entrevista publicada no jornal da Fundação Catarinense de Cultura de setembro de 2002
Como apresentaria sociológica e culturalmente seu núcleo familiar de origem e seu meio ambiente? (Onde e quando nasceu, a família, os pais, a infância, as primeiras experiências, os brinquedos, etc.)
- Guido Wilmar Sassi - Nasci em 1922, em Lages, interior de Santa Catarina. Família pobre. Lages era, então, uma cidadezinha. Quando eu tinha sete anos, a família mudou-se para Campos Novos, muito mais cidadezinha do que Lages. Dos sete aos dezoito anos, morei em Campos Novos - lá passei a época mais feliz da minha vida.
O mar sempre foi uma das minhas maiores paixões. Então, como as cidades da minha infância e juventude situavam-se a uns novecentos e tantos metros de altitude, e muito longe do litoral, eu inventava setenta e sete vezes sete mares para meu uso próprio e prazer particular. Isso graças aos filmes e livros de aventuras marítimas e principalmente a minha imaginação e fantasia, que nunca respeitaram limites, fronteiras ou acidentes geográficos. As árvores eram os meus navios. Eu era tudo: grumete, marinheiro, pirata, imediato, capitão e armador - enfim, o criador, o dono absoluto, pois, não raro, em batalhas memoráveis, eu costumava pôr todos os meus navios a pique. Desses meus barcos, um eucalipto enorme eu transformei em pinheiro (araucária) e contei sua história (mais ou menos real) no conto "O naufrágio do Black Ship", publicado em "Este Mar Catarina", antologia de autores catarinenses.
Hoje eu moro literalmente a dois passos do mar, meus filhos são mergulhadores profissionais, escrevei contos e romances marinhistas, mas ainda sinto uma baita saudade do meu mar de outrora, o oceano de mentirinha da minha infância.
Meus avós paternos, os Sassi, eram italianos, agricultores e analfabetos. Foi pequena minha convivência com eles. Lembro que Nonno Velho fumava cachimbo enorme e fedorento, cujo sarro ele costumava receitar para dores de dente e de ouvido!!! Clemente Sassi ignorava o dia, o mês e até mesmo o ano do seu nascimento; sabia apenas que nascera na época do plantio de milho... na Itália. Ah! Ele também não sabia dizer o nome da aldeia onde se dera o nascimento.
Apesar da paralisia infantil (poliomielite) que me atacou aos dois anos de idade, e da pobreza relativa, minha infância foi muito feliz. Superei as restrições impostas pela doença e consegui dançar (danço até o rock e a lambada - é só haver ocasião, inspiração e provocação), praticar esportes e espantar os fantasmas do complexo de inferioridade.
Hoje, vistos à distância, e analisados friamente, chego à conclusão de que meu pai e minha mãe foram as pessoas mais maravilhosas do mundo. Minha mãe, principalmente, devia ter algum parentesco com as fadas: ela transformava tecidos feios e sem graça em roupas lindas; em suas mãos e com o seu tempero o alimento mais trivial logo virava comida saborosa ou delicioso doce.
Quase todas as consoantes da língua alemã foram usadas no sobrenome do meu avô materno: Clemente Hamitzsch. Náo o conheci. Ele sempre me pareceu uma pessoa misteriosa, figura de ficção de romance. Pelo que me contaram, dele herdei o gënio violento e o gosto de admirar as artes plásticas. Meu avô alemão era escultor, mais propriamente um imaginário. Tempos atrás, andei procurando em Lages as suas esculturas. Encontrei um São José feito por encomenda e alguns trabalhos de cantaria no cemitério da cidade. Clemente Hamitzsch morreu no início do século - dizem que se matou. Faço dele a imagem de um aventureiro, uma espécie de cavaleiro andante beberrão e fora do seu ambiente e do seu tempo.
-Lembra de algum episódio gostoso ou dramático do primeiro período de sua vida?
Guido Wilmar Sassi - Aconteceu na minha infância um fato muito importante que iria decidir minhas leituras futuras e influenciar minha vocação literária. Encontrei o objeto dessa influência na mesa de leitura de minha avó: um velho dicionário. O livro, de tão velho, já estava sem capas e sem as páginas iniciais e finais. Fui buscá-lo agora mesmo na minha estante para confirmar. Meu Deus, como ele é velho! - somente comigo já está há mais de setenta anos. Meu dicionário começa na página 17 e não tem as letras "w", "x", "y" e "z", cabendo registrar, ainda, que a letra "v" está incompleta. Creio que esse dicionário foi minha primeira leitura. Nunca soube quem foi o seu autor, e agora não quero mais ficar sabendo: é um mistério gostoso ignorar quem elaborou um livro que me ensinou tanto.
Existem várias histórias envolvendo o meu velho dicionário. Vou contar uma. No curso primário, quando minhas aulas eram a tarde, emprestei o dicionário a um amigo que freqüentava o mesmo curso, porém na parte da manhã. Passaram-se alguns meses e eu cheguei a esquecer o amigo, o empréstimo e também o dicionário. Certa vez, quando coloquei meus pertences escolares na carteira, lá encontrei o meu querido livro - o amigo descuidado ali o esquecera. Não pensei duas vezes: levei o dicionário para casa e solicitei ao amigo a sua devolução. Que drama! Até Santo Antonio foi convocado para reencontrar o livro. A mãe do rapaz levou o caso ao conhecimento de uma velha que deitava as cartas, via a sorte das pessoas e descobria o paradeiro das coisas. Tudo inútil. Então, para saldar a dívida, meu amigo pagou-me o preço de um livro novo: cinco mil réis. Uma boa quantia, na moeda da época. Foi a primeira vez que ganhei alguma coisa com os livros. Se eu me envergonho da safadeza? Não, absolutamente não.
- Qual o tipo de educação recebida?
- Guido Wilmar Sassi - Cursei o primário e parte do ginásio, enquanto meu pai era vivo. Deixei os estudos, sem concluir a quarta série ginasial. Tornei-me autodidata.
-Qual a "biblioteca", as leituras de seus verdes anos?
- Guido Wilmar Sassi - Minha primeira leitura foi, sem dúvida, o velho dicionário de minha avó. Ele despertou meu gosto pela literatura e mito contribuiu para o nascimento de minha vocação de escritor. Somente depois de muitas viagens através do maravilhoso léxico foid que descobri os livros infantis, os policiais, os romances de aventuras e de ficção científica.
