sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Rubem Penz (Crônica ululante)

Nunca vou esquecer a tarde em que, no distante 1987, tive a insatisfação de ler uma resenha crítica de Coração Satânico (Angel Heart) na Revista Veja antes de ver o filme. Eu estava uns quinze anos distante de escrever minhas primeiras crônicas, e alguns anos antes de aventurar na leitura de Freud, mas já guardava alguma perspicácia em notar aquilo que, mesmo não escrito, pode ser captado por bons leitores. E maldisse toda a geração anterior e futura do articulista por ter estragado o encanto do filme ao sugerir um spoiler desnecessário. Não que tenha me arrependido de ver depois, adorei. O problema foi a fruição de um thriller de suspense quando se sabe o final.

Por isso que escrever sobre uma obra cinematográfica, ou a partir dela, demanda jeito, prudência, respeito com quem virá a ler. Finda a tarefa, é necessário voltar ao texto e, frase por frase, se perguntar: revelo aqui algo que me surpreendeu? Entrego aqui uma conexão capaz de estragar uma cena seguinte? Nesta altura, quem assiste tem consciência desta faceta da personagem? Vale a pena antecipar este detalhe, ou ele é relevante demais? E não adianta tentar esconder numa fumaça retórica! Ao bom leitor, meia frase basta.

Assim, por mais sedutor que seja, evito ler sobre um filme sem antes assisti-lo. Não confio nessa turma dos cadernos e blogues e sites de cinema. Ou, pior: creio que alguns têm um desejo sádico de colocar minúsculas armadilhas dentro de frases inocentes, só para colocar água no chope dos outros. E, se reclamarem, ainda dirão coisas como “mas isso estava na cara!” Ótimo, que seja! Ainda assim, deixe-me descobrir sem seu brilho. Isso: quem dá spoiler, quer brilhar ofuscando a experiência dos outros.

Ah, por que lembrei de Coração Satânico? Porque assisti O Poço evitando ler artigos e comentários sobre o filme, e vi que fiz bem. Teria amaldiçoado a geração anterior e futura de pessoas a quem nada devo ou me devem. Poupei-me de dissabores, e isso é maravilhoso nestes tempos de ódios fáceis. Li depois, concordei com umas coisas, discordei de outras, numa boa. Apenas lamentei por quem não tenha meu hábito! identifiquei imprudências as quais, fosse eu, evitaria. Óbvio.

Fonte:
Escrita Criativa
https://www.escritacriativa.com.br/?cid=5596&wd=Resenhas

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

José Feldman (Analecto de Trivões) 15

 

Mensagem na Garrafa – 7 -


Elisa Alderani

Ribeirão Preto/SP

As Quatro Estações


PRIMAVERA

Escutando a música de Vivaldi me situo no caminho inverso da vida. Volto ao tempo da primavera, quando tudo em minha volta estava florido, perfumado e belo. Vejo-me sentada na grama perto dum canteiro de gerânios vermelhos, construindo sonhos de criança. Poucos brinquedos, mas muita liberdade para brincar ao ar puro da montanha. Não havia ambições de ter, bastavam poucas coisas para ser feliz. Ouvia pássaros, me encantava olhando as cores das asas das borboletas; agradava-me o perfume da grama recém-cortada. A primavera de minha vida é inesquecível. Tantas lembranças preenchem de infinita harmonia o coração, como esta música, penetrando docemente meu ser de outrora.
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VERÃO

O tempo do dever chega repentinamente, o sol está alto no céu. Tudo arde, chegou o verão! Estudo e trabalho, juventude ativa, sem muitas diversões. O olhar fica atento às mudanças, os sonhos da juventude se multiplicam. A música muda o ritmo. Amores platônicos, lindos! Olhos que se encantam, sem saber o porquê. O coração explode a procura de algo, sem saber que é o amor. Arde o verão da vida. As tempestades, de repente, chegam. A chuva de verão passa rápida. Tudo se renova depois do temporal. A realidade pede uma escolha. O verão parece avançar lento, o ar mais quente, a fruta está madura. O encontro com o amor muda o ritmo da música, doa alegrias e lágrimas. A responsabilidade preenche o cesto das frutas para serem saboreadas, nem sempre doces, às vezes amargas. A vida parece parada nesta estação por mais tempo...
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OUTONO

Os dias encurtam o passo, e o outono chega sem pressa. Ocorrem mudanças.

Também as cores da natureza mudam. O bosque fica silencioso, devagar se despe das lindas cores outonais. O vento é culpado por isso, ele derruba as folhas uma a uma, cobrindo o chão árido; soprando uma música diferente. Tudo parece mudar. As flores murcharam, perderam o viço, como o amor, por falta de cuidados. Outono da vida! Somente quem sabe admirar com interesse um lindo por do sol, terá nos olhos o brilho do último raio, que esquentará o seu coração. Eu procurei fazer isso, mas as madrugadas frias já me anunciavam a chegada do inverno...

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INVERNO

Sim, o inverno chegou implacável e gelado com o toque de música, mudando o ritmo. Lentamente parece gelar o que restou, com seu branco manto. Tudo fica encoberto. Preciso me preparar com muito cuidado para esta estação. Decorar a alma e o coração com um amor diferente para cuidar de mim, sem desmaiar pelo frio que já está às portas. Ficar ao reparo das intempéries que surgem assim, do nada. A natureza não perdoa, ela tem que completar seu ciclo.

Uma vida bem equilibrada, promete um inverno tranquilo…

As sementes da primavera das lembranças germinarão novamente, perfumadas como flores de outrora, em meu coração.

Os frutos dos afetos do verão estarão presentes para preencher o vazio e colocar em meus lábios, apesar das marcas do tempo, o sorriso; os dias tristes do outono serão esquecidos com o calor do último raio de sol.

O inverno achará o abrigo quente do meu coração, escutando novamente a música que fala das estações de minha vida.

Monsenhor Orivaldo Robles (Canção para meu pai)

Esclareço que não sou compositor. Para isso não tenho talento. Se tivesse, eu lhe escreveria a mais caprichada canção. Sempre que aparece oportunidade, comento sobre quanto nos marcou a figura do homem franzino e calmo – calmo demais para um espanhol – a quem chamávamos pai. Para as pessoas de fora sou o filho que mais fala sobre ele. O amor e o respeito, no entanto, que merece um verdadeiro pai, os cinco nunca deixamos de consagrar ao nosso velho. A rigor, nem tão velho: morreu mais jovem do que eu sou hoje.

Não me preocupa nem um pouco que percebam como sou sensível. Ou “manteiga derretida”, conforme o povo diz. De vez em quando, sinto vontade de escutar “Mi viejo”, composição de Piero y José. Em português existe como “Meu velho”, versão de Nazareno de Brito, conhecida na interpretação de Altemar Dutra. Prefiro a original, aquela que no 3° Festival da Canção de Buenos Aires, em 1969, apresentou um Piero ainda seminarista, de batina e colarinho romano. Dependendo da hora, quando a ouço, me acaba vindo aos olhos alguma lágrima intrusa, que não dei conta de segurar.

Por esses dias, em consulta à Internet sobre “Mocedades”, um dos mais carismáticos grupos vocais da Espanha no século passado (desde Marialva, dele guardo um LP duplo, a mim trazido de Madri por Irmã Margarita Sastre), descobri a canção “Mi padre” (Meu pai), que descreve coisas assim: “Meu pai sonhava todo dia/ em vender nossa casa e mudarmos para longe./ Pobre sonhador! Queria tornar-se rico e se fez velho./ Dizia que nos levaria/ A conhecer o farol de Alexandria./ Pobre aventureiro! Quis ser marujo e foi mineiro./ […] Iríamos todos a Paris/ Onde ele seria duque; eu, bailarina./ Quem ia dizer-lhe/ Que, em vez de ir a um palácio, ia à mina?”.

A composição de Rafael Perez Botija (em 1976, calculem!) é interpretada por “Mocedades”. As partes de solo refletem a doçura de Amaya Urango com sua voz privilegiada. Quem se interessar acesse YouTube + Mocedades + Mipadre. Mas não espere algo como funk, rap ou sertanejo dito universitário. A canção foi composta para homenagear os pais no seu dia. Uma jovem relata, compadecida, a saga de seu pai, humilde trabalhador nas minas. Ela compreende e desculpa os devaneios com que ele procura disfarçar a pobreza da família.

Conheço o drama referido pela moça. Entre as dores da vida uma existe pouco analisada e, apesar de tudo, muito amarga. Falo da sensação de fracasso do homem honesto, que trabalhou à exaustão por toda a vida, e vê chegar o fim sem poder legar aos filhos um mínimo de bens materiais.

Contemplamos a cena ao vivo, lá em casa. Sem ilusões nem sonhos, porém. O pai sempre foi realista. E bastante sereno também. Cansado da doença, falava-nos, às vezes: “Para vocês eu valho mais morto que vivo”. Queria dizer que, enfermo, só dava trabalhos e despesas. Sentia a vida, como em conta-gotas, escapando-lhe pouco a pouco. A morte, a seu ver, daria fim às nossas preocupações. De lambuja, os tostões da mísera pensão que ele ia deixar seriam gastos no supermercado, não na farmácia.

Ah, “viejo, mi querido viejo”, dando lição de vida até na hora de morrer, hein! E nós, julgando-nos sábios por termos, como na canção, “os anos novos, e o homem, os anos velhos”.

Pai, dê motivo para seus filhos se orgulharem de você. Há presente maior?

Maria Thereza Cavalheiro (Trovas para refletir) – 4 -


A lua, em noite escampada,
na orquestra que Deus conduz,
seguindo a pauta da estrada,
é uma sonata de luz.
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A luz do dia esmorece...
O amarelo perde a cor...
A Deus se eleva uma prece
dos lábios de cada flor.
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A noite lança uma seta,
pois, caçadora, é o seu fado.
E a tarde cai, rubra e quieta,
qual pássaro ensanguentado.
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A Noite - mulher mistério -
enfeita-se com desvelos,
e as joias do seu império
prende aos compridos cabelos.
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A noite serena e pura,
no seu eterno fadário,
recolhida na clausura,
faz de estrelas seu rosário.
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As árvores, num abraço,
temendo cair ao chão,
juntam as copas no espaço,
pedindo ao céu proteção.
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Cabeça revolta, inquieta,
que se volta para o céu...
Esse coqueiro é um poeta,
fazendo versos ao léu!
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Celulose renascida,
o livro vem da floresta;
como árvore da vida,
vibra, reclama, protesta!
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Com o crescer das queimadas,
não é muito o que nos resta:
braços hirtos, mãos crispadas...
- são os galhos na floresta!
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Deus, que fez a noite e o dia
a um toque de Sua mão,
pôs também poesia,
o sopro da inspiração.
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Inquieto, pairando apenas,
o colibri em seu afã
é uma linda flor de penas
junto ao seio da manhã!
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Lentamente a tarde desce,
envolta num céu lilás.
Da terra sobe uma prece
para no mundo haver paz.
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O carro de bois dolente
canta e geme em seu labor...
Assim o peito da gente
quando faz versos de amor!
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O céu, à noite, nos campos,
é um tablado original,
onde bailam pirilampos
e estrelas, num festival!
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O livro é um amigo mudo,
que nos pode compreender.
Revela em silêncio tudo
que precisamos saber.
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O luar, lascivo e amante,
abre o vestido da mata,
e em seu corpo exuberante
passeia os dedos de prata...
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O outono, em seus esplendores,
troca, da mata, a roupagem:
desfaz o manto de flores
e põe frutos na paisagem.
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Passarinhos, em sonata,
fazem festa no arrebol,
quando despertam a mata
para os afagos do sol!
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Plantem árvores, crianças!
Cresçam com elas, felizes,
cheias de vida e esperanças,
porém firmes nas raízes!
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Pode o livro ser tesouro
que alguém garimpou por nós;
é o amigo imorredouro,
que não fala, mas tem voz!
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Por mais que o destino rude
ponha alguém a dura prova.
quando se tem juventude
sempre a vida se renova!
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Quando a lua abre seu cofre
de moedas pelo chão,
o sonhador que ama e sofre,
quer todas em sua mão.
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Quando a noite se faz dia
e os sonhos fogem velozes,
há uma luz que se irradia
no eco de muitas vozes.
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Quando o sono se faz nada
nos olhos brancos da noite,
os dedos da madrugada
empunham seu velho açoite.
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Sem vitória nem torcida,
na grande quadra do céu,
a lua é bola perdida
que ficou jogada ao léu.
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Último alento... o céu arde
e queima o ar transparente.
Morre, exangue, a débil tarde,
nos braços do sol poente...
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Fonte:
Enviado pela Trovadora.
CAVALHEIRO, Maria Thereza. Trovas para refletir. SP: Edição do Autor, 2009.

Esopo (O vaqueiro que combate por seu senhor)

Conta o doutor este exemplo e diz que um cavaleiro, familiar dum rei, conhecia um homem velho que não tinha filhos e era já muito velho e sem títulos, mas era muito rico, estava sempre fora e era oficial de Del-Rey, que havia curado seus cavaleiros.

Este cavaleiro lhe tinha grande inveja, porque era rico, e buscava cada dia maneira em como lhe tomar o que tinha; e foi-se a El-Rey e acusou-o dizendo que quanto ele tinha, tudo furtara a El-Rey, e que do furto era assim rico, dizendo do muito mal, e que era ladrão e homem de má fé: e que este lhe queria provar em um campo com a espada na mão.

El-Rey fez chamar o velho, e mandou-lhe que esse escusasse ou entrasse em campo com ele; e se com ele não se atrevesse de combater, que buscasse outrem que esse com ele combatesse em seu nome.

O cavaleiro era muito valente em armas, e o velho receava de se combater com ele, como o cavaleiro era muito mancebo, e ele era muito velho e sem títulos: e andava rogando parentes e amigos a quem ele já fizera muitas boas obras, e não podia achar quem quisesse tomar a aventura por ele, pois temiam o cavaleiro. Este velho meditava e dizia:

— Muitos ajudei no tempo de suas necessidades, a parentes como amigos, e agora não acho parente, nem amigo! Quando a fortuna é contra o homem, todo os parentes fogem dele, como agora fazem comigo!

E este velho tinha um pastor que lhe guardava seu gado. E o pastor vendo seu senhor andar tão triste, ficou com piedade dele, e perguntou-lhe[5] porque andava com tanta tristeza. O velho lhe contou todo o ocorrido. O pastor, que fica-lhe com dó, lhe disse:

— Meu senhor, eu quero tomar esta aventura em vosso nome.

O velho lhe deu muitos agradecimentos.

No outro dia, do combate, mandou este pastor bem armado ao campo a combater-se com este cavaleiro. Quando o cavaleiro viu este vaqueiro, disse que a ele seria grande vergonha se muito andasse combatendo com este vaqueiro, mas que logo o haveria de vencer: e começou dar com sua espada grandes golpes no vaqueiro. O vaqueiro cobria-se e deixava-o cansar, e algumas vezes esquivava dos golpes do cavaleiro: isto fazia ele bem cansado. O cavaleiro imaginava que o vaqueiro não podia defender-se, e cada vez o desprezava mais. O cavaleiro tomou um lenço, e enxugou o rosto, porque suava. O vaqueiro se achegou a ele, e deu-lhe um golpe no cotovelo do braço direito, que o cavaleiro perdeu a força do braço, e arredou-se para trás; e o vaqueiro outrossim se destacou no campo. O vaqueiro disse ao cavaleiro que se levantasse; o cavaleiro disse que não queria. O vaqueiro, vendo que o cavaleiro não ia se levantar, passou a se mostrar no campo.

Ao combate estava pressente El-Rey com outros muitos barões para o ver; e vendo ambos parados, toda a gente começou a escarnecer. El-Rey mandou-lhes dizer que se combatessem. O mensageiro disse ao vaqueiro que se combatesse ou se desse por vencido; o vaqueiro disse:

— Eu não me dou por vencido, mas eu sou o vencedor, mas não vou atacar o homem que está caído; mas se o cavaleiro quiser levantar-se, eu estou prestes a combater com ele.

Os presentes debochavam. O vaqueiro foi ao cavaleiro e disse muitos impropérios, porque esse não queria levantar; o cavaleiro rogou ao pastor que lhe perdoasse, e que se fosse com Deus, pois ele se dava por vencido.

O vaqueiro partiu do campo com grande honra, e com grande prazer; o velho abraçou-o muito, e o fez herdeiro de todos seus bens. E não foi mais vaqueiro.
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O poeta diz neste exemplo que não se deve acusar nem fazer mal a outrem sem razão, porque quando confiam vencer alguma batalha, confiando mais no seu poder que no poder de Deus, perde, porque só Deus é juiz de direito e defensor da razão, e poucas vezes pode o homem impedir a razão; muitas vezes acontece nas batalhas que poucos vençam muitos quando combatem com razão. Ainda diz que nas prosperidades não se conhecem os amigos, mas conhecem-se nas adversidades; e tais como estes não são amigos, mas são lobos ferozes. E porém diz Sêneca: Illa est vera amicicia que nom querit ex rrebus amicy nisy sollam benyvolemçiam.*
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* Tradução do latim: A verdadeira amizade é aquela que não quer dos amigos nada a não ser a bondade.

Fonte:
O Livro de Esopo - Fabulario Português Medieval. Lisboa: Imprensa Nacional, 1906. Publicado conforme a um manuscrito do seculo XV. Disponível em Domínio Público em https://pt.wikisource.org/wiki/O_Livro_de_Esopo
Conversão do português do século XV para o português atual por J. Feldman 

Isabela Zampiron (Dicas de Escrita) Como evitar a ambiguidade

O livro "Português para Convencer. Comunicação e Persuasão em Direito", de Claudio Moreno e Túlio Martins, é uma obra fundamental para quem deseja aprimorar suas habilidades linguísticas. Com diversas dicas de ortografia e gramática, as orientações podem ser utilizadas por todos que almejam melhorar a qualidade de seu texto, especialmente quando se depararem com a ambiguidade.

Uma frase ambígua é aquela que abre margem para duas ou mais interpretações. Isso é uma característica prejudicial ao texto, visto que os leitores podem se deparar com diversas compreensões, como no caso a seguir:

"Quando o vizinho tentou separar o animal de seu dono, ele mordeu o vizinho."*

O problema nessa frase se deve ao pronome "ele". Embora muitos leitores compreendam que o pronome se refere ao animal, essa frase dá lugar a interpretação de que o dono teria sido quem deu a mordida.

Há dois principais responsáveis pela ambiguidade: os pronomes pessoais e os adjuntos verbais. Ao se atentar a eles, será possível produzir textos coesos e eficazes, contribuindo para uma comunicação assertiva. Vamos nos aprofundar neles.

PRONOMES PESSOAIS

Na tentativa de não utilizar o mesmo substantivo repetidas vezes, optamos por usar um pronome. É necessário, porém, uma atenção maior para que não ocorra a ambiguidade. Os pronomes servem para representar um substantivo mencionado anteriormente e, como no exemplo já citado, isso aumenta as chances de uma frase ambígua aparecer no texto.

"O professor disse ao pai que sua atitude tinha prejudicado muito o desempenho do filho."

O "sua" pode se referir tanto ao professor como ao pai. Existem situações em que a repetição do substantivo, mesmo que menos elegante que a utilização do pronome pessoal, é mais eficiente para evitar confusões.

ADJUNTOS ADVERBIAIS

O segundo maior responsável pela ambiguidade é o adjunto adverbial, principalmente ao final da frase.

"Ela achou o documento que tinha perdido na sexta."

Não fica claro ao leitor se o documento foi perdido ou achado na sexta. Para evitar isso, é recomendável mudar a posição do adjunto adverbial e separá-lo com vírgulas. Caso o cheque tenha sido encontrado no domingo, uma opção de construção frasal é a seguinte:

"Ela achou, na sexta, o documento que tinha perdido."

Assim, é possível transmitir a mensagem com clareza e de maneira precisa, sem lugar para ambiguidade.
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Exemplos adaptados por Marcelo Spalding

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) – Capítulo 17: Data marcada


Dona Ana seguia convalescente, mas já conseguia levantar sozinha da cama e ir tomar o seu mate na varanda, como de costume. Queria voltar aos deveres de casa, mas a filha não permitia. E convocou Amélia para ajudar nas tarefas domésticas e nos cuidados com a mãe que, apesar de disfarçar, estava muito fraca. E por certo precisaria de um longo período de descanso para atingir a recuperação plena.

- Obrigada, Amélia, por deixar os afazeres de teu lar, para nos servir. - disse dona Ana.

- Eu que agradeço em poder ser útil. A senhora merece. E nem precisa acrescentar nada ao salário do Juca: estou aqui por gosto. E sobra tempo para cuidar da minha casinha e do meu marido. Vou juntar as roupas sujas para lavar. Qualquer coisa, chama.

- Obrigada, querida!

- E eu vou preparar o almoço. - disse Isadora, um tanto sonolenta depois de passar a noite em claro lendo sobre as aventuras de Madame Bovary.

– Pensando bem, o almoço pode atrasar um pouquinho. Mãe, o que a senhora pensa sobre o livro de Gustave Flaubert?

- A história não está mais fresca em minha memória. Li quando era muito nova. Lembro que o livro tem uma narrativa lenta, porém o texto é muito bem escrito, mas foi o fato de se tratar de uma obra proibida que nos incentivava a continuar a leitura. Eu e Leandra não entendíamos o comportamento de Emma. Parecia uma mulher de sorte. Arranjou um marido que a tratava bem e que não lhe deixava faltar nada. Era saudável, tinha uma vida sossegada. Mas com o tempo entendi que era justamente a vida perfeita que a levou a tanta insensatez

- Não terminei a leitura. Fui em busca de uma coisa e encontrei outra.

- Como assim, filha?

- Pensei que se tratava de uma traição motivada por amor.

- Foi por tédio. É uma história sobre a monotonia, sobre a linearidade da vida perfeita. E sobre a reação humana em relação a ela.

- Não julgas a personagem?

- Estou com receio de julgar teus pensamentos... O porquê do repentino interesse nessa obra...

- Bem sabes o quanto sou curiosa...

- Não me enrola. Nada de aprontar por aí. És uma jovem comprometida. Sei do teu ralo interesse em relação ao Fábio, mas ele vai cuidar bem de ti.  Mas voltando aos livros, amo vários, mas prefiro a história da valente Ana Terra. “Toda vez que me acontece algo importante, está ventando”, dizia ela. Toda saga da grande obra de Veríssimo, fala de mulheres nascidas para trabalhar, calar, chorar e, principalmente, esperar...

- Prometeste contar mais sobre a biblioteca de tua infância e juventude. Por que só restaram aqueles livros guardados na dispensa?

- Está bem. Vou te contar. Mas por favor, não te exaltes ao tomar conhecimento da verdade. Logo após a morte dos teus avós, viemos para cá, e teu pai descobriu a biblioteca. Mandou amontoar os livros numa caçamba e despejá-los nos fundos da casa. E ali, tocou fogo em tudo.

- A senhora tentou impedir? - perguntou Isadora, em estado de choque.

- Ao me aproximar da janela do quarto as chamas já estavam acesas. Mas isso já foi há muito tempo.

- Não há tempo capaz de apagar um trauma assim...

- Sabendo que teu pai não gostava de livros, já havia escolhido alguns e os trouxe em meio ao enxoval. E depois, os guardei na dispensa. E lá estão até hoje.

Isadora beija carinhosamente a face triste da mãe. E vai preparar o almoço controlando a vontade de chorar. De chorar por sua mãe, pela biblioteca queimada, por Madame Bovary, que quanto mais buscava pela felicidade, mais se perdia e, por ela mesma que em instantes receberia o noivo indesejado para o almoço.

Fábio chegou junto do sogro, e foi logo ao encontro da noiva. Eles se cumprimentam como se fossem dois estranhos.

Amélia ajudou a servir a mesa e não passou despercebida por senhor Antônio e sua maledicência.

O velho estava apressado em dar uma notícia, mas não se conteve em fazer certas observações. Bonita desse jeito, vestida feito uma “muié”, sem vergonha, que gosta de se “amostrar”, sei não... A cabeça do Juca deve ter mais chifres do que piolho em cabeça de mendigo. Pensou ele sobre a moça.

- Bamo, Fábio, dá logo a boa nova. - disse o velho quebrando o silêncio de forma brusca.

- Claro, meu sogro. Querida Isa, passamos na igreja, falamos com o padre Orestes, e já deixamos marcada a data do casamento.

- Sem antes falar comigo?  

- Calma, minha filha. - disse dona Ana.

- Ué! Tão noivo pra que, pra casar, não é?  - falou o pai, de boca cheia.

Isadora não se conteve. Pediu licença, pegou o Costelinha no colo e foi sentar debaixo do seu Ipê Amarelo.  

- “Muié braba, meu genro... Vai ter que ser domada.

Dona Ana e Amélia se entreolharam com o coração cheio de pesar.

Fonte:
Texto enviado pela autora

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 34

 

Mensagem na Garrafa – 6 -


Miguel Falabella
(Rio de Janeiro/RJ)

SAUDADE


Trancar o dedo numa porta dói.
Bater com o queixo no chão dói.
Torcer o tornozelo dói.
Um tapa, um soco, um pontapé, doem.
Dói bater a cabeça na quina da mesa,
dói morder a língua, dói cólica, cárie e pedra no rim.
Mas o que mais dói é a saudade.
Saudade de um irmão que mora longe.
Saudade de uma cachoeira da infância.
Saudade de um filho que estuda fora.
Saudade do gosto de uma fruta que não se encontra mais.
Saudade do pai que morreu, do amigo imaginário que nunca existiu.
Saudade de uma cidade.
Saudade da gente mesmo, que o tempo não perdoa.
Doem essas saudades todas.

Mas a saudade mais dolorida é a saudade de quem se ama.
Saudade da pele, do cheiro, dos beijos.
Saudade da presença,
e até da ausência consentida.

Você podia ficar na sala e ela no quarto,
sem se verem, mas sabiam-se lá.
Você podia ir para o dentista e ela para a faculdade,
mas sabiam-se onde.
Você podia ficar o dia sem vê-la, ela o dia sem vê-lo,
mas sabiam-se amanhã.
Contudo, quando o amor de um acaba, ou torna-se menor,
ao outro sobra uma saudade que ninguém sabe como deter.

Saudade é basicamente não saber.
Não saber mais se ela continua fungando num ambiente mais frio.
Não saber se ele continua sem fazer a barba por causa daquela alergia.
Não saber se ela ainda usa aquela saia.
Não saber se ele foi na consulta com o dermatologista como prometeu.
Não saber se ela tem comido bem por causa daquela mania de estar sempre ocupada;
se ele tem assistido às aulas de inglês,
se aprendeu a entrar na Internet e encontrar a página do Diário Oficial;
se ela aprendeu a estacionar entre dois carros;
se ele continua preferindo Malzbier;
se ela continua preferindo Margarita;
se ela continua sorrindo com aqueles olhinhos apertados;
se ela continua dançando daquele jeitinho enlouquecedor;
se ela continua cantando tão bem;
se ela continua detestando o Mc Donald's.
Se ele continua amando;
se ela continua a chorar até nas comédias.

Saudade é não saber mesmo!
Não saber o que fazer com os dias que ficaram mais compridos;
Não saber como encontrar tarefas que lhe cessem o pensamento;
Não saber como frear as lágrimas diante de uma música;
Não saber como vencer a dor de um silêncio que nada preenche.
Saudade é não querer saber se ela está com outro, e ao mesmo tempo querer.
É não saber se ele está feliz, e ao mesmo tempo perguntar a todos os amigos por isso...
É não querer saber se ele está mais magro, se ela está mais bela.
Saudade é nunca mais saber de quem se ama, e ainda assim doer;

Saudade é isso que senti enquanto estive escrevendo e o que você, provavelmente, está sentindo agora depois que acabou de ler...

Renato Frata (Como as folhas )

Como as folhas caídas, o ontem se desfaz em lembranças que se esgarçam a bailarem em nosso quintal da memória. A folha, o vento vestido de palhaço arrasta para lá e para cá, faz diabruras com ela, tira-lhe pirueta, joga-a para cima e para os lados na fuzarca própria do palhaço, até se esquecer dela que não tendo para onde ir, se gruda a uma ranhura do solo ou em algo que a ampare.

E fica, silente, amargando pelo fim. As lembranças por sua vez, conseguem nos fazer de palhaços tristes ou alegres ao nos arrancar choros ou risadas. Dão piruetas em nosso humor e, no mais das vezes, jogam-nos para baixo nos cafundós da profundidade do arrependimento. Uma e outra estão em nossa vida por algum significado.

As folhas, mesmo quando desprendidas, têm dois destinos: ou servem de adubo se empregadas a sustentar a umidade do solo para outras plantas, ou são abruptamente juntadas num saco e postas à espera dos catadores.

Há, a bem dizer nesse discorrer, além dos de folhas, os catadores de passado.

Os de folhas nós conhecemos: usam uniformes no árduo trabalho de garimpar resíduos e coletam as folhas ensacadas que juntamos ao pé da árvore.

Já, os catadores de passado vivem dentro de nós, assentados no âmago do nosso querer. Não importa que a folha tenha sido útil enquanto verde pelo processo no qual produz transformando água, gás carbônico e energia solar em glicose e faça por si, a fotossíntese. Em um tempo, a árvore ditará o seu termo de vida.

De forma semelhante, os fatos por nós vivenciados ditarão se nosso ontem será triste ou alegre pela faculdade que nos faz guardar vivências e experiências com coisas, situações e pessoas.

Tal como a folha, os guardaremos conosco pela nossa finita vida como algo bom, ou eles ficarão conosco a amargar nossa saliva todas as vezes que deles nos lembrarmos. Se positivas as lembranças, será como as folhas reaproveitadas num viveiro a render alimento às plantas, se negativo estará num saco, socadas, à mercê do catador que nunca virá coletá-las.

Nosso tempo – passado, presente, futuro – tal como a árvore, precisa das folhas para sua sobrevivência e manutenção associadas às raízes que sustentam o todo, já que são elas que absorvem e mantêm a água e sais minerais do solo conduzindo-os pelo xilema (lenho) a se espalhar pela estrutura do caule ao último galho.

Nascemos e crescemos e, crescendo, adquirimos conhecimento (folhas) para pautar passos, gestos, falas, comportamentos, sociabilidade, humanidade que nos garante se bem aplicados, tenhamos o ontem saboreado como taças do melhor champagne. Se não, que soframos na consciência as punhaladas que seguramente nos picotarão por dentro.

O ontem preserva alusões e contendas filosóficas, mas na intimidade, as reminiscências podem ser comparadas à taça a representar esfuziante alegria, ou a punhais afinadíssimos a estocarem centímetro a centímetro o coração no desempenho da dor espelhada numa perda, num ato vil, num desejo associado a infausto. Nesse caso, a comparação folha-ontem, perde o senso.

A isso se dá o nome de ciclos, e o fim de cada um necessariamente não precisa significar algo ruim: aos bons, estenda-se a vida, aos ruins, a poda aplicando o segredo da árvore: se a folha produz, será mantida, senão, o fornecimento de seiva será cortado.

Para dizer que o fim de um ciclo sempre vai gerar uma oportunidade, é a chance da reciclagem com o aparecimento de novos conhecimentos, novos amigos, negócios, lugares, coisas, desejos, necessidades.

É o fazer da vida uma folha que mesmo tendo caído, dá-se à outra produzindo o seu sustento.

Melhor será se pudermos, nesses fins de ciclos, observar o recado e viver “como um pássaro que canta sob a chuva sem ralhar com ela, para que tenhamos memórias agradáveis que sobreviverão em tempos de tristeza”, de feliz produção de Robert L. Stevenson.

J. G. de Araújo Jorge (Infinito de Poesias) 2


ADIANTE...

Nada dizes. São apenas os olhos
que nos revelam, sem o flagrante da palavra,
a necessidade da voz...

... e intimamente vamos compreendendo
que este amor não pode
terminar em nós…
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ALGUÉM
    
Contigo ao meu lado,
não sou apenas um homem feliz,
sou alguém capaz de amar a vida,
de reconciliar-me com as coisas,
alguém capaz de existir,
de se sentir alguém...

Sem ti, não sou ninguém.
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AMOR
    
E nunca chegamos ao fim da taça,
por mais que a esvaziemos.

Agora,
sei que isto é amor.
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ANTES... E DEPOIS...

Quando nos encontramos,
teus olhos estão cheios de nuvens,
como os altos cumes...

Subo à tua procura, e me perco, e me cego sem paisagem,
enquanto o amor me fustiga como um vento das alturas...

Depois,
quando voltas a me olhar,
teus olhos estão limpos e puros,
sem uma nuvem sequer,
e eu te posso descortinar até o horizonte…
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APELO
    
Apelei para o céu, para o mar, para as nuvens,
para as flores,
queria encontrar a imagem deste amor,
descrever a emoção que me perturba tanto
e que me esfria as mãos...

Para a poesia apelei...

Colhi apenas palavras... E diante do meu fracasso
tomei-te nos braços, e silenciei.
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AS DUAS FACES

Quando te aperto contra mim
quando te beijo,
percebo que este amor é assim
como uma mistura
de ternura
e desejo,
que não tem fim...

Às vezes, tenho vontade de tomar-te entre as mãos
com a humildade e a pureza de um crente
a desfiar um terço,
tenho vontade de te embalar docemente
com esse cuidado de alguém que embalança
num berço
uma criança...

E logo após, ímpetos de te amar,
de te querer e beijar
com volúpias de fogo
e carícias de chama,
como desesperadamente a gente quer
e beija,
uma mulher
que se ama,
se deseja...

Mistura
de ternura e desejo,
de mansa ternura
e desejo violento,
mistura
de morno carinho
e voluptuoso calor,
- às vezes te quero como uma criança...
- outras vezes, como um louco, um doente
de amor!
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ASPERSÃO
    
Sinto uma íntima necessidade
de que todos participem da minha felicidade...

Gostaria que todos soubessem de ti...
E eu falaria de ti como se fala da beleza
da poesia, do mar, das flores, das crianças,
do amor...

Mas, oh supremo egoísmo! Sigo em silêncio
e me submerjo em meu pensamento,
por ciúme... ou pudor…

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. A sós. 1. ed. 1958.

Silmar Böhrer (Croniquinha) 93

A vida é uma crônica. E cada um de nós faz parte das narrativas. Já imaginou o que é a sua vida ? Nascimento, o despertar, o crescer, o enxergar, abrir-se para um mundo que o espera?

São tantas vivências, histórias e estórias que se enlaçam, criam limo, põem em xeque, fazem pensar, usufruir ou não, desdenhar, aplaudir. E assim temos enredo, ambiente, temporalidade com toda sorte de personagens.

E se ela é feita dos mesmos ingredientes dum romance, deve ter também a consideração deste, no patamar de obra literária, legando aos leitores exposições e descrições plenas de realidades, em detrimento do romance, obra de ficção.

A crônica tem legados vivos à posteridade.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Rommel Werneck (Dicas para novos poetas em sonetos e poesia retrô de modo geral)

1- Cuidado com repetição de palavras em textos diferentes.

Não repita muitas palavras no seu novo poema nem na parte interna ou externa (rimas).  

Sabemos que o estilo de um escritor é cristalizado justamente por sua repetição em certas palavras, por isso ter preferência por alguns termos e usá-los é até louvável. No entanto,  o excesso de tais vocábulos pode demonstrar fraqueza, falta de confiança, falta de domínio do léxico e, acima de tudo, falta de criatividade além de tornar o autor previsível e desfavorecer a leitura pelo tédio.

E como medimos este excesso?  Tente sempre introduzir um termo, um adjetivo, um verbo ou uma rima que nunca tenha sido usado antes. Busque substituir as primeiras palavras que lhe vêm a mente. Todos nós temos vícios em alguns adjetivos, alguns verbos etc, não é tarefa fácil.

2- Não force as rimas.

Rima pobre não é rima miserável. Preferível uma rima pobre, porém bem regida e natural do que rimas preciosas mas não graciosas. A rima rica surge de um árduo trabalho de pesquisa e investigação. Quem deseja rimar palavras de classes gramaticais diferentes deve dominar conjugação verbal pois a maioria das rimas ricas abrange verbos.  Geralmente eu até escrevo muitos poemas a partir do desafio de usar uma rima diferente, como uma inspiração sobre a transpiração e vice-versa.

3- Cuidado com a palavra FLOR.

E outras muito convencionais já clichês. Flor é um hiperônimo e pode ser substituída por orquídea, margarida, dália, jasmim, girassol. Só a pluralidade de nomes já mostra sílabas, tônicas e rimas diferentes. O mesmo serve para as cores. Vermelho pode ser rubro, grená, rubi, carmim, cor de sangue etc

4- Escreva várias FORMAS FIXAS.

O bom escritor não escreve somente sonetos, mas sim rondéis, terza rimas, indrisos, trovas, sextinas etc

Certos poemas não nasceram para se tornar sonetos, certos sentimentos possuem seu próprio ritmo.

5- Explore VÁRIAS MÉTRICAS  e DOMINE A ESCANSÃO.

Do mesmo modo, convém treinar algo além do normal. O mundo não pode ser dividido em decassílabos e alexandrinos. Você pode explorar os dodecassílabos e hendecassílabos, por exemplo, além de versos em forma de pés e não metros. Escandir não é fácil, envolve estudar, estudar e estudar; revisar, revisar e revisar...

6- Arcaísmos em consonância

Para que seu texto pareça realmente saído do século XIX é necessário que várias palavras e construções sintáticas estejam mais formais e dramáticas e precisam estar em concordância.  Seu texto não pode parecer um vício de linguagem chamado preciosismo.

7 - Explorar a segunda pessoa do plural.

O uso de vós fica interessante em textos imitando a Renascença ou o Late Medieval, poucos se lembram disto.

8- Use FIGURAS DE ESTILO

Na minha humilde opinião, uma literatura sem figuras de estilo é uma literatura analfabeta. Uma poesia retrô sempre terá uma hipérbole e/ou uma sinestesia

9- ORDEM INDIRETA importa

A poesia deve nos elevar a alma e enobrecer os sentimentos, isso significa que a ordem indireta é mais adequada que a direta.  Priorize a ordem indireta em várias estrofes.  A frase "deitaria à tarde numa cama com flores com a menina"  pode ser revisada e virar  "Com a donzela no leito das orquídeas ao crepúsculo deslizaria". Observe que já estou aplicando a primeira dica. Temas eróticos e sacros costumam sofrer filtro ou rejeição. O primeiro tipo por conta do público e o segundo pelo proselitismo. A ordem indireta e o bom gosto salvam-nos da pornografia e da pregação chata.  

10- Mais cor na Poesia Gótica

Do mesmo modo como é mais interessante mesclar o roxo com o preto na forma de se vestir ao invés de usar só preto, os textos podem ter muitas cores favorecendo as sombras. Explore o degradê.

11-  Cuidado com envolvimento com temas pessoais.

É magnífico para a Literatura quando um sentimento pouco explorado aparece em poesia e prosa. Acontece que, às vezes, de tão passionais que somos, não sabemos explorar os elementos e fica muito difícil. E, talvez por esta razão, seja melhor esperar um tempo ou tentar uma forma não fixa como quadras, uma série de tercetos,  quintetos etc para poder desdobrar o máximo possível do sentimento.

12- Deixe assar no forno

Serve para o tópico anterior.  Alguns poemas muito sofisticados demoram meses, anos para ficarem prontos. O teto da Capela Sistina não foi feito no microondas. Você precisa ter paciência, guardar os registros, lembrar de voltar neles. Nunca me perdoarei por ter perdido os rascunhos de tanta coisa...

Aparecido Raimundo de Souza (Uma pequena coceira na unha do pé crescida)

 

AVISO: ESTA CRÔNICA CONTÉM LÁGRIMAS DE CROCODILO.

ESTOU A PIQUE. Afundado, naufragado, estropiado. Envolto até os fundilhos do pescoço, vivendo num perigo de proporções gigantescas. Mergulhado, de baixo para cima, de cima para baixo, num mar tenebroso e escuro. Por conta, perdi tudo. Fiquei sem saída, sem amarras onde me agarrar. Neste momento, me encontro sem chão, sem eira nem beira. Em razão disso, tenho constantes suores e calafrios. Tipo um formigamento inexplicável. Atrelado a ele, um medo mórbido e tétrico me invade, me arrasa, me aflige, me angustia e me devassa. Que desilusão! Talvez o vazio que me desmorona, e, neste momento me extermina, seja consequência dos meus dissabores e horrores, dores e dias, horas e confusões, sobretudo das confusões vividas em estado de decadência quando me dirigia à dilapidação do meu próprio “eu” interior. O fato é que na verdade, não sei explicar.

Apenas tenho conhecimento e convicção, ou a prática constante da sapiência em ebulição constante, me mostrando que tudo o que vivo agora, seja um vazio pegajoso e imensurável. Reconheço, um oco cavo, construído, entretanto (apesar de desprovido de sentido lógico), por cordas e nós, fitas e amarras, laços e fortes correntes que me prendem, não me permitindo “sair fora” usque (até que) não consentindo que eu siga em frente, em busca de um horizonte mais sociável, ameno e hospedeiro. Tudo o que me cerca, assume ares de destruição. Esta destruição, por sua vez, creio, imposta goela abaixo, me corrói, me destrói... me aniquila. Se eu pudesse, num instante parar o tempo, rever os dias passados, talvez encontrasse os motivos que hoje me deixam à beira de um estado de nervos incurável. Eu tento, verdade seja dita, mas não consigo.

Alguma coisa que desconheço, me tolhe o desejo veemente de seguir adiante. De caminhar de cabeça erguida. De voltar a viver os momentos bons e maravilhosos que fizeram parte do “meu ontem”. “Meu ontem”… ficou em algum ponto da estrada. Não sei onde, ou de que maneira, este aperreio anunciado (sem anúncio) me ocorreu. Procuro, desde então, ou dito de forma mais pesada, busco tipo um tresloucado, exaltado e aturdido, alucinado e arvorado, dar de cara com uma válvula de escape. Uma porta sem chave, totalmente aberta. Um vão arreganhado, um falho sem miolo. Um desvão infrutífero e alheado (alienado). Um buraco (buraco não, pelo amor de Deus) uma saída emergente. Um escape urgente, um “apenas de gula fula e radiosa”, que me leve de volta ao estado bonançoso onde eu estava e me faça sentir novamente abraçado à Felicidade.

A minha Felicidade se foi. Falo da Felicidade plena. Aquela danada inteira, cheia, repleta, no auge e pronta para a minha degustação. Degustação? Melhor seria, para meu gozo, ou meu desfrute, irmanado à minha sobrevivência. Não importa. O fato concreto é que a safada arrumou as malas e se mandou. Partiu saltitante para a cidade do “Não Sei Onde” e me deixou aqui, sozinho, vazio, despejado das coisas boas. Desempregado da sorte, e pior, aniquilado, abraçado fortemente às desventuras surgidas de minha falta de um Amanhã mais condescendente. Por favor, alguém me acuda. Onde tem um pé de alface? Quero me autodestruir, me automutilar. Matar a mim mesmo tirando, arrancando, desenraizando, eliminando, banindo do peito, da alma, do corpo, dando uns tiros de festim em meu próprio suicídio.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

terça-feira, 10 de outubro de 2023

Mensagem na Garrafa – 5 -


Arlete Araújo
João Pessoa/PB

Sou feita de saudade


Há quem diga que não se pode viver do passado.

Eu digo que não se pode viver no passado

A vida não permite que voltemos no tempo...

Quantas vezes eu tive vontade que aquele segundo voltasse Quantas vezes eu senti os meus braços vazios e quis voltar no tempo e abraçar longamente alguém que já não posso abraçar.

Eu sou feita de saudades, saudade machuca, dói e dói muito.

Saudade me faz chorar, chorar aos prantos e derramar tantas lágrimas que tem horas que penso que vou formar um rio...

Um rio de lágrimas...

É... Saudade faz com que eu eleve os meus olhos aos céus e agradeça ser feita de saudade... Porque é verdade... Sou feita de saudades, mas eu só choro e se sinto dores porque a minha saudade é feita de amores eternos... Amores que nunca, nunca vão findar... Amores infinitos, amores para toda uma eternidade, amores que vão acompanhar meu último suspiro e vão fazer com que minha passagem seja cheia de esperança...

Esperança de que vou rever todos os que tenho saudades e que esses reencontros vão ser a complementação de uma vida.

É. Não vivo no passado, mas faço do meu passado um motivo para viver meu presente da maneira mais feliz possível e viver meu futuro cheio de esperanças em reencontros felizes.

Lá, no outro lado, onde não sei... Existe muita gente importante e a quem eu amei e por quem fui amada e que merecem minhas lágrimas de saudade...

Por isto, sou feita de saudade!

Teófilo Braga (O relógio de Strasburgo)

(CONTO DE 1352)


A idade média está completamente caracterizada nas suas lendas; porque se não há de por elas recompor a história, anima-la com essas cores vivas, dar-lhe movimento. A mais extensa, a que absorveu todas as imaginações rudes e criadoras, foi a lenda do Diabo, reprodução do dualismo persa, que aparece fatalmente no período instintivo da gênese religiosa. Desta idealização do mal provém, na arte, a realização anônima do grotesco, muitos dos velhos fabulários, e na ascese (1) divina a tentação de que estão cheios Ribadaneiras e Bolandistas.

A ciência, nos primeiros séculos da Igreja, foi desprezada, amaldiçoada como inútil e perigosa, porque tornava o espírito rebelde, orgulhoso; a alma perdia com ela a simplicidade que a elevava até Deus. A observação das leis físicas do mundo era uma impiedade; Bacon e Silvestre II foram observados como feiticeiros. É um martírio interminável o desenvolvimento da razão. Foi um dos algozes São Paulo: «Eu destruirei a sabedoria dos sábios e rejeitarei a ciência dos eruditos. O que é feito dos sábios? O que é feito destes espíritos curiosos das ciências do século? Não os há convencido Deus da loucura das ciências deste mundo?» A Igreja não se contentou com a acrimônia da invectiva (2), quis encarnar este verbo do obscurantismo. As lutas e as agonias que se seguiram estão perpetuadas em um sem número de lendas sobre as revoltas do espírito, que vieram a sintetizar-se no tipo do Fausto.

Em pleno século XIV. O sol brilhante, em um céu sereno e límpido de um dia de alegria, derramava-se em torrentes sobre a catedral de Strasburgo. Voltada para o oriente, segundo o rigor do simbolismo religioso, recebia a luz do alto, como um cenáculo em que as línguas de fogo vinham revelar os mistérios da vida e a serenidade, que ela havia de infundir aos tristes que se acolhessem, fugidos das tempestades do mundo, na tranquilidade do seu recinto. A luz refletia-se coruscante das vidraças, que ostentavam um rosicler das cores mais caprichosas e vivas; cada pedra, cada ângulo, cada saliência destacava-se mostrando os rendilhados e labores esquisitos; a torre parecia então mais altiva, não erguia-se com as nuvens, perdia-se na profundeza do espaço azulado e puro. Era um belo dia de primavera.

Diante da catedral majestosa foram-se agrupando pouco a pouco alguns vultos ociosos; e, atraída na razão direta das massas, instantes depois a multidão flutuava impaciente, como quem espera um prodígio anunciado, por exemplo, um eclipse.

Não era nenhum eclipse, nem tampouco o aparecimento de um cometa, que então fazia tremer os pontífices e os reis. Não era mesmo procissão esplêndida, que o povo e os amadores de tertúlias estavam esperando com ansiedade. O que seria então?

Uma figura estranha, encapuzada em um capote com capuz escuro, chapéu emplumado ao uso da corte, vinha montado, a sela, em um cavalo malhado; custava-lhe a romper por entre a turba apinhada; estrangeiro ali, não quis atropelar ninguém, e resolveu esperar que o concurso fosse diminuindo.

—O que está toda esta gente aqui a fazer, em um dia de trabalho? — perguntou o desconhecido para um rapaz, que parecia esconder-se entre o vulgo, com um ar de tristeza e de uma dor incomum. — Há alguma procissão ou festa de jubileu? Ainda as portas da catedral estão fechadas.

— É certo que vindes de bem longe, — volveu-lhe vivamente o pobre rapaz — pois que ainda vos não chegou a fama do grande Relógio de Strasburgo. É uma maravilha da Alemanha. Não vedes aquela estatuazinha da Virgem? Diante dela, vem ao bater do meio dia os três Reis Magos com seus presentes, e o Galo autômato, que lá está, sacode as asas logo que o sol toca o zênite.

O cavaleiro não teve tempo para compreender o que ouviu, porque um sussurro imenso, repentino, burburinhou por toda a praça. O carrilhão de Strasburgo dava meio dia. Ficaram boquiabertos, atentos esperando o aparecimento dos Reis Magos. Sentiu-se primeiro o ruído estrepitoso de umas asas pesadas, depois o clangor de uma voz énea, soturna. O cavaleiro estava pasmado com o que via. A fama do Relógio de Strasburgo correra as partes do mundo. Os palácios, os mosteiros, os castelos desejavam uma maravilha igual. Ignorava-se o nome do artista. Os clérigos da catedral ufanavam-se com tão magnífico e singular artefato.

— Oh! dize-me, — acudiu o cavaleiro, saindo do espasmo da admiração — dize-me quem fez esta obra prodigiosa, que é a inveja de todas as cidades do mundo! Porque não se fala o nome dele? Onde está o artista? Venho de França para vê-lo.

— Perguntais, nobre cavaleiro, como se eu pudesse violar tal segredo! Mal sabeis que as vossas palavras acordam na minha alma uma dor profunda como um eco num páramo aziago. Quem fez o Relógio, perguntais vós, e a gloria tenta-me, precipita-me, impele-me a arriscar a vida! Foi meu pai! — e as lágrimas de alegria e pesar foram-lhe embargando-lhe os olhos, até que rompeu em um choro insofrido de criança. O cavaleiro apeou-se e estreitou-o nos braços.

— É a saudade de teu pai, que te lava o rosto com esse pranto de ingenuidade e amor? Não soube a morte respeitar tão preclaro engenho? E eu que vinha da parte de Carlos V, de França, para visita-lo e falar-lhe!

— Ele ainda vive, senhor. Mas que vida! Oh! antes a morte o tivesse envolvido nas suas trevas geladas; antes houvesse nascido sem aquela luz do talento, que é sempre a predestinação do martírio.

A praça estava já deserta, e os dois partiram envolvidos nesta conversação. Chegaram na oficina do relojoeiro. Era um velho; as cãs alvíssimas formavam-lhe um diadema venerando; tinha o rosto escondido entre as mãos, como quem se abismara numa abstração intensa, ou numa grande e entranhável agonia. O estrangeiro permaneceu hirto sob a soleira da porta; não se atrevia a interromper os processos misteriosos daquela mente perscrutadora. A criança aproximou-se com familiaridade, e segredou-lhe longamente umas palavras mal articuladas e confusas. O velho ergueu então a fronte banhada em uma alegria suave, e voltou-se para a porta:

— Buscam-me da parte de El-rei Carlos V de França? — perguntou ele com um ar afável e indicando um assento ao desconhecido.

— Em verdade, El-rei me envia aqui.

— E o que pretende de mim, que nada posso, El-rei, que tudo manda?

— Conhecendo a vossa boa fama, vendo que enriquecestes a Alemanha com essa maravilha do Relógio de Strasburgo, ele quer também colocar na torre do palácio da Justiça uma máquina, que dividindo com justeza as doze horas do dia, ensine a observar a justiça e as leis.

— Como o não serviria eu de boa vontade, se me não houvessem apagado para sempre o lume dos olhos. Não vedes estas órbitas vazias? Cegaram-me. Há já dezesseis anos que vivo mergulhado nestas sombras cerradas, que me antecipam a escuridão tétrica do sepulcro, mas que me prolongam a vida, no abandono da desgraça, para sofrer a cada instante as mais excruciantes provações. Eu vivo ao desamparo; nem sei já trabalhar. Nesta solidão do espírito, para esquecer o tédio e o desespero que me pungem, eu invento maquinismos complicados, que o meu pobre filho executa. É ele o herdeiro do meu engenho. Cada pancada do relógio no carrilhão da catedral, é uma palavra de sarcasmo, um insulto vibrado por uma língua satânica, só entendida por mim. Vou contando as horas na mudez das noites de insônia, e cada uma me descreve com mais feias cores esta morte onde fui precipitado em vida.

Havia nas palavras do velho um misto de resignação e dor, uma conformidade, uma santidade admirável. A fronte, enrugada pelos anos e o estudo, pendia-lhe sobre o peito; o filho ainda imberbe, engraçado, ingênuo, estava de pé a seu lado, mudo, com os olhos no chão.

— Como houve mãos tão bárbaras, que ousaram por diante do vosso espírito, para sempre, a sombra eterna da morte? Foi o acaso? Foi a perversidade que vos desempenhou nessa desgraça? Seria a inveja quem vos suplantou à traição, vendo-se obrigada a admirar os artefatos que não podia exceder? Oh, contai-me. Não! não! tenho horror de ouvir; deve custar-vos muito isso. El-rei há de sabe-lo e acudir-vos.

O velho ergueu lentamente a fronte; pousou as mãos sobre a cabeça loira do filho, brincando distraído com os cabelos anelados. Depois de um momento de indecisão, começou:

— O bispo João de Lichtenberg encomendou-me um relógio grande para a torre de Strasburgo. Era preciso que as horas canônicas fossem observadas com escrúpulo; as irregularidades na divisão do tempo causavam graves inconvenientes às rezas e ofícios divinos do coro. Eu trabalhei dois anos consecutivos; tinha empenhada naquela obra a minha fama. Inventei um calendário em que representava as indicações das principais festas móveis: ao lado pus-lhe um quadro em que estavam escritas em verso as principais propriedades dos sete planetas; ao meio coloquei-lhe um astrolábio, em que os ponteiros notavam o movimento do sol e da lua, as horas e os quartos. Ao alto estava uma estátua da Virgem, ante a qual se inclinavam, ao dar do meio dia, as figuras dos três Reis Magos. Ficaram espantados com a maravilha da obra; soou por toda a parte a fama dela. O povo aglomerava-se na praça para ver. Os clérigos recearam que os outros mosteiros ou as cortes da Europa quisessem ter um monumento igual. Como impedi-lo? Uma noite, estava eu descansando do trabalho assíduo, improbo que levava, quando me bateram na porta. Vieram dizer-me que o relógio estava parado. Levantei-me às pressas, aterrado, confuso, e dirigi-me para a torre. Quando ia subindo, e já a uma altura vertiginosa, apagaram-se de repente os archotes; os que me acompanhavam, lançaram mão de mim para me precipitar; as unhas prenderam-me às fendas da cantaria (3), com a tenacidade do amor à vida. Por fim, cansados, agarraram-me, arrancaram-me os olhos. Aos meus gritos, os malvados respondiam que me desse por feliz em não ser queimado vivo na praça pública, exposto à irrisão da plebe, por feiticeiro; que eu tinha pacto com Satanás, que o evocava com linhas cabalísticas com que formava as rodas dentadas.

O pobre velho permaneceu um instante silencioso refletindo no assombro daquela noite infernal; depois mudando de conversa, o embaixador pediu-lhe para levar o filho, que havia de fazer por certo o relógio para o palácio da justiça. Não faltaram negações e hesitações. O velho conhecia o talento do filho, e temia um igual desastre. O cavaleiro jurou protege-lo com a vida, e traze-lo incólume à casa de seu pai, logo que tivesse findado o trabalho.

O relógio foi posto na torre do palácio da Justiça, e ele que aconselhava a observância da justiça e das leis, foi o mesmo que, dois séculos mais tarde deu o sinal para a execrável carnificina da noite de S. Bartolomeu.

Quando o filho do relojoeiro de Strasburgo voltou à pátria, ainda o pobre velho vivia. Estava no meio da sua desgraça, possuído de uma alegria infinita. Na solidão do espírito em que ficara, procurara constantemente vingar-se. Vingou-se afinal.

Um dia conseguiu aproximar-se do Relógio, e tocou em uma roda de tal forma, que não tornou mais a regular, apesar de todos os esforços; em 1574, intentou restaura-lo Dasypodius, outros em 1669, em 1731, até que cessou de trabalhar em 1789, como uma relíquia última da idade média que arrebatava a Revolução. O desgraçado levava esta única consolação do mundo. A mesma lenda se conta dos relógios de Nuremberg, de Auxerre e Lyon, em que as versões parecem filhas da compreensão de uma mesma verdade.
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VOCABULÁRIO
(1) Ascese =conjunto de práticas austeras, comportamentos disciplinados e evitações morais prescritos aos fiéis, tendo em vista a realização de desígnios divinos e leis sagradas.
(2) Invectiva =palavra ou série de palavras injuriosas e violentas contra alguém ou algo.
(3) Cantaria =pedra lavrada ou aparelhada em forma geométrica, para uso em construções; pedra de cantaria.


Fonte:
Disponível em Domínio Público
Teófilo Braga. Contos Phantásticos. Lisboa: Livraria de Antonio Maria Pereira, 1894.
Português atualizado por J. Feldman

O Livro em Trovas


Deste espaço que, na vida,
preenchemos com tempo certo,
daremos conta devida,
da Vida no Livro aberto!
Alberto Fernando Bastos
Rio de Janeiro/RJ, 1921 –

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“Livro é presente de amigo”
– é o que se diz fartamente.
E eu acrescento comigo:
“Livro é um amigo presente”.
Anatole Ramos
Ervália/MG, 1924 – 1994, Goiânia/GO

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Dar um livro de presente
este remédio me enseja:
quem o dá é inteligente
e espera que o outro o seja...
Aparício Fernandes
Acari/RN, 1934 – 1996, Rio de Janeiro/RJ

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Livros há cuja estrutura
lembra a do arado, na essência:
– rasgam sulcos de cultura
no campo da inteligência.
Cesídio Ambrogi
Natividade da Serra/SP, 1893 — 1974, Taubaté/SP

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Todo livro, quando aberto,
é pólen, é flor, é fruto...
Fechado é sombra, é deserto,
é silêncio, é campa, é luto.
Cyro Armando Catta Preta
São Paulo/SP, 1922 – 2010, Orlândia/SP

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Semeador de esperanças,
Lobato foi mais além:
dando livros às crianças,
semeou sonhos também!
David de Araújo
Santos/SP

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O livro é o maior dos bens,
sem ele crescem teus males...
Dize-me os livros que tens
e eu te direi quanto vales.
Durval Mendonça
Rio de Janeiro, 1906 – 2001

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Se queres ter um Amigo
que não fala, pois é mudo,
o Livro é luz que bendigo,
que calado, fala tudo.
Filemon F. Martins
São Paulo/SP

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Livro bom, lido com calma,
traz emoção e alegria...
Por isso dói tanto n’alma
ver uma estante vazia!
Hermoclydes Siqueira Franco
Niterói/RJ, 1929 – 2012, Rio de Janeiro/RJ

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Nada mais belo, decerto,
no cenário da esperança,
que a imagem de um livro aberto
sob o olhar de uma criança!
José Lucas de Barros
Serra Negra do Norte/RN, 1934 – 2015, Natal/RN

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Não sei se todos ponderam
a troca que o livro traz…
Grandes homens o fizeram,
grandes homens ele faz!
Lucília A. Trindade Decarli
Bandeirantes/PR

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É celulose modesta,
mas seu destino, fecundo,
pois – da sombria floresta –
o livro ilumina o mundo.
Maria Thereza Cavalheiro
São Paulo/SP , 1929 – 2018

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O livro, triste mar morto,
na estante, limpo, fechado.
Luzeiro, molde, conforto,
livro velhinho, ensebado.
Nair Starling
Santa Luzia do Rio das Velhas/MG, 1909 -

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Quando passo alguns minutos
no pomar, a um livro atento,
eu penso em colher bons frutos...
Os frutos do pensamento.
Nereu Humberto Frickmann
Niterói/RJ

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De livros encham-se as casas,
eis um conselho excelente,
pois o livro, aberto em asas,
põe asas n’alma da gente.
Orlando Brito
Niterói/RJ, 1927 – 2010, São Luís/MA

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Bendito aquele que lança
um livro sério, profundo,
e faz voltar a esperança
que vai fugindo do mundo.
Paulo Emílio Pinto
Conselheiro Lafaiete, 1906 – ????, Belo Horizonte/MG

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Dai bons livros à criança
e um ensino permanente:
o livro é verde esperança,
que abre os caminhos da mente.
P. de Petrus
São Paulo/SP, 1920-1999

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Sempre em silêncio profundo,
entre dores e alegrias,
no livro se encerra um mundo
de eternas sabedorias.
Reinaldo de Aguiar
Natal/RN, 1921 – 2010

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Não me tenhas por ausente;
se não vai carta, não zangue.
O livro é o melhor presente,
feito com suor e sangue.
Renato Baez +
São Paulo/SP

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Mais sábio na vida é quem
possui a sabedoria
daqueles que sempre têm
bons livros por companhia.
Sebas Sundfeld
Pirassununga/SP, 1924 – 2015, Tambaú/SP

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Aberto em asas de paz,
na escola, no lar, na igreja,
por todo o bem que nos faz,
o livro bendito seja!
Vera Vargas
Curitiba/PR, 1922 - 2000

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Um livro, um filho, uma planta,
pela estrada percorrida...
Quem consegue glória tanta,
plantou sementes na vida.
Wilson Dantas
Ceará-Mirim/RN, 1920 – 1998, Natal/RN

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Fonte: Sammis Reachers (seleção e edição). Poemas sobre Sua Majestade, o LIVRO: uma microantologia. ebook.

Machado de Assis (Vinte Anos! Vinte Anos!)

Gonçalves, despeitado, amarrotou o papel, e mordeu o beiço. Deu cinco ou seis passos no quarto, deitou-se na cama, de barriga para o ar, pensando; depois foi à janela, e esteve ali durante dez ou doze minutos, batendo o pé no chão e olhando para a rua, que era a rua detrás da Lapa.

Não há leitor, menos ainda leitora, que não imagine logo que o papel é uma carta, e que a carta é de amores, alguma zanga de moça, ou notícia de que o pai os ameaçava, que a intimou a ir para fora, para a roça, por exemplo. Vão conjecturas! Não se trata de amores, não é mesmo carta, posto que haja embaixo algumas palavras assinadas e datadas, com endereço a ele. Trata-se disto. Gonçalves é estudante, tem a família na província e um correspondente na corte, que lhe dá a mesada. Gonçalves recebe a mesada pontualmente; mas tão depressa a recebe como a dissipa. O que acontece é que a maior parte do tempo vive sem dinheiro; mas os vinte anos formam um dos primeiros bancos do mundo, e Gonçalves não dá pela falta. Por outro lado, os vinte anos são também confiados e cegos; Gonçalves escorrega aqui e ali, e cai em desmandos. Ultimamente, viu um sobretudo de peles, obra soberba, e uma linda bengala, não rica, mas de gosto; Gonçalves não tinha dinheiro, mas comprou-os fiado. Não queria, note-se; mas foi um colega que o animou. Lá se vão quatro meses; e instando o credor pelo dinheiro, Gonçalves lembrou-se de escrever uma carta ao correspondente, contando-lhe tudo, com tais maneiras de estilo, que enterneceriam a mais dura pedra do mundo.

O correspondente não era pedra, mas também não era carne; era correspondente, aferrado à obrigação, rígido, e possuía cartas do pai de Gonçalves, dizendo-lhe que o filho tinha uma grande queda para gastador, e que o reprimisse. Entretanto, estava ali uma conta; era preciso pagá-la. Pagá-la era animar o moço a outras. Que fez o correspondente? Mandou dizer ao rapaz que não tinha dúvida em saldar a dívida, mas que ia primeiro escrever ao pai, e pedir-lhe ordens; dir-lhe-ia na mesma ocasião que pagara outras dívidas miúdas e dispensáveis. Tudo isso em duas ou três linhas embaixo da conta, que devolveu.

Compreende-se o pesar do rapaz. Não só ficava a dívida em aberto, mas, o que era pior, ia notícia dela ao pai. Se fosse outra coisa, vá; mas um sobretudo de peles, luxuoso e desnecessário, uma coisa que realmente ele achou depois que era um trambolho, pesado, enorme e quente... Gonçalves dava ao diabo o credor, e ainda mais o correspondente. Que necessidade era essa de ir contá-lo ao pai? E que carta que o pai havia de escrever! que carta! Gonçalves estava a lê-la de antemão. Já não era a primeira: a última ameaçava-o com a miséria.

Depois de dizer o diabo do correspondente, de fazer e desfazer mil planos, Gonçalves assentou no que lhe pareceu melhor, que era ir à casa dele, na Rua do Hospício, descompô-lo, armado de bengala, e dar-lhe com ela, se ele replicasse alguma coisa. Era sumário, enérgico, um tanto fácil, e, segundo lhe dizia o coração, útil aos séculos.

— Deixa estar, patife! quebro-te a cara.

E, trêmulo, agitado, vestiu-se às carreiras, chegando ao extremo de não pôr a gravata; mas lembrou-se dela na escada, voltou ao quarto, e atou-a ao pescoço. Brandiu no ar a bengala para ver se estava boa; estava. Parece que deu três ou quatro pancadas nas cadeiras e no chão — o que lhe mereceu não sei que palavra de um vizinho irritadiço. Afinal saiu.

— Não, patife! não me pregas outra.

Eram os vinte anos que irrompiam cálidos, férvidos, incapazes de engolir a afronta e dissimular. Gonçalves foi por ali fora, Rua do Passeio, Rua da Ajuda, Rua dos Ourives, até à Rua do Ouvidor. Depois lembrou-se que a casa do correspondente, na Rua do Hospício, ficava entre as de Uruguaiana e dos Andradas; subiu, pois, a do Ouvidor para ir tomar a primeira destas. Não via ninguém, nem as moças bonitas que passavam, nem os sujeitos que lhe diziam adeus com a mão. Ia andando à maneira de touro. Antes de chegar à Rua de Uruguaiana, alguém chamou por ele.

— Gonçalves! Gonçalves!

Não ouviu e foi andando. A voz era de dentro de um café. O dono dela veio à porta, chamou outra vez, depois saiu à rua, e pegou-o pelo ombro.

— Onde vais?

— Já volto...

— Vem cá primeiro.

E tomando-lhe o braço, voltou para o café, onde estavam mais três rapazes a uma mesa. Eram colegas dele, — todos da mesma idade. Perguntaram-lhe onde ia; Gonçalves respondeu que ia castigar um pelintra, donde os quatro colegas concluíram que não se tratava de nenhum crime público, inconfidência ou sacrilégio, — mas de algum credor ou rival. Um deles chegou mesmo a dizer que deixasse o Brito em paz.

— Que Brito? perguntou o Gonçalves.

— Que Brito? O preferido, o tal, o dos bigodes, não te lembras? Não te lembras mais da Chiquinha Coelho?

Gonçalves deu de ombros, e pediu uma xícara de café. Tratava-se nem da Chiquinha Coelho nem do Brito! Há coisa muito séria. Veio o café, fez um cigarro, enquanto um dos colegas confessava que a tal Chiquinha era a pequena mais bonita que tinha visto desde que chegara. Gonçalves não disse nada; entrou a fumar e a beber o café, aos goles, curtos e demorados. Tinha os olhos na rua; no meio da conversa dos outros, declarou que efetivamente a pequena era bonita, mas não era a mais bonita; e citou outras, cinco ou seis. Uns concordaram em absoluto, outros em parte, alguns discordaram inteiramente. Nenhuma das moças citadas valia a Chiquinha Coelho. Debate longo, análise das belezas.

— Mais café, disse Gonçalves.

— Não quer conhaque?

— Traga... não... está bom, traga.

Vieram ambas as coisas. Uma das belezas citadas passou justamente na rua, de braço com o pai, deputado. Daqui um prolongamento de debate, com desvio para a política. O pai estava prestes a ser ministro.

— E o Gonçalves genro do ministro!

— Deixa de graças, redarguiu rindo o Gonçalves.

— Que tinha?

— Não gosto de graças. Eu genro? Demais, vocês sabem as minhas opiniões políticas; há um abismo entre nós. Sou radical...

— Sim, mas os radicais também se casam, observou um.

— Com as radicais, emendou outro.

— Justo. Com as radicais...

— Mas você não sabe se ela é radical.

— Ora bolas, o café está frio! exclamou Gonçalves. Olhe lá; outro café. Tens um cigarro? Mas então parece a vocês que eu chegue a ser genro do ***. Ora que caçoada! Vocês nunca leram Aristóteles?

— Não.

— Nem eu.

— Deve ser um bom autor.

— Excelente, insistiu Gonçalves. Ó Lamego, tu lembras-te daquele sujeito que uma vez quis ir ao baile de máscaras, e nós lhe pusemos um chapéu, dizendo que era de Aristóteles?

E contou a anedota, que na verdade era alegre e estúrdia; todos riram, começando por ele, que dava umas gargalhadas sacudidas e longas, muito longas. Veio o café, que era quente, mas pouco; pediu terceira xícara, e outro cigarro. Um dos colegas contou então um caso análogo, e, como falasse de passagem em Wagner, conversaram da revolução que o Wagner estava fazendo na Europa. Daí passaram naturalmente à ciência moderna; veio Darwin, veio Spencer, veio Büchner, veio Moleschott, veio tudo. Nota séria, nota graciosa, uma grave, outra aguda, e café, cigarro, troça, alegria geral, até que um relógio os surpreendeu batendo cinco horas.

— Cinco horas! exclamaram dois ou três.

— No meu estômago são sete, ponderou um dos outros.

— Onde jantam vocês?

Resolveram fazer uma revista de fundos e ir jantar juntos. Reuniram seis mil-réis; foram a um hotel modesto, e comeram bem, sem perder de vista as adições e o total. Eram seis e meia, quando saíram. Caía a tarde, uma linda tarde de verão. Foram até o Largo de S. Francisco. De caminho, viram passar na Rua do Ouvidor algumas moças retardatárias; viram outras no ponto dos bondes de S. Cristóvão. Uma delas desafiou mesmo a curiosidade dos rapazes. Era alta e fina, recentemente viúva. Gonçalves achou que era muito parecida com a Chiquinha Coelho; os outros divergiram. Parecida ou não, Gonçalves ficou entusiasmado. Propôs irem todos no bonde em que ela fosse; os outros ouviram rindo.

Nisto a noite foi chegando; eles tornaram à Rua do Ouvidor. Às sete e meia caminharam para um teatro, não para ver o espetáculo (tinham apenas cigarros e níqueis no bolso), mas para ver entrar as senhoras. Uma hora depois vamos achá-los, no Rocio, discutindo uma questão de física. Depois recitaram versos, deles e de outros. Vieram anedotas, trocadilhos, pachuchadas (tolices); muita alegria em todos, mas principalmente no Gonçalves que era o mais expansivo e ruidoso, alegre como quem não deve nada. Às nove horas tornou este à Rua do Ouvidor, e, não tendo charutos, comprou uma caixa por vinte e dois mil-réis, fiado. Vinte anos! Vinte anos!

Fonte:
Machado de Assis. Contos esparsos. Publicado originalmente em A Estação, de 15/7/1884.
Disponível em Domínio Público.