terça-feira, 8 de novembro de 2011

Eduardo F. Coutinho (Guimarães Rosa: Um Alquimista da Palavra)


UM DOS MAIORES ourives da palavra que a literatura brasileira jamais conheceu e ao mesmo tempo um dos mais perspicazes investigadores dos matizes da alma humana em seus rincões mais profundos, Guimarães Rosa é hoje, entre os escritores brasileiros do século XX, talvez o mais divulgado nos meios acadêmicos nacionais e estrangeiros e o detentor de uma fortuna crítica não só numericamente significativa, como constituída pelo que de melhor se vem produzindo em termos de crítica no país. No entanto, apesar da complexidade de sua obra, resultante em grande parte da verdadeira revolução que empreendeu da linguagem ficcional, o sucesso de Guimarães Rosa não se restringe ao contexto intelectual.

Prova-o bem a grande quantidade de edições que se sucedem de seus livros e o número expressivo de traduções que povoam cada vez mais o mercado internacional. Prova-o também a série de leituras que ela vem recebendo por parte do teatro (Sarapalha, por exemplo), e da mídia cinematográfica e televisiva (longametragens como A hora e vez de Augusto Matraga, Duelo, Noites do sertão, Cabaré mineiro e A terceira margem do rio, entre outros, e a série televisiva Diadorim). A presente edição tem o mérito de reunir, pela primeira vez em volumes conjuntos, a obra completa do autor, acompanhada de cronologia, bibliografia ativa e passiva atualizada, e uma breve seleção de sua fortuna crítica. É uma contribuição extremamente relevante que a Nova Aguilar oferece ao público, revitalizando, como já o vem fazendo há algum tempo, a tradição iniciada por Afrânio Coutinho e consolidada nos áureos tempos da antiga Aguilar.

Desde a publicação, em 1946, de seu primeiro livro, Guimarães Rosa se tornou alvo de interesse da
crítica. Efetuando um verdadeiro corte no discurso tradicional da ficção brasileira, máxime no que concerne à linguagem e estrutura narrativa,

Sagarana causou forte impacto no meio literário da época, dividindo os críticos em duas posições extremas: de um lado aqueles que se encantaram com as inovações presentes na obra e teceram-lhe comentários altamente estimulantes, e de outro os que, presos a uma visão de mundo mais ortodoxa e baseados no modelo ainda dominante da narrativa dos anos 3O - o chamado "romance do engajamento social" - acusaram o livro de "excessivo formalismo". Estas posições da crítica, tanto a apologética quanto a restritiva, que apreenderam a obra através de uma perspectiva monocular, vão sofrer séria revisão mais tarde - principalmente após o surgimento de Grande sertão: veredas - mas o registro de sua reação no momento da publicação de Sagarana indica o sentido de ruptura que caracteriza a obra com relação à tradição literária brasileira ainda dominante, apesar dos esforços da primeira geração modernista, e aponta o seu parentesco com outras obras também inovadoras que vinham surgindo ou já haviam surgido no seio de outras literaturas vinculadas à nossa, como a hispano-americana e a norte-americana, ou, de maneira mais ampla, no próprio corpus da literatura ocidental como um todo.

Deixando de lado o segundo aspecto por implicar um estudo comparativo mais amplo que transcenderia o objetivo deste ensaio, e concentrandonos no primeiro, lembremo-nos de que, no quadro da literatura brasileira, a obra de Guimarães Rosa é geralmente situada dentro da terceira geração modernista, também designada "geração do instrumentalismo", por caracterizar-se, entre outras coisas, por acentuada preocupação com a exploração das potencialidades do discurso, com o sentido "estético" do texto, e por expressar, na maioria dos casos, profunda consciência do caráter de ficcionalidade da obra, de sua própria literariedade. Tais elementos, presentes em quase todos os autores que a historiografia literária normalmente inclui nessa geração, são levados a um extremo na ficção rosiana, o que explica em parte a reação mencionada da crítica.

Contudo, o que esta crítica não percebeu de imediato é que a ruptura introduzida por Guimarães Rosa, longe de constituir mera obsessão formal, uma espécie de capricho ou moda, acarretava ao contrário uma proposta estético-política de caráter mais amplo, somente evidenciável quando confrontada com a visão de mundo dominante no período imediatamente anterior - a da narrativa dos anos 3O - e expressa em premissas, formuladas pelo próprio autor em entrevista ã Günter Lorenz, como a de que "o escritor deve ser um alquimista" e de que "somente renovando a língua é que se pode renovar o mundo".

Fonte:
ROSA, João Guimarães. Ficção completa, em dois volumes. Rio de Janeiro : Nova Aguilar,1994.

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