Quando recordo minhas primeiras leituras, não posso deixar de mencionar a grande biblioteca oral que se chamava
Gertrudes Hamitzsch, minha avó. Eu era ainda bem criança quando ela me apresentou a um certo Shakespeare - isso muitos anos antes que eu aprendesse a ler. Naquele tempo havia umas litogravuras que reproduziam cenas das peças mais famosas do célebre dramaturgo inglês. Vó jamais entendeu direito o que o amalucado Hamlet fazia com uma caveira nas mãos. E, como nas litogravuras não havia nenhum texto, nunca nos importamos com o tão conhecido dilema "to be or not to be". D. Gertrudes se emocionava sempre que se referia aos trágicos amores de Romeu e Julieta, mas eram as estampas de Otelo que a apaixonavam mais. No conceito de vovó o Doge de Veneza era apenas o "coitado do pai"; Desdêmona se transformava em "a pobre da moça"; e ao mouro Otelo minha avó reservava uma apreciação nada elogiosa: "não passa de um caco sujo". Vovó er ameio racista. Com o tempo, descobri que o velho William Shakespeare dera apenas o chute inicial; a mais das histórias, na maioria das vezes, era tudo invenção de minha avó.
Quando eu tinha mais ou menos doze anos, mudamo-nos para uma casa na qual havia um sótão enorme. Ah, o sótão da minha infância! Era o país dos mistérios, dos milagres, das coisas fabulosas, dos segredos apaixonantes, da fantasia e do encantamento. No sótão o antigo dono da casa deixara um caixoto cheio de livros. Pirata algum jamais se apossara de butim maior - nem tão precioso. Um dos livros, sem as capas e sem as primeiras e derradeiras páginas, tratava das andanças de um povo errante e brigalhão, que morria e matava por causa de um Deus Único, e cujos herós estraçalhavam leões, dizimavam exércitos, decapitavam gigantes, faziam parar o sol, abriam caminho nas águas dos mares e atormentavam e venciam o poderoso Pharaó, rei de um país de nome Egypto. Esse livro fazia menção a um verbo de poderes mágicos: homens lutavam por causa desse verbo, crianças nasciam pelos seus efeitos. Na época eu descobri o significado do termo conhecer, mas somente alguns anos mais tarde fiquei sabendo que estivera lendo a Bíblia.
Mais tesouros havia no caixote: gramáticas de línguas estrangeiras (alemão, inglês e francês), compêndios de Física e Química, de História Natural e História Universal, manuais de Medicina. Tudo isso eu li, ao mesmo tempo em que fazia outras descobertas: Monteiro Lobato, nosso grande autor de livros para crianças, Robert Louis Stevenson (O Médico e o Monstro, A Ilha do Tesouro. Ah, maravilha! Eu fui Jim Hawkins uma centena de vezes), Sherlock Homes, Eça de Queiroz, Alexandre Herculano, Cervantes, Emílio Salgari, Tarzan, Júlio Verne e o universo encantando da ficção científica.
Daí, quando o conteúdo do caixote acabou, eu passei a vender garrafas e vidros para comprar livros. Os vidros tinham que ser lavados primeiro; era ssim: a gente pegava os vidros, enchia-os com água, sabão e grãos de milho ou bolinhas de chumbo, e chacoalhava até cansar o braço. Então a farmácia de Campos Novos comprava os vidros para enchê-los com remédios.
Eu levava uma eternidade inteira lavando os vidros e farrafas para juntar o necessário a compra de dois ou três livros; de depois, eu tinha que esperar mais toda uma eternidade até que os volumes chegassem a cidadezinha. Mas era compensador - eu conquistava séculos, milênios de entretenimento e cultura.
- Repassando na memória esse período de formação, encontra a figura de um "mestre" de vida que o marcou?
- Guido Wilmar Sassi - Mamãe e vovó foram as minhas verdadeiras mestras, na vida e na literatura. Meu pai, o velho Chico, ensinou-me a ser homem, a ser gente.
Houve também um irmão franciscano, Frei Sebastião da Silva Neiva, cujas lições foram de grande proveito para a minha formação literária. O querido e saudoso Teacher (ele era professor de português e de inglês) dirigia em Lages um pequeno semanário; foi ele quem publicou meus primeiros escritos.
- Como, quando e por que começou a escrever? Como nasceu a vocação de escritor?
- Guido Wilmar Sassi - Minha vocação de escritor deve ter sido herança de minhas duas mestras: Mamãe e vovó. O ambiente em que passei a minha infância e a juventude, apesar de todos os percalços e limitações, era notadamente literário. Depois de algumas gerações de escritores frustrados, sem livros, a minha geração teria que, forçosamente, dar um escritor.
Não sei exatamente quando comecei a escrever. Deve ter sido quando comecei a ler pelo prazer da leitura e, assim, creio que as minhas primeiras experiências literárias se iniciaram aos doze anos de idade.
Eu sempre quis ser ficcionista: contos, novelas e romances. Outros gêneros não me tentaram. Queira ou não queira, tenho que voltar o meu velho dicionário, tenho que responsabilizá-lo, em grande parte, pelo nascimento da minha vocação. Toda a vida eu considerei o dicionário um livro de viagens, de aventuras, e o meu primeiro dicionário, sem capas, sem título e sem autor, foi o meu primeiro barco no mar das palavras. Hoje, quando sou verbete de dicionários e trechos dos meus livros são citados para abonar vocábulos (Aurélio - Novo Dicionário da Língua Portuguesa), ainda consulto o meu amado léxico. Abro suas páginas (são as velas de um navio amigo, seu porão está repleto de lembranças, de saudades) e viajo nele... e com ele.
É antiqüíssima a ortografia do meu dicionário. Não sei mais quantas reformas ortográficas o português do Brasil sofreu depois que me tornei seu dono. Farmácia, fósforo e tísica estão grafadas assim: pharmamcia, phosphoro e phtisica. Uma delícia.
Volto sempre ao dicionário e também volto à Bíblia despedaçada que encontrei no sótão, a velha Bíblia cuja ortografia é a mesma do dicionário; foi nela que pela primeira vez deparei com os vocábulos "amphora" e "drachma". Ânfora e dracma, conforme se escreve atualmente, não possuem o mesmo encanto, a mesma dose de mistério.
Ah, o mistério e a beleza das palavras na sua forma física, visual. Sempre fui apaixonado pelos vocábulos em si, no seu aspecto gráfico. E depois, mais apaixonado e fascinado ainda, gosto de sair, feito um detetive, à cata de seu significado. Com o auxílio de um dicionário, é claro.
A matéria prima de qualquer gênero literário é a palavra. Grande descoberta! Dicionários são depósitos de palavras. E assim, apaixonado pelos dicionários como sempre fui, e amando tanto os dicionários, eu teria que - por bem e por mal - tornar-me um escritor, mais especialmene um ficcionista.
- Considera seu primeiro livro publicado um sucesso, um insucesso, um marco determinante em sua vida?
- Guido Wilmar Sassi - Estreei em 1953, com um livro intitulado PIÁ, coletânea de contos que têm a criança (em todas as camadas sociais) como figura principal.
Foi um grande sucesso, consideradas as circunstâncias. O livro, escrito nas então pacatas cidades de Lages e Rio do Sul, interior de Santa Catarina, foi publicado em Florianópolis, capital do Estado. Edição de quinhentos exemplares. Isso mesmo: quinhentos exemplares! Distribição não houve. Eu e alguns familiares nos encarregamos de vender ou dar alguns volumes. Regular número de exemplares foi vendido em Florianópolis na Livraria Anita Garibaldi, então de propriedade do meu amigo e editor Salim Miguel, que mais tarde, em 1964, foi criminosamente incendiada. A vendagem foi suficiente para custear as despesas da edição. Um verdadeiro sucesso.
