sábado, 2 de janeiro de 2021

Estante de Livros (O Largo da Palma, de Adônias Filho) – 4 –


QUARTO EPISÓDIO: UM CORPO SEM NOME


É o único episódio narrado na primeira pessoa. “A tarde se acaba, é verdade, mas a noite ainda não chegou. E por que me encontro aqui, quem sou, isto não importa. O que importa é que estou na esquina do Bângala, de pé e a fumar, buscando trazer a paz do largo para mim mesmo”.

O enredo é simples: o narrador vê uma mulher que chega cambaleando e morre nos degraus da escadaria da igreja no Largo da Palma. Como testemunha, tendo a mulher morrido em seus braços vai até à delegacia, curioso para saber de quem se trata. A morta tem o rosto magro, “as órbitas fundas, os cabelos grisalhos, a boca murcha com três cacos de dentes. Os braços tão secos quanto os seios e as pernas. O vestido imundo, frouxo na cintura e descosido nas mangas”, sintomas de fome e cansaço.

Essa imagem faz com que ele rememore um fato com uma mulher assim quando fez dezoito anos.

Nos pertences da mulher estão um pente, um lenço de linho. Um maço de cigarros e uma nota de dez cruzeiros, uma caixa de fósforo com um pó branco, que logo se verifica ser cocaína, uma saboneteira com mais de dez dentes da criatura humana.

O laudo médico é conclusivo; a morte foi por tóxico.

Dois meses depois, o narrador volta ao Largo da Palma. A visão humanizada do largo cuja memória não abarca todos os acontecimentos, talvez tenha esquecido a mulher sem nome.

O narrador se aproxima de “A Casa dos Pãezinhos de Queijo”, o ar tem o perfume de trigo, misturado com o incenso que vem da igreja.

Ao falar com o inspetor fica sabendo que não identificaram a mulher, o corpo com tóxico em todos os poros, o mistério dos dentes guardados nunca foi desvendado, só há conhecimento de que eles pertenciam a ela mesma. Agora, à noite, o narrador vê os gatos, que na madrugada se tornam os donos do largo porque os homens e os pombos estão dormindo.

E sobre a mulher: “A morte não a matou, porque morreu fora do corpo. E, por isso, não morreu no Largo da Palma”.

COMENTÁRIO

Há um narrador que não se identifica, trata-se de um “eu” que se diz, se fala, fala dos fatos em torno da morte, mas não se nomeia. A rememoração que faz da época que tem dezoito anos, faz lembrar Marcel Proust em “La recherche du temps perdue” (A procura do tempo perdido), quando uma realidade do presente evoca uma imagem do passado, caracterizando o impressionismo tanto na linguagem quanto nos signos.

O Largo de Palma, que no episódio anterior, apesar da idade, antigo de muitos séculos, tem boa memória, nesta narrativa, velho como é, já a esqueceu porque não tem memória para todos os acontecimentos.

A presença dos gatos, simbolicamente, relacionado com o mistério da vida e da morte, segundo a tradição oriental, está encarregado de transportar as almas para o outro mundo.

Fonte:
– ARAÚJO, Vera L. R. in Cultura, Contextos e Contemporaneidade. Disponível no Portal São Francisco.

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