Quando a gente está sozinha em casa, todos os barulhos são importantes.
Os móveis rangem, o tapete ganha vida, os pingentes do lustre estalam perversamente.
O silencio é povoado de sons e no momento que a campainha tocou foi como se uma bomba explodisse dentro do meu ouvido. Levantei-me num choque e fui atender ao seu chamado.
Antes, espiei pela janelinha:
Lá estava eu, do outro lado, aguardando que a porta se abrisse.
Procurei me acalmar e usei um ardil.
"Quem é?"
Mas eu não me intimidava e respondi que era Antonio, o porteiro.
Não tive remédio senão abrir a porta.
Continuando o plano anterior, fingi não ter me reconhecido.
O pretexto era banal: a água iria ser fechada por uma hora para consertos no prédio.
Desprezei a falta de imaginação e também representei meu papel. Agradeci e fechei a porta delicadamente.
Então era assim.
Corri até o banheiro e olhei minha imagem refletida no grande espelho sobre a pia. No cristal eu estava obediente e senhora de mim. Seguia meus movimentos com precisão. Ali fora capturada e permanecia tranqüilamente às minhas ordens.
Fiz mais alguns movimentos, todos repetidos simetricamente pelo meu inverso. Tranqüilizada, voltei ao trabalho e aos ruídos familiares do meu silêncio interior.
Na hora do almoço, a dúvida me assaltou: quando passasse pela portaria será que eu estaria lá, fingindo ser o porteiro-chefe?
Havia um meio de descobrir.
Desci e lá estava eu sentada no banquinho ao lado do portão.
Procurei não dar importância e saí calmamente para o restaurante onde fazia as refeições.
Quando o garçom chegou, foi preciso usar astúcia novamente: o garçom também era eu.
Disfarcei e olhei para os lados: os fregueses, sentados nas mesas ao redor, todos eram eu e fingiam não me reconhecer.
Resolvi agir como eles e continuei nossa comédia. Escolhi os pratos, almocei, paguei a conta e saí, como se nada de estranho tivesse acontecido.
Na calçada, entre um e outro transeunte, eu me avistava a andar apressado.
O jornaleiro era eu e nos cumprimentamos indiferentes.
Passeava pela rua e nos meninos que brincavam com a bola, na garota de bicicleta, na jovem de mini-saia, em muitos me reconhecia, mas já não importava.
Todas as pessoas, aos poucos, rapidamente, cada vez mais depressa, iam se tornando meu espelho.
E vagavam, separadas de mim, em corpos que eu não controlava.
As lojas eram eu.
Cada tijolo e pedra da calçada também eram meu outro.
E eu era as árvores e os telhados. O céu era eu e as estrelas que brilhavam sobre minha cabeça. E eu era o Sistema Solar, era a Galáxia e o Universo.
Eu era tudo e, então, finalmente, era Ninguém.
===============
Sobre a autora:
Maria Helena Bandeira é carioca, jornalista, artista plástica e escritora.
Menção especial do Prêmio Guararapes (União Brasileira dos Escritores) - livro de poesia inédito).
Conto brasileiro do mês da "Isaac Asimov Magazine".
Colabora para o fanzine "Somnium" e em vários sites literários, como blocos Online,
onde se dedica a uma série literária.
Fonte:
Scarium
Os móveis rangem, o tapete ganha vida, os pingentes do lustre estalam perversamente.
O silencio é povoado de sons e no momento que a campainha tocou foi como se uma bomba explodisse dentro do meu ouvido. Levantei-me num choque e fui atender ao seu chamado.
Antes, espiei pela janelinha:
Lá estava eu, do outro lado, aguardando que a porta se abrisse.
Procurei me acalmar e usei um ardil.
"Quem é?"
Mas eu não me intimidava e respondi que era Antonio, o porteiro.
Não tive remédio senão abrir a porta.
Continuando o plano anterior, fingi não ter me reconhecido.
O pretexto era banal: a água iria ser fechada por uma hora para consertos no prédio.
Desprezei a falta de imaginação e também representei meu papel. Agradeci e fechei a porta delicadamente.
Então era assim.
Corri até o banheiro e olhei minha imagem refletida no grande espelho sobre a pia. No cristal eu estava obediente e senhora de mim. Seguia meus movimentos com precisão. Ali fora capturada e permanecia tranqüilamente às minhas ordens.
Fiz mais alguns movimentos, todos repetidos simetricamente pelo meu inverso. Tranqüilizada, voltei ao trabalho e aos ruídos familiares do meu silêncio interior.
Na hora do almoço, a dúvida me assaltou: quando passasse pela portaria será que eu estaria lá, fingindo ser o porteiro-chefe?
Havia um meio de descobrir.
Desci e lá estava eu sentada no banquinho ao lado do portão.
Procurei não dar importância e saí calmamente para o restaurante onde fazia as refeições.
Quando o garçom chegou, foi preciso usar astúcia novamente: o garçom também era eu.
Disfarcei e olhei para os lados: os fregueses, sentados nas mesas ao redor, todos eram eu e fingiam não me reconhecer.
Resolvi agir como eles e continuei nossa comédia. Escolhi os pratos, almocei, paguei a conta e saí, como se nada de estranho tivesse acontecido.
Na calçada, entre um e outro transeunte, eu me avistava a andar apressado.
O jornaleiro era eu e nos cumprimentamos indiferentes.
Passeava pela rua e nos meninos que brincavam com a bola, na garota de bicicleta, na jovem de mini-saia, em muitos me reconhecia, mas já não importava.
Todas as pessoas, aos poucos, rapidamente, cada vez mais depressa, iam se tornando meu espelho.
E vagavam, separadas de mim, em corpos que eu não controlava.
As lojas eram eu.
Cada tijolo e pedra da calçada também eram meu outro.
E eu era as árvores e os telhados. O céu era eu e as estrelas que brilhavam sobre minha cabeça. E eu era o Sistema Solar, era a Galáxia e o Universo.
Eu era tudo e, então, finalmente, era Ninguém.
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Sobre a autora:
Maria Helena Bandeira é carioca, jornalista, artista plástica e escritora.
Menção especial do Prêmio Guararapes (União Brasileira dos Escritores) - livro de poesia inédito).
Conto brasileiro do mês da "Isaac Asimov Magazine".
Colabora para o fanzine "Somnium" e em vários sites literários, como blocos Online,
onde se dedica a uma série literária.
Fonte:
Scarium
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