Com a publicação do meu primeiro livro quase ganhei um prêmio, o Fábio Prado, naquele tempo um dos mais importantes certames literários do país.
Graças ao volumezinho fio, de capa modesta e folhas grampeadas, consegui intercâmbio cultural com muitos escritores e publicações nacionais e estrangeiros, e tornei-me conhecido em todo o Brasil e no exterior. A estréia me proporcionou uma visão nova das coisas editoriais, da literatura e da vida.
A estréia foi um marco determinante em minha vida, pois veio confirmar minha vocação de escritor.
Um detalhe: PIÁ jamais foi reeditado, e lá se vão quase quarenta anos. Meu livro de estréia continua desconhecido até mesmo (e principalmente!) em minha cidade natal.
- Acontecimentos que o marcaram determinantemente, a nível literário:
- Guido Wilmar Sassi - 1949 - Publico um conto na Revista do Globo, uma das mais importantes do país. Contato com o Grupo Sul, de Florianópolis - é o início de minha carreira literária.
1953 - Sucesso: publico meu primeiro livro, uma coletânea de contos - PIÁ.
1957 - Grande sucesso: publico meu segundo livro de contos, AMIGO VELHO, coletânea que tem como personagem principal o pinheiro (araucária). O livro é comentado, louvado, elogiado, criticado, atacado e ripado. Ganho um prêmio instituído pelo Instituto Nacional do Livro. A edição, porém, não se paga.
1960 - Termino de escrever meu primeiro romance, SÃO MIGUEL, destinado a concorrer a um concurso literário em São Paulo. Minha filhla de doze anos morre afogada no rio Uruguai - cenário do romance. Morre o amiguinho que tentou salvá-la. Quase morro também, na tentativa de socorrer as duas crianças. Um dos seus irmãos consegue salvar-me, praticamente por acaso. Tenho a impressão de que o mundo vai acabar de vez. Suicida-se o meu melhor amigo. É o fim: o mundo vai acabar mesmo.
1962 - Transfiro-me para São Paulo. SÃO MIGUEL é publicado, após vencer o concurso. Vida literária intensa. Mudamos para o Rio.
1964 - Publico novo romance - GERAÇÃO DO DESERTO e uma coletânea de contos de ficção científica: TESTEMUNHA DO TEMPO. Golpe militar: a ditadura está de volta. Muitos amigos meus, escsritores ou não, foram presos. Abandono a literatura. Não quero mais saber de livros nem de escritores. A crise iria durar dezesseis anos.
1979 - Proposta para a reedição de São Miguel. Recuso. Editores, autores e leitores que se pitem! Dois escritores amigos meus, Salim Miguel e Hélio Pólvora, deram-me dois homéricos porres para que eu concordasse na reedição. Assinei o contrato ainda meio bêbado.
1980 - Reconciliação com as letras. Escrevo um romance cuja ação de passa nas plataformas petrolíferas; os heróis são os mergulhadores profissionais. Fico entre os dez finalistas do Prêmio Cruz e Sousa, certame realizado em Florianópolis. Publico o romance O CALENDÁRIO DA ETERNIDADE.
1989 - Escrevo um romance em três meses e o publico: OS 7 MISTÉRIOS DA CASA QUEIMADA. Vencido o problema de ter perdido um olho - em desastre de automóvel, em 84 - tenho um namoro muito sério com a informática, com os microcomputadores.
2004 - Alguns dos acontecimentos marcantes da minha vida, pelo menos os ligados à literatura, são os que acabei de citar. Espero que nenhum evento de importância ocorra até o ano de 2004. O motivo? É o ano que escolhi para morrer. Vai ser de morte natural e na cama, durante o sono, depois que eu completar oitenta e dois anos de idade; será na segunda metade de setembro, em plena primavera.
Nota: Guido faleceu em 05 de maio de 2002.
- Hoje é um escritor. Pode viver só do trabalho da escrita? Precisa de outra profissão? Qual é? Como vive as duas carreiras?
- Guido Wilmar Sassi - São raros no Brasil os escritores que vivem exclusivamente da escrita. Na atualidade está surgindo uma categoria que vem conseguindo esse milagre: os autores de telenovelas. Ainda não tive nenhuma tentação de experimentar o gênero. Dizem que é um trabalho pesado, de estivador, de galé, de escravo.
Quando eu comecei a dedicar-me às letras, eu era funcionário do público e conseguia conciliar as duas carreiras. No Banco do Brasil tornou-se difícil a conciliação. Minha preocupação maior foi sempre evitar que o banco me chamasse para exercer cargos de grande responsabilidade, que me nomeasse gerente ou coisa parecida. Se isso acontecesse, adeus literatura. Hoje, aposentado, eu poderia dedicar-me inteiramente à literatura, pois disponho de todo o tempo do mundo, de todo o tempo da vida: faltam-me, porém, disposição e saúde.
- O processo criativo de seus livros passa por muitas fases de elaboração? Pode dizer como escreveu um de seus livros ou um de seus contos? Como surge, como se origina um livro ou um texto?
-Guido Wilmar Sassi - Não creio muito em inspiração. O processo criativo é uma tarefa árdua, penosa. E solitária, angustiosamente solitária. A inspiração vem num instante muito fugaz, feito um relâmpago, e imediatamente vai-se embora, some, porém mais rápida do que o próprio relâmpago. E em cima do pouco-nada que fica o escritor põe-se a escrever seu texto, a reescrever, a elaborar, elaborar e elaborar, a fazer cortes e acréscimos, emendas e podas, até que os personagens ganhem vida, até que o texto fique limpo, até que se ultime o trabalho de recriação.
Muitas vezes tenho tentado surpreender a criação em seu nascimento, em sua própria fecundação. É difícil, muito difícil. No meu caso, as idéias ou embriões chegam das maneiras mais inesperadas e das mais diversas formas. Por exemplo:
a) - um gesto, uma frase, uma observação dos amigos ou parentes, o jeito de alguém rir, os cacoetes, as manias, o modo de falar - a gente pega tudo isso e aproveita para compor os personagens;
b) - uma conversa entre desconhecidos, ouvida quase sem querer;
c) - um sonho;
d) - um desafio;
e) - uma preocupação, um trauma;
f) - a tentativa de exorcizar nossos fantasmas - obrigado, mestre Dostoievski;
g) - a visão fugidia de um seio (dois é melhor); nádegas, pernas coxas: os acessórios todos do sexo feminino;
h) - um trecho de filme, uma peça de teatro;
i) - um conto, um romance ou novela; (o escritor pensa: a idéia é boa, mas eu faria diferente e talvez melhor; e começa, pois, a inversão papéis - bandido vira herói, mocinho se torna bandido, criminoso e vítima permutam os lugares, mulher vira homem, etc, etc.);
j) - um quadro, um verso, uma flor, uma canção, um espetáculo de circo.
Reminiscências, lembranças, vultos que se foram, cenas de um passado próximo ou longínquo, arquivos da memória, poeira das alegrias e das dores... ah, tanta coisa! Sobras de sentimentos, de ações e reações; resquícios, lixo, sucata - tudo o ficcionista aproveita, fazendo misturas das mais heterogêneas com os cacos do cotidiano, as vivências atual e antiga, as antevisões nebulosas do futuro.
O escritor - eu acho - tem muito ou quase tudo em comum com Frankenstein. De pedaços, pedaços e pedaços construímos as nossas criaturas. Não é plágio, não. Também não é influência. É algo de muito mais sério. Costuramos retalhos, remendamos, reinventamos invenções. Mas ninguém cria nada, ninguém cria coisa alguma; recriamos, apenas.
Ás vezes a centelha da inspiração é uma paisagem, a saudade de um lugar onde eu nunca estive e que talvez nem sequer exista. Disseram-me que o espiritismo explica essa lembrança, esse tipo de saudade. Tudo bem, mas eu não acredito no espiritismo. Comentaram que a tal saudade vem de paisagens que eu criei no subconsciente, no inconsciente, sei lá onde. Produtos do id, essas coisas. E a gora... Freud! Freud talvez explique... ou complique. O fazer literário tem muito a ver com psicanálise, mas não vamos cair no exagero. A humanidade passou milênios e milênios sem Freud, e agora não pode ficar cinco minutos sem ele. Além do mais, o Professor Freud entrou no texto de gaiato e à minha revelia. Vamos expulsá-lo. Cai, fora! Xô, xô!
De posse dos elementos essenciais, chega a vez da imaginação e da fantasia, da linguagem e do estilo. E também a vez da estiva, do suor, do cansaço, do trabalho bruto, pois o amontoado de material amorfo de que disponho não cria vida assim de repente, graças ao efeito de uma fórmula cabalística ou de uma palavra magia. O maravilhoso e divino fiat!
Deu certo com o Criador, no Gênesis, mas somente Ele sabia a receita. Na literatura não tem abracadabra! que funcione.
Difícil dizer como escrevi um dos meus livros ou contos, difícil individualizar. Prefiro falar do método geral que uso, válido para os gêneros conto, novela e romance.
Uma vez surgida a idéia central e feitas as pesquisas indispensáveis, organizo um fichário, um arquivo o mais completo possível, para ser consultado a todo instante.
Os personagens são cadastrados como se fosse no Registro Civil (nome, prenome, sobrenome, filiação, idade, etc.), mas o meu cadastro é bem mais completo, pois inclui ainda: cor da pele, dos olhos e dos cabelos; peso e altura; profissão e alcunha; tiques e manias; doenças e defeitos físicos ou morais; virtudes e qualidades; vícios ou taras; modos de agir ou de pensar; preferências, ojerizas e idiossincrasias; gostos e desgostos; enfim, tudo quanto possa interessar à história que pretendo escrever.
Também constam do cadastro as mais variadas relações de dependência entre os personagens: pai, mãe, tio, avô, irmão, compadre, afilhada, marido ou amante, namorada ou noiva, amigo, patrão, assassino, etc, etc e etc.
Presentes essas anotações, evita-se que os personagens cometam incestos não programados e que, por uma simples troca de nomes, datas, hábitos ou aparência física, o amante seja passado para trás pelo próprio marido da heroína.
O fichário diminui muito o número de incoerências e improbidades. Devido a sua falta ou as suas falhas já me aconteceram alguns fatos desagradáveis na produção de um romance: havia três mulheres com nomes diferentes, quando se tratava de uma só; um maneta foi surpreendido batendo palmas; mudos se tornaram mais falantes do que oradores em comício.
Costumo organizar tábuas cronológicas, a fim de fiscalizar a idade dos personagens e a ordem de sua entrada em cena. Tal providência evita que um fulano qualquer, morto e sepultado logo nos primeiros capítulos, apareça vivinho da silva, forte e feliz na metade do livro; e também não permite que uma pessoa seja pai de alguém com o dobro da sua idade. A consulta ao fichário e à tabela do tempo torna mais fácil e seguro o uso da técnica do flashback.
Costumo, se necessário, elaborar mapas, quadros, croquis, tabelas, esquemas, resumos e plantas. Em meu romance mais recente, OS 7 MISTÉRIOS DA CASA QUEIMADA, as edificações eram tantas e de tamanho tal que até eu mesmo, quando nelas entrava, me sentia desorientado. Não sei o que seria dos homens e mulheres que figuram no livro, se não dispusessem dos mapas e plantas que lhes arranjei! Um detalhe: a capa do livro teve por base a planta do Reduto, o conjunto das sete construções em que acontecem os mistérios.
A memória é um instrumento nobre que deve ocupar-se apenas de assuntos importantes e não sobrecarregar-se com questiúnculas de pequeno porte - esta a função do fichário.
Nem eu mesmo consigo entender a primeira versão dos meus contos ou romances. Vou escrevendo a torto e a direito (mais a torto do que a direito), sem a menor preocupação com a gramática e a estética, sem ligar a mínima para a ortografia e a coerência.
Do início de um capítulo salto para o final, escrevo pedaços no meio, retorno ao início. Se as dificuldades surgem em algum trecho, pulo para os seguintes, apronto diálogos, volto às pesquisas, tomo novas anotações ou desfaço-me de outras, aponto lápis, espano a mesa e a máquina, tomo um cafezinho, profiro uns palavrões, xingo o povo do livro, releio as páginas já escritas. No regresso aos pontos difíceis, descubro que eles são mais fáceis de solucionar do que eu imaginava.
Sou um cineasta que não se realizou, um cineasta sem filme e sem câmera. Quando escrevo (principalmente no caso do romance), parece-me que estou fazendo cinema. Como se estivesse usando a claquete, numero e classifico as tomadas: folhas esparsas, capítulos ou porções de capítulos, anotações, resumos, lembretes e observações. E depois, com o auxílio do cadastro, dos mapas e tabelas, ponho-me a editar o que chamo de copião. Nesse momento, começo a preocupar-me com a limpeza do texto, a escoimar os senões, a trabalhar a linguagem. É o preparo inicial para o trabalho datilográfico da segunda versão.
A segunda versão já é legível, tem alguma semelhança com os originais de um livro. Não cessam, porém, as reformas, as emendas, os cortes, os acréscimos, as constantes e cansativas consultas ao dicionário.
Gosto de datilografar meus livros. Sou um ótimo datilógrafo. Tenho muita paciência e sou difícil de satisfazer. Exijo de mim mesmo um trabalho ordenado, metódico, limpo e de boa apresentação estética.
E agora, aqui estou eu datilografando a terceira versão do romance, e uma vez mais efetuando podas, modificações e correções, e de novo consultando mapas, arquivos e dicionários.
Geralmente a quarta versão é a definitiva, a que se destina a agradar (ou não) o meu primeiro leitor, o mais exigente de todos os meus leitores: eu mesmo.
- Qual é a sua relação com a escrita, com a palavra, com o estilo?
- Guido Wilmar Sassi - Não sei se entendi direito a pergunta. Em todo o caso, vamos às respostas. No que se refere à palavra, penso já ter esgotado o assunto nas respostas anteriores. Eu amo a palavra, mais especialmente a palavra escrita. Minha relação com a palavra é uma relação de amor, de entrega e posse, de sedução, de fascínio, de adoração. Foi por muito amor às palavras - e pesquisá-las muito - que me tornei escritor.
Quanto ao estilo, já abordei o assunto anteriormente: Foi por intermédio de muita leitura, mediante muitas viagens realizadas pelos estilos alheios que conquistei o meu próprio estilo. Todo o mundo faz assim, não é mesmo?
Alguém já disse que o estilo é o homem. Foi Buffon, se não me engano. Também disseram que todo escritor deve ter estilo e nariz próprios, e salientaram a semelhança entre ambos. Fui buscar um espelho e comparar esta página com o meu apêndice nasal. Pois não é que é verdade mesmo? Meu estilo é de fato igual ao meu nariz - escritinho.
- Por que escreve?
- Guido Wilmar Sassi - Por que escrevo?Sei lá! Por burrice e teimosia, talvez. Afinal, existem muitas outras coisas melhores e gratificantes para se fazer neste mundo. Por que escrevo? Já me fiz essa pergunta vezes sem conta, e jamais encontrei respostas satisfatória. O principal motivo, eu acho, foi o desejo muito humano de sair do anonimato, de projetar-me acima da média, de "ser alguém na vida" . E daí, ao descobrir que não sabia jogar futebol, nem cantar ou representar, nem compor música ou pintar quadros; e que tampouco possuía vocação para a indústria ou o comércio, e nem para assaltar banco: e que também não tinha a safadeza dos políticos, nem talento de inventor; e nem mesmo a coragem de traficante, bicheiro ou ladrão - resolvi dedicar-me à literatura. Para poder sobressair, aparecer, escolhi as letras; para ganhar a vida, porém, tive que ser balconista, padeiro, comerciante, funcionário público e bancário.
Consegui meu lugar ao sol? É... consegui. Mas esse lugar tem sombra pra caramba! Apesr de tudo, apesar da penumbra, mesmo apesar das trevas... acendo a luz e continuo escrevendo.
Amigos falaram-me do prazer da escrita, do prazer de escrever. Será que esse prazer existe mesmo? Muitos escritores consideram a literatura uma arte, um esporte. Não posso fazer o mesmo, pois se não tomar cuidado, se não tomar as minhas precauções, meu esporte se tornará deficitário.
Há escritores que pretendem ganhar dinheiro com a profissão de escritor. Bem poucos o conseguem. Affonso Romano de Sant´Anna, poeta e cronista, acaba de confessar: "se dependesse da renda dos meus livros (e já publiquei várias dezenas), não poderia pagar nem a empregada e a faxineira." Romano transcreve um desalentador diálogo (- O que faz você na vida? / - Sou escritor. / - Ah, ótimo! Maravilha! Mas de que vive?) e, com uma pergunta melancólica, termina a crônica: "Afinal, de que vive e como vive o escritor brasileiro?"
Não fossem alguns prêmios em dinheiro, de concursos vencidos, eu poderia dizer que não ganhei praticamente nada com a literatura. O produto dos direitos autorais sai em conta-gotas do bolso do escritor. Quando sai. A culpa é do sistema, eu si. Mas os escritores, a maioria, são os maiores culpados, pois sentem-se pagos e satisfeitos apenas com a publicação do livro. Mas a publicação não é tudo. Há que se dignificar a profissão de escritor. Afinal de contas, a criação literária não cai do céu por descuido, o trabalho de escrever é tão digno quanto outro qualquer.
Por que escrevo? Não sei. Tempos atrás, em uma entrevista, um dos colegas escritores respondeu: Escrever é compulsão. Todos aplaudiram - resposta genial. Ao chegar a minha vez vaiaram-me, humilharam-me quando eu disse: Escrever é praga de mãe.
- Em seu específico trabalho criador prevalece a interrupção ou a continuidade? Há crises? Com que as identifica?
- Guido Wilmar Sassi - Em meu trabalho de escritor intercalam-se períodos de intensa continuidade e períodos de interrupção - também intensa. Em 1954 veio-me a idéia central de um romance. Um tema e tanto. Não o trabalhei, contudo. Doze anos depois, quando morava em São Paulo, iniciei a escrita, abandonada, porém, logo a seguir. Passaram-se o anos. Em 1988, retornei ao livro interrompido, disposto a terminá-lo. Mas adoeci de outro romance e de novo abandonei o projeto. Certamente irei retoma-lo algum dia, se outra crise não motivar nova interrupção.
Por sua vez, ocorrem períodos de vertiginosa continuidade. Escrevi o romance OS 7 MISTÉRIOS DA CASA QUEIMADA em três meses e SÃO MIGUEL , também romance, em cinqüenta e um dias.
O romance, pelas suas dimensões e características, exige que sejamos escritor vinte e quatro horas diárias, não raro quarenta e oito ou mais. Exigência enorme, pois sentimos necessidade também de sermos apenas gente, meros homens (com todo o bem o todo o mal), simples seres humanos e nada mais.
Com os meus contos o mesmo acontece: uns são escritos a jato; outros se arrastam, se arrastam e se arrastam, quase eternamente.
Lutei contra muitas crises, da mais variada importância, duração e ordem. As crises afetivas, quando agente se julga só no mundo, são difíceis de vencer. As piores de todas são as crises político-financeiras, pois elas concorrem para o agravamento de todas as outras. Em 1964, data do último golpe militar no país, quando o trabalho e a liberdade passaram a ser considerados mais insignificantes do que as latas de lixo, eu resolvi deixar de escrever e de fumar. Foi a maior crise que enfrentei: durou quase dezesseis anos. Enquanto ela durou eu não quis saber de escritores ou leitores, nem de livros, idéias ou personagens, nem de nada que se ligasse à arte e à literatura. Essa crise teve seu lado bom: abandonei por completo o cigarro e o meu sono era fácil, profundo e gostoso.
Costumamos justificar as crises atribuindo-as à falta de condições, de tempo, de tranqüilidade, de saúde, etc. Geralmente é apenas falta de coragem.
- Há momentos felizes ou ideais para escrever?
- Guido Wilmar Sassi - Há, sim. É nos momentos em que se consegue uma espécie de estado de graça, uma beatitude ativa e produtiva. Sou capaz de escrever de qualquer jeito (sentado, deitado, caminhando, ou a bordo de toda sorte de veículos), com e em qualquer objeto ou instrumento (lápis, esferográfica, papel, cartolina, papelão, taquigrafia, máquina de escrever, gravador, microcomputador, etc.), e a qualquer hora e em qualquer lugar. Sinto, no entanto, a necessidade de uma certa paz, de um pouco de tranqüilidade e conforto para obter o estado de espírito ideal para a criação.
Não gosto da solidão. Temo e detesto a solidão. E o trabalho do escritor é solitário, horrorosamente solitário. Quando escrevo, quando encontro o momento ideal, preciso de uma presença humana, de alguém que veinha interromper-me de quando em quando, a fim de provar que eu não estou só. Se não há ninguém de carne e osso por perto (pode ser um animal: peixes ornamentais, por exemplo, constituem presença alegre e fazem barulho silencioso), costumo cantarolar e ligo todos os aparelhos de som existentes em casa. Tudo para afugentar a solidão. Não sei se consigo explicar direito: gosto de um silêncio meio barulhento, de paz e ordem um tanto bagunçadas. O Bolero de Ravel costuma proporcionar-me momentos muito felizes e produtivos. Mas também sou capaz de escrever ao som de uma batucada ou de um rock-pauleira.
- Quando escreve é a vontade que puxa a escrita ou é a neurose, o prazer da inteligência e da fantasia?
- Guido Wilmar Sassi - Escrever é um trabalho como qualquer outro. Penoso e solitário. Mesmo assim, e mesmo dizendo que não acredito na inspiração, procuro conseguir que o prazer da inteligência e da fantasia puxem a escrita. Do contrário, se deixo que a vontade se sobreponha, parece-me que estou enfrentando uma espécie de violentação. E essa violentação costuma impor-se cada vez que escrevo.
- Onde encontra estímulo e pretextos para escrever? Poderia exemplificar concretamente com os seus escritos?
- Guido Wilmar Sassi - Já esgotei praticamente o assunto. Estímulo valioso tem partido dos meus parentes mais chegados: esposa, filhos, mãe, vó Gertrudes. Minha mulher foi colaboradora importante quando da escrita dos meus primeiros contos e romances. Meus filhos também têm sido colaboradores ativos, e muito vêm estimulando minha carreira de escritor. O estímulo maior, porém, bem assim os pretextos, vieram da parte de Vovó e Mamãe, pelo muito que me ensinaram e pelos causos inesquecíveis que me contaram.
- Escreve regularmente ou é possuído por raptus improviso?
- Guido Wilmar Sassi - Só escrevi regularmente quando morava em Lages SC, e mantive uma crônica diária na rádio local. Ah, e pagavam-me relativamente bem. Mas o que é bom dura pouco: minha temporada radiofônica foi bem rápida, quase meteórica.
Sempre detestei horários: bastaram-me os que fui obrigado a cumprir nos empregos por mim exercidos.
- Qual é o papel que o "imprevisto" desempenha em seu trabalho criador?
- Guido Wilmar Sassi - Muitas vezes o imprevisto domina por completo o trabalho de criação. Algumas espécies de imprevistos: personagem feminino vira homem, herói se transforma em vilão, nascimentos ocorrem em vez das mortes, a inocente vítima em potencial acaba se tornando um assassino desalmado.
Há personagens que fogem totalmente ao controle do autor e adquirem gostos, hábitos e manias que nos obrigam a trabalheiras danadas. Uma vez, estava eu escrevendo um conto policial para uma revista especializada, quando o imprevisto entrou em ação e não deu outra: a pessoa que estava para ser assassinada transformou-se no mais frio dos criminosos.
Em outra circunstância, eu estava trabalhando em um romance que se passava no rio Uruguai e que se intitularia Balsa ou talvez A Grande Viagem, pois descreveria uma jornada rio abaixo. O cenário de um dos capítulos era o cemitério do vilarejo de nome São Miguel, onde jaziam sepultados muitos personagens de Balsa. Foi daí, no dia 29 de setembro de 58, dia de São Miguel, padroeiro do vilarejo, minha esposa fez uma observação relativa à data. O estímulo para a criação literária funcionou e o imprevisto surgiu. Então, resolvi fazer um romance passado antes, no tempo em que o pessoal do cemitério ainda vivia. Eu já dispunha inclusive do título: SÃO MIGUEL. Escrevi o livro a jato e ganhei um prêmio com ele. Ignoro se Balsa virá a ser escrito algum dia.
Já me aconteceu de ter tudo planejado para um determinado livro: fichário, pesquisas, resumos, relação de personagens, etc. E daí, por causa de um imprevisto, eu deixo tudo de lado e escrevo outro livro.
- Existe, analogamente ao ' prazer do texto ' um prazer de escrever?
- Guido Wilmar Sassi - Existe, realmente, um certo prazer no exercício da literatura. Não sei descrevê-lo, não sei classificá-lo. Parece-me que o gozo do fazer literário tem muito de masoquismo, ou melhor, de sado-masoquismo. Um ato sexual em que a posse e a entrega se completassem intimamente, em que o criador se tornasse uma espécie de andrógino. No sentido figurado, é claro. Ora, ora..
No princípio, quando estamos em lua-de-mel com a literatura, escrever é simplesmente maravilhoso. Com o passar do tempo, o ato que deveria ser de amor se torna obrigação, e as coisas mudam muito e muito se transformam. E daí, a criação literária passa a exigir muito vigor físico e mental; passa-se a requisitar uma ereção enorme, e por vezes difícil, para um orgasmo fugaz e quase insignificante.
Costumo comparar o trabalho de escrever com trabalho da gestação, mormente quando se trata do romance. É que, tendo-se em vista as dimensões deste gênero (maior número de páginas, de personagens, de cenários, de ações, etc), os nove meses de escrita e criação se prolongam muito mais. Publicação e parto se assemelham - ambos possuem o seu lado feliz e gratificante, mas ambos também são dolorosos e trabalhosos.
Em suma, o prazer de fato existe, não importa a sua qualidade e intensidade. Se não me engano, já contei que, a medida em que um trabalho de criação progride, vou destruindo e jogando fora os papéis com a s anotações, os planos, projetos e rascunhos Atualmente, minha satisfação maior tem sido encher cestas e cestas de papéis rasgados ou amassados.
- Qual o livro de outro escritor que gostaria de ter escrito?
- Guido Wilmar Sassi - Eu gostaria de ter escrito O TEMPO E O VENTO. São perto de 2.250 páginas distribuídas entre as três partes do romance, e que se constituem, elas próprias, três romances praticamente estanques: O CONTINENTE, O RETRATO e O ARQUIPÉLAGO.
Romanção de fôlego, obra de mestre, lições da arte e da técnica de escreve ficção, de romancear. Reli O TEMPO E O VENTO algumas vezes, cinco ou seis, e todas com renovado prazer, fazendo novas descobertas e aprendendo coisas novas. Poucos repararam que o livro começa e termina pelo mesmo grupo de frases: " Era uma noite fria de lua nova. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa Fé, que de tão quieta parecia um cemitério abandonado."
- Como se sente dentro da literatura brasileira hoje?
- Guido Wilmar Sassi - Sinto-me um tanto marginalizado dentro da atual literatura brasileira. Desde minha estréia em 53, passei a ocupar posição de relativo destaque nas letras nacionais. O termo relativo tem aí o sentido de médio, sem falsa modéstia e conforme os meus padrões de julgamento honesto. É preciso respeitar o julgamento do público e da crítica.
- O que pensa da literatura brasileira?
- Guido Wilmar Sassi - Nossa literatura é, sem favor algum, uma grande literatura. Sem xenofobia e mesmo considerando minha preferência pelo romance, gosto mais de reler um mau conto de Machado de Assis (e ele fazia maus contos, por acaso?), ou comprar a coletânea de estréia de um novato qualquer, do que aventurar-me pelos sedutores, primorosos e recentes best-sellers estrangeiros.
Conheço em primeira mão apenas a literatura brasileira; as demais, somente através de traduções. Claro que entre nós existem autores geniais, ótimos, bons, regulares, maus e péssimos.
É chegado o momento de falar um pouco das mulheres que fazem parte da nossa literatura.
Em outros tempos eu dizia: lugar de mulher é na cozinha. Pois elas provaram que sabiam também escrever. E muito bem, por sinal. Por causa das mulheres escritoras, vejo-me obrigado a mencionar a Academia Brasileira de Letras, antigamente limitada a quarenta ilustres desconhecidos do sexo macho. A Academia, um autêntico reduto do machismo, não permitia a entrada de mulheres. Isso mudou. Ainda existem desconhecidos (nem tão ilustres) na Academia, mas o seu número diminuiu sensivelmente. Na atualidade, entre os quarenta varões imortais figuram mulheres como Raquel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon.
Ao falar em autores, quase sempre me refiro aos ficcionistas, mas é claro que uma literatura compreende todos os gêneros.
A literatura dever ser compreendida uma vez que se complete o ciclo autor-editor-leitor. Inadmissível que o mundo das letras se componha apenas de autores, uns escrevendo para o exclusivo gáudio dos outros. Inadmissível a arte pela arte. Sem a parte comercial, tudo o mais não existiria. Igual a outros bens de consumo, o livro precisa de quem o consuma e de quem o venda. Por isso, o ciclo somente se completa com a presença do livreiro; assim: autor-editor-livreiro-leitor. Seria o ideal. E ideal seria se as próprias editoras se encarregassem da distribuição dos seus livros, o que, bem ou mal, era feito em outros tempos. Surgiu, porém, tal e qual um quisto, um câncer do ciclo, um novo personagem: o distribuidor. Inteiramente alheio às letras, encravado entre o editor e o livreiro, é o distribuidor quem leva a parte do leão.
Por sua vez, o editor quase nunca é santinho de auréola e camisolão. Alguns deles, em vez de vender os encalhes a preços baixos, ou distribuí-los entre escolas e bibliotecas, costumam transforma-los em material de embalagem ou papel higiênico.
E o leitor? Pobre leitor brasileiro. Ele se esforça e luta para não submergir no mar de analfabetismo que inunda o país.
Paralelamente a este ciclo havia, nos tempos de outrora, outro elemento ligado ao livro: o crítico literário. Ele desapareceu. Ainda não descobri se faz falta ou não.
- Qual o futuro dessa literatura?
- Guido Wilmar Sassi - O futuro da nossa literatura infelizmente não dos mais promissores. Falta-nos divulgação maior. Quem não anuncia se esconde, afirma com toda a competência o pessoal da mídia. A literatura brasileira vive escondida, desconhecida. Motivo? Falta de distribuição e divulgação maiores, falta de mais propaganda, falta de intercâmbio de mais eficiente circulação no estrangeiro. Provas? Eis uma: nenhum escritor brasileiro foi, até hoje, agraciado com o Prêmio Nobel. E países de literatura menor, no entanto...
Não sei o que ocorre nas outras partes do mundo com referência à ajuda oficial às letras. No Brasil esse auxílio sempre foi mesquinho. Além de ser um país de muitos escritores e poucos leitores, tem sido fraca, muito fraca, a contribuição governamental. E quando falo contribuição, quero dizer dinheiro, mesmo. Sempre tivemos presidentes-poetas ou poetas-presidentes, os quais se esmeram em perpetrar maus versos e realizar péssimos governos. Ah, sim - no governo passado surgiu a Lei Sarney, com o propósito de incentivar letras e artes. Era um quase nada, mas até esse pequeno estímulo foi cortado pelo atual governante, que, diga-se de passagem, parece odiar teatro e cinema, artistas, escritores, livros e povo.
Não sei, não. Do jeito que vamos, corremos o risco de voltar muito logo às cavernas.
- Entre as palavras seguintes, escolha três e diga alguma coisa sobre elas: amor, cidade, poder, povo, solidão, solidariedade, prazer, violência, amizade, noite e silêncio.
- Guido Wilmar Sassi - Solidão é uma das palavras mais horríveis do mundo. Detesto-ª Aliás, no decorrer deste questionário, deixei bem clara minha aversão por esse vocábulo e suas acepções - qualquer delas.
Em pequeno eu sentia muito medo da noite. Durante a noite as coisas ruins acontecem: assassinatos, desastres, incêndios, agravamento de doenças, velórios e mortes. Eu temia que o mundo se acabasse durante a noite.
Ah, os segredos, os mistérios, os temores e horrores da noite! É marcante a presença e a importância da noite em minha literatura. Em um dos meus contos, um casal de miseráveis aguarda que a noite venha. Os dois estão em um local deserto e sem recursos, um verdadeiro fim de mundo. A mulher, já no final da gravidez, teme dar à luz a qualquer momento. O homem, doente, aflito, meio enlouquecido, é prisioneiro de uma árvore na qual subiu e não pôde mais descer. Ambos estão em desespero. E cheios de frio, de fome, de sede e de medo. A palavra noite é citada apenas duas vezes em todo conto, que termina justamente quando ela chega. O título da história não poderia ser outro: Noite.
Com o tempo, eu deixei de temer a noite. Descobri os seus encantos. Hoje eu adoro a noite; ela é ideal para se fazer literatura e se fazer amor. A propósito da palavra amor, acho que nada se pode escrever a seu respeito... apesar de tudo quanto já foi escrito. Amor é para ser vivido e sentido. Em todos os seus aspectos e em todas as suas formas.
- Como conseguiu publicar seu primeiro livro?
- Guido Wilmar Sassi - Enviar originais às editoras e aguardar aprovação pode funcionar muito bem na Europa e nos Estados Unidos. No Brasil não dá certo. O que pode acontecer (e aconteceu com um dos meus romances, SÃO MIGUEL) é uma editora promover concurso e publicar o livro vencedor. Isso quando publica... e quando paga o valor do prêmio.
No caso do meu primeiro livro, PIÁ, coletânea de contos tendo por figura central a criança ou o adolescente, eu era e ainda sou amigo do editor. Foi assim: no final dos anos 40, em Florianópolis, uma turma de jovem fundou o Grupo Sul, o qual teve, durante alguns anos, grande importância no panorama artístico e literário do país. Os mais diversos aspectos e ramos da arte e da cultura foram objetivo do grupo: ente eles, publicação de revistas, cinema, clube de cinema, encenação de peças teatrais, intercâmbio cultural com outros grupos e edição de livros. Passei a participar ativamente do grupo Sul e tornei-me amigo de Salim Miguel, um dos fundadores. Ele interessou-se pelos meus contos e foi pelas Edições Sul que saíram meus dois primeiros livros.
- Algum editor propôs-lhe alguma vez escrever exclusivamente e com salário fixo?
- Guido Wilmar Sassi - Uma editora propor a um escritor que escreva com exclusividade e com salário fixo - aqui no Brasil? Difícil, muito difícil, quase impossível. No meu caso, jamais me fizeram tal proposta. Não sei seu aceitaria.
- Quando escreve, pensa nos críticos, nos leitores, no editor?
- Guido Wilmar Sassi - Quando escrevo não penso em ninguém, seja editor, crítico ou leitor. Meu objetivo é transformar uma idéia em conto, crônica, novela ou romance. No entanto, costumo pensar em um determinado leitor: o primeiro leitor: eu mesmo. Também sou o primeiro crítico. Se eu ficar satisfeito é porque o livro é bom; se o contrário acontece é porque o livro não presta mesmo.
Somente depois de terminado o livro é que me lembro da existência do editor, e que esse editor precisa ser abordado, conquistado, convencido e, quem sabe, vencido.
- Discute com o editor, aceita conselho, cortes, etc?
- Guido Wilmar Sassi - O editor no Brasil, salvo as ditas raras exceções, parece odiar o escritor nacional. Claro, o escritor brasileiro não dá lucro. Não dá lucro porque não é editado e não é editado porque não dá lucro. Entenda! Em regra, o nosso editor costuma reservar ao autor patrício alguns epítetos nada elogiosos: chato de galochas, peso morto, edição de obrigação, etc. Às vezes, por julgar a atividade meio amadorística, o editor não conhece o métier, e às vezes, por falta de assessoria ou má assessoria, ele não conhece sequer o próprio livro, objeto do seu mercado.
Já aceitei conselhos e sugestões de cortes, assim como deixei de aceitá-los.
- Acredita que a publicidade seja importante para o lançamento e o sucesso de um livro ou pensa que um bom livro não precise?
- Guido Wilmar Sassi - Um bom livro nem sempre tem o lançamento e o sucesso comercial que merece. A publicidade é, indiscutivelmente, essencial. O diabo é que existem vários tipos de publicidade, sendo a escandalosa e/ou compulsória a mais comum.
Vendem bem os títulos chamativos: "Minha prima foi amante de Ramsés II" e " Eu testemunhei meu avô estrangular o tataravô de Hitler".
Os políticos (presidentes ou não, imortais ou mesmo sem participação em qualquer academia) e seus assemelhados e congêneres, quase sempre por conta do erário público, acham-se na obrigação de enriquecer a literatura com as suas esplêndidas obras em prosa e verso: "Lagartixas Ígneas", "Banquetes e sonetos palustres", "Por que fui eleito ditador vitalício da Pornolândia".
Gente ligada ao governo, economistas, estrategistas, porta-vozes, líderes na Câmara, etc. também fazem suas incursões pelo País das Belas Letras. Assim, o datilógrafo do auxiliar do ajudante do subsecretário do terceiro assessor de um ministro qualquer também comparece com o seu best-seller: "Como acabar com a inflação em 10 lições - método seguro, eficaz e eficiente".
- Participa do lançamento de seus livros?
- Guido Wilmar Sassi - Já participei do lançamento de alguns dos meus livros. Acho muito importante para o escritor autopromover-se, visando à divulgação de sua obra e ao sucesso de público e de crítica. Noite de autógrafos é uma boa pedida, mas eu jamais consigo atrair leitores badaladores ou compradores, pois ainda não assassinei ninguém, nem celebridade alguma, não tenho planos miraculosos para salvar a economia do país, não descobri a pólvora, etc.
- Quando escreve, percebe autocensuras, temores em se revelar, laços, impedimentos?
- Guido Wilmar Sassi - Quando escrevo, percebo autocensuras, laços, temores e impedimentos de toda ordem e tamanho. Não sei explicá-los.
Minha luta principal é contra a preguiça, e esta acaba vencendo a maioria das vezes. Sou muito preguiçoso, graças a Deus. Suspeito de que isso se deve a um esforço do subonsciente no sentido de preservar minha saúde.
Começo o dia com o firme propósito de escrever. E saio à cata de mil pretextos para não fazê-lo. Caminho para cá e para lá. Evito sentar-me à máquina. Não me aproximo do gravador nem do micro. Faço a ponta de todos os lápis que encontro, sabendo que jamais precisarei deles. Largo tudo de mão e leio um trecho de poema de poetas meus de cabeceira: Pablo Neruda, Fernando Pessoa, García Lorca, Vinícius, Drummond. Geralmente consigo dominar a imperativa e incoercível vontade de escrever.
Tudo é pretexto para não começar a escrever, pois sei muito bem que, se começar mesmo, nada nem ninguém me fará parar.
- O sucesso de uma obra depende de que? De quem?
- Guido Wilmar Sassi - Vou dar a resposta mais curta de todo este questionário: Francamente, eu não sei.
- Faça de conta nada ter dito até agora. Poderia traçar o seu perfil humano e profissional (enquanto escritor) para os leitores?
- Guido Wilmar Sassi - É difícil esquecer tudo quanto já disse. Eu estou, de corpo e alma, nas respostas do questionário. O meu auto-retrato? No princípio, eu era um só, indivisível. Depois apareceu a dualidade, quando comecei a brincar com os espelhos. Daí, o UNO se bipartiu: o direito e o avesso. Dr. Jekil e Mr. Hyde surgiram de mãos dadas, xipófagos inseparáveis. Na tentativa de novamente fundir as duas imagens o espelho se quebrou: cacos e mais cacos. Os fragmentos se transformaram numa porção de espelhos. E eu, usando os versos de Cecília Meireles, fiz a pergunta crucial: - Em que espelho ficou perdida a minha face? Não encontrei resposta. Mas ainda resta uma esperança nos versos de outro poeta, Mário de Andrade: Eu sou trezentos, sou trezentos e cinqüenta. / Mas um dia afinal me encontrei comigo...
Fui lógico? Não, não fui! Nunca serei lógico. Não entendo coisa alguma de lucidez nem de lógica. Se entendesse, mesmo que fosse um pouquinho só, jamais me importaria com a literatura.
Fonte:
http://www.prosapoesiaecia.xpg.com.br/guidoautores.htm
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