companheiros refazendo as forças com o bife e o vinho da ceia, e rindo-se, ainda por cima, porque a féria foi boa.

Entretanto, (oh! Prodígios da imaginação enfeitiçada pelos romancistas!) como que distingo no ar, lá muito perto do céu, o senhor clown enfarinhado e choroso sustentando nos braços um filhinho morto!

E como são horas de dormir, digo-te adeus!"

Tua
Francisca

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Livro das Donas e Donzelas. Belém/PA: Núcleo de Educação a Distancia da Universidade da Amazonia (UNAMA).

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