sábado, 12 de novembro de 2011

Cruz e Souza (O Livro Derradeiro) Parte XIV


BEIJOS

Nesta Tebaida infinita
Da vida, na sombra oculto,
Eu gosto de olhar o vulto
De uma criança bonita.

Porque afinal as crianças,
Como eu deslumbro-me ao vê-las,
Cintilam como as estrelas,
Florescem como esperanças.

Dentro de mim se projeta
A luz cambiante dos prismas
E batem asas as cismas
Qual passarada irrequieta.

E batem asas e ruflam,
Pelas artísticas plagas,
As auras que as grandes vagas
Dos fundos mares insuflam.

E digo, ó mães, se uma aurora
Fosse a minh’alma sincera,
Os clarões todos eu dera
A uma criança que chora.

Porque se a luz fortalece
Arbustos e as andorinhas,
Também por certo às criancinhas
Conforta, avigora, aquece.

E eu que aplaudo e que rimo
Tudo isso que a luz se regre,
Na vibração mais alegre
As criancinhas estimo.

Portanto, assim, sem refolhos
Beijando a Olga, beijando
Meus sonhos vão, irradiando,
Se derramar em seus olhos!

PIRUETAS

Finou-se um tal inglês
Gastrônomo e patife
Que tanto -- de uma vez
Comeu, comeu e esparramou-se em bife;
Que um dia de jejum,
Pela pança rotunda e quixotesca,
Teve um parto... comum,
Um feto original... de came fresca.

AS DEVOTAS

I

Enquanto o sino bimbalha,
Bimbalha, bimbalha e tine,
Lançai do olhar a migalha
-- Enquanto o sino bimbalha --
À raça que se amortalha
No horror que não se define...
Enquanto o sino bimbalha
Bimbalha, bimbalha e tine.

II

Perto da Igreja a senzala,
O Cristo junto aos escravos
E, pois, deveis visitá-la,
Perto da Igreja, a senzala
E procurar transfarmá-la
Da luz às palmas, aos bravos!...
Perto da Igreja a senzala,
O Cristo junto aos escravos.

III

E tão-somente por isto
Enquanto o sino bimbalha,
Bem antes de terdes visto
-- E tão-somente por isto --
Todo o martírio do Cristo,
O vosso amor que lhes valha,
E tão-somente por isto,
Enquanto o sino bimbalha.

[MEUS ESPLÊNDIDOS...]

Meus esplêndidos desejos
Emigram, como beijos,
Pelo azul espaço, em curvas,
Rasgando essas brumas turvas;
Pelo sol das primaveras,
Batendo as asas brancas,
Como, batem, quimeras...
...............................................
Voai, andorinhas francas!

NUNCA SE CALA O CALADO

Nunca se cala o Callado
E sempre o Callado, fala
Callado que não se cala,
Nunca se cala o Callado,
Callado sem ser calado,
Callado que é tão falado...
Nunca se cala o Callado
E sempre o Callado, fala.

OLHARES

Teus traquinantes olhinhos
Continhas, Ziza, parecem;
Zigzagam sempre, tontinhos
Teus traquinantes olhinhos;
Tão pretos, tão redondinhos
Olhinhos que me embevecem,
Teus traquinantes olhinhos
Continhas, Ziza, parecem.

NAS EXPLOSÕES DE BONS RISOS

Nas explosões de bons risos
Os triolés petulantes
Chocalhem, tinam, precisos
Nas explosões de bons risos,
Tilintem como mil guisos
Sonoros, raros, vibrantes
Nas explosões de bons risos,
Os triolés petulantes.

TRIOLÉ - PEGA ESTES ZOTES

Triolé -- pega estes zotes
E dá-lhes de baixo acima
Preso ao trapézio da rima
Na mais artística esgrima
D’estouros e piparotes,
Preso, ao trapézio da rima
Triolé - pega estes zotes.

GRITO DE GUERRA

Aos senhores que libertam escravos

Bem! A palavra dentro em vós escrita
Em colossais e rubros caracteres,
É valorosa, pródiga, infinita,
Tem proporções de claros rosicleres.

Como uma chuva olímpica de estrelas
Todas as vidas livres, fulgurosas,
Resplandecendo, — vós tereis de vê-las
Rolar, rolar nas vastidões gloriosas.

Basta do escravo, ao suplicante rogo,
Subindo acima das etéreas gazas,
Do sol da idéia no escaldante fogo,
Queimar, queimar as rutilantes asas.

Queimar nas chamas luminosas, francas
Embora o grito da matéria apague-as;
Porque afinal as consciências brancas
São imponentes como as grandes águias.

Basta na forja, no arsenal da idéia,
Fundir a idéia que mais bela achardes,
Como uma enorme e fulgida Odisséia
Da humanidade aos imortais alardes.

Quem como vós principiou na festa
Da liberdade vitoriosa e grande,
Há de sentir no coração a orquestra
Do amor que como um bom luar se expande.

Vamos! São horas de rasgar das frontes
Os véus sangrentos das fatais desgraças
E encher da luz dos vastos horizontes
Todos os tristes corações das raças...

A mocidade é uma falena de ouro,
Dela é que irrompe o sol do bem mais puro:
Vamos! Erguei vosso ideal tão louro
Para remir o universal futuro...

O pensamento é como o mar — rebenta,
Ferve, combate — herculeamente enorme
E como o mar na maior febre aumenta,
Trabalha, luta com furor — não dorme.

Abri portanto a agigantada leiva,
Quebrando a fundo os espectrais embargos,
Pois que entrareis, numa explosão de seiva,
Muito melhor nos panteões mais largos.

Vão desfilando como azuis coortes
De aves alegres nas esferas calmas,
Na atmosfera espiritual dos fortes,
Os aguerridos batalhões das almas.

Quem vai da sombra para a luz partindo
Quanta amargura foi talvez deixando
Pelas estradas da existência — rindo
Fora — mas dentro, que ilusões chorando.

Da treva o escuro e aprofundado abismo
Enchei, fartai de essenciais auroras,
E o americano e fértil organismo
De retumbantes vibrações sonoras.

Fecundos germens racionais produzam
Nessas cabeças, claridões de maios...
Cruzem-se em vós — como também se cruzam
Raios e raios na amplidão dos raios.

Os britadores sociais e rudes
Da luz vital às bélicas trombetas,
Hão de formar de todas as virtudes
As seculares, brônzeas picaretas.

Para que o mal nos antros se contorça
Ante o pensar que o sangue vos abala,
Para subir — é necessário — é força
Descer primeiro a noite da senzala.

ADALZIZA

Tens um olhar cintilante,
Tens uma voz dulçurosa,
Tens um pisar fascinante,
Tens um olhar cintilante
Cheio de raios, faiscante
Ó criatura formosa,
Tens um olhar cintilante,
Tens uma voz dulçurosa!...

[TEUS OLHOS]

Tão doces como os arminhos,
Esse casal de ilusões!...
Das folhagens do campo em meio da espessura,
Teus olhos -- esses carinhos,
Esse casal de ilusões
Teus olhos -- esses carinhos
Parecem ser os dois ninhos
Das minhas consolações,
Teus olhos -- esses carinhos

Fonte:
Cruz e Sousa, Poesia Completa, org. de Zahidé Muzart, Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura / Fundação Banco do Brasil, 1993.

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