E salvou-se. Quando Narizinho reabriu os olhos, viu que estava outra vez no pomar, à beira do ribeirão, sentada na “sua raiz” com Faz-de-conta ao colo, mudo e morto como antes. Sacudiu-o, como se fosse um relógio que houvesse parado, mas o boneco não andou. Parece que havia quebrado a corda.
— Que pena! — murmurou Narizinho. — “Mudei de estado” outra vez. Estou agora no estado de todos os dias — um estado tão sem graça...
E voltou correndo para casa porque era quase noite.
— Vovó! — gritou ela ao entrar. — Faz-de-conta viveu mais de uma hora, e conversou comigo, e me acompanhou ao País das Maravilhas, lá onde mora Capinha Vermelha. E vi as ninfas dançando, e um fauno tocando flauta, e quebrei-lhe a flauta, e saiu de dentro uma nuvem de vespas, e uma delas era fada e...
— Pare, pare, menina! — exclamou dona Benta tapando os ouvidos. – Você me deixa tonta. Não estou entendendo coisa nenhuma.
— E a fada quis me morder e fechei os olhos bem fechados, e João Faz-de-conta puxou o prego e bateu nela, e a malvada fugiu e a cabeça de Faz-de-conta rolou pelo morro abaixo...
— Pare, pare! — gritou outra vez a velha. — Vá contar essa história a Pedrinho e deixe-me em paz.
Pedrinho naquele momento já saíra da floresta. Vinha carrancudo e desapontado, pensando no melhor meio de vingar-se da boneca e do Visconde.
Quando chegou, a menina foi ao seu encontro, gritando:
— Três grandes novidades, Pedrinho! Faz-de-conta viveu por mais de uma hora e revelou-se um nobre caráter. Tem Gênio muito diferente do de Pinóquio. Muito mais sensato e, além disso, valente e leal. Pedrinho ficou inteiramente desnorteado com aquelas palavras. Não podia admitir que fosse possível semelhante coisa. Se Faz-de-conta não era feito de nenhum “verdadeiro pau vivente”, como poderia ter vivido?
— Viveu, sim! — insistiu a menina. — Mas só vive quando a gente “muda de estado”.
— Que história é essa?
— Não sei explicar. Só sei que em certos momentos a gente muda de estado e começa a ver as maravilhosas coisas que estão em redor de nós. Vi ninfas, e um fauno, e uma vespa que era fada, e Faz-de-conta lutou com ela e me salvou, e vi uma fumacinha lá longe e fui correndo e dei com a casa — sabe de quem? — Da menina da Capinha Vermelha
— Não diga!...
— E estive conversando com ela uma porção de tempo, e soube que se dá muito com Peter Pan. E Peter Pan apareceu para Faz-de-conta e prometeu chegar até aqui.
Pedrinho deu pulos de alegria, porque era aquilo o que mais desejava no mundo.
— E a terceira novidade é ainda mais importante — continuou a menina. — Imagine que descobri que aquele alfinete de pombinha que tia Nastácia deu à Emília é uma poderosa vara de condão – e portanto Emília, se quiser, pode virar fada!
Pedrinho deu novos pulos de alegria, tal barulho fazendo que a boneca lá da sala ouviu e veio ver o que era. E o mesmo Pedrinho que minutos antes vinha formando planos para vingar-se do logro que levara, mudou completamente de idéia. Tratou mas foi de adular a futura fadinha.
— Emília — disse ele com a voz mais amável do mundo – vou fazer três cavalinhos novos para você, cada qual de uma cor, e uma casinha linda para você morar, e um fogãozinho para você cozinhar, e um trapézio para você balançar-se, e umas asinhas para você voar e uma...
A boneca espantou-se tanto com aqueles nunca vistos excessos de gentilezas, que foi arregalando os olhos, arregalando, arregalando, até que — pluf! — arrebentaram.
— Malvado! — berrou ela com cara de choro. — Está aí o que você me fez...
Os olhos de Emília eram de retrós e sempre que se arregalavam demais acontecia aquilo — arrebentavam...
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Continua… Circo de Cavalinhos – I – A operação cirúrgica
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
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