domingo, 6 de novembro de 2011

Júlia Lopes de Almeida (O Último Sonho da Rainha)


"There is no one near me to call me Victoria, now". Em toda a extensa biografia da rainha da Inglaterra, a bem amada, que os jornais do mundo inteiro publicaram na ocasião da sua morte, em lamentosa necrologia, nenhuma frase há talvez que mais justamente revele a mulher, do que esta, com que ela chorou a sua viuvez:

— "Agora já não tenho ninguém a meu lado para me chamar Victória."

O seu nome, isolado de toda a cerimônia, proferido de igual para igual, nunca mais soaria aos seus ouvidos, na intimidade franca do amor.

A morte igualitária e justa selava na boca do príncipe o nome da mulher, ficando só para a Vida o da majestade.

Rainha! Não ser mais que rainha, é pouco. Mãe? Não basta. Filhos e súditos têm pela soberana prestigiosa o mesmo respeito incondicional, a mesma obediência passiva.

Ela sente, na sua viuvez, não só a falta do amigo, mas a da sua própria personalidade humana.

Havia uma voz só, entre tantíssimas vozes, que a tratava como a companheira de jornada; a confidente, a alma irmã, a criatura filha de Deus, sujeita ao erro, domável ao conselho, com as qualidades e os defeitos inerentes aos mais; havia só uma voz que lhe lembrava que ela era uma mulher como as outras mulheres, afetiva, nascida para o gozo e para o sofrimento, e que o seu papel na Vida, saía todo do coração.

Dizer somente: Victória, era o mesmo que significar, aos seus ouvidos aturdidos de honrarias e lisonjas confusas: "Para mim tu és mais do que a soberana, apoderosa Rainha da Inglaterra e Imperatriz de todas as Índias; tu és a Mulher, criada à minha semelhança, para companheira da minha existência, bonança dos meus dias, e benção da minha prole. Nasceste para mim; somos iguais, amemo-nos!"

Percebo a sensação de isolamento que a rainha havia de sentir, quando, olhando em torno, só visse cabeças curvadas diante dos seus olhos interrogativos, e joelhos vergados nos degraus do seu trono.

A única voz que a tratava por tu, extinguira-se; e só então ela percebeu como essa expressão de igualdade e de intimidade é doce...

Todas as suas confidencias se voltam para o seