domingo, 13 de novembro de 2011

Quintino Lopes Castro Tavares (Multiculturalismo e Diferença)


(excerto do artigo do autor “Multiculturalismo”)

A diferença é um dos conceitos centrais do multiculturalismo. É necessário saber como tratá-la, qual lugar ela ocupa no sistema social, se é um fator de enobrecimento ou empobrecimento, um trunfo ou uma ameaça. Não se trata simplesmente de um conceito filosófico ou uma forma de semântica. Nas palavras de Semprini, “a diferença é antes de tudo uma realidade concreta, um processo humano e social, que os homens empregam em suas práticas cotidianas e encontra-se inserida no processo histórico”.32

Conforme determinada teoria do liberalismo (L1), as pessoas têm iguais liberdades de ação, sob a forma de direitos fundamentais e, nos casos litigiosos, os tribunais decidem a quem corresponde o direito ou os direitos. Deste modo, a igual consideração toma corpo apenas sob a forma de uma autonomia protegida juridicamente de que cada um pode se valer para construir e/ou levar adiante seu projeto de vida. Trata-se do Liberalismo do tipo desenvolvido por Rawls ou Dworkin, que exige um sistema jurídico eticamente neutral, capaz de assegurar a cada um oportunidades iguais para defender sua própria concepção do bem.

A tradição liberal democrática de direito (L1), como já dissemos, se constituiu como um ideal de liberdade, igualdade e direitos universais que, quando muito, apenas parcialmente conseguiu realizar seu intento, uma vez que se comprometeu quase que absolutamente com os direitos individuais e, a partir destes, com um Estado neutro, sem projetos culturais, religiosos ou qualquer espécie de objetivos coletivos para além da liberdade das pessoas, segurança, bem-estar e seguridade social.

Mas a compreensão do multiculturalismo pode ser estendida e alcançar um liberalismo mais ampliado (L2), que possibilita um Estado comprometido com a sobrevivência e o florescimento de grupos particulares, de modo que os direitos básicos de seus membros possam realmente ser protegidos. Neste sentido, a política e a ética da dignidade humana são aprofundados e ampliados, de maneira que o respeito das individualidades possa ser compreendido de forma a não envolver somente o respeito ao potencial humano universal de cada um, mas também o respeito ao valor intrínseco das diferentes formas culturais, mediante o qual cada indivíduo reanima sua humanidade e expressa sua personalidade própria e única. Assim, o multiculturalismo, longe de se guiar por metas antiliberais, se insere no próprio contexto do liberalismo (L2), mas na perspectiva daquele que espera do Estado o asseguramento dos direitos fundamentais em geral, tanto quanto a intervenção em prol da sobrevivência e fomento do marco cultural em que cada indivíduo, preferencialmente os menos favorecidos, encontra-se inserido e com o qual se identifica. Trata-se de uma forma liberal-universalista que considera entre os seus princípios básicos a cultura e o contexto cultural que dignificam os indivíduos.

Se aceitarmos que a maioria precisa de um marco cultural seguro para dar sentido e orientação a seu plano de vida, então um contexto cultural seguro faz também parte dos artigos primários básicos para as perspectivas das pessoas com vista à vida boa. Deste modo, os Estados democrático-liberais têm a obrigação de ajudar os grupos em desvantagem, visando permitir a eles preservar a sua cultura contra as interferências das culturas majoritárias ou “de massas”.

Reconhecer a diferença exige não só o respeito à singularidade de cada um, independentemente do marco no qual se encontra inserido ou é identificado, mas também a consideração à sua visão de mundo, inseparável de si mesmo, construída por força do grupo ao qual pertence. Como explica Gutmann, o pleno reconhecimento público da igualdade pode exigir duas formas de respeito: 1) o respeito à identidade singular de cada um, independente de seu sexo, raça ou etnia; 2) o respeito àquelas atividades, práticas e modos de ver o mundo que são objeto de uma valoração singular ou inseparáveis dos membros dos grupos (principalmente os) em desvantagem.

Se o liberalismo (do tipo L1) reconhece a diferença, ele a restringe ao espaço privado, longe do diálogo aberto e na medida em que não interfira na esfera pública. Amy Gutmann37 coloca bem a questão ao concordar com Taylor:38 a identidade humana se produz dialogicamente, em resposta às nossas relações, o que inclui nossos diálogos reais com os outros. Por conseguinte, se a identidade de cada um se forma e se constitui dialogicamente, é preciso mais do que uma exigência negativa de não discriminar ou positiva de tolerar o diferente. É necessário um reconhecimento público da identidade de cada um, capaz de possibilitar a discussão pública de ações políticas que possam favorecer os aspectos identitários.

Dialogicamente o indivíduo cria a sua referência identitária: com base no que recebe de seu grupo de pertença, projeto de conscientização sobre si mesmo, e no que extrai nas relações sociais da realidade do dia-a-dia. É assim que a sua determinação enquanto pertencente a um determinado grupo social diferenciado é constituída; não dependente, como diz Semprini, apenas de sua consciência enquanto formação social diferenciada, mas, com igual peso, do fato de ser externamente percebido como “minoria”. Pois, muitas vezes, é o sentimento de marginalização que leva os indíviduos a se identificarem como possuidores de valores comuns e, portanto, um grupo à parte.

Para terminar: reconhecer a diferença exige o respeito ao plano de vida de cada um, sua construção social inerente e inseparável de si mesmo, construída por força dos valores que compartilha e do grupo no qual está inserido ou com o qual é identificado. Apoiado pelo ideal da dignidade humana, o reconhecimento público aponta, no mínimo, para duas direções: 1) para a proteção dos direitos básicos dos indivíduos enquanto seres humanos e 2) para o reconhecimento das necessidades particulares dos indivíduos enquanto membros de grupos culturais distintos.

Fonte:
Quintino Lopes Castro Tavares. Multiculturalismo. Disponível em BuscaLegis.ccj.ufsc.br.
Imagem = autor anonimo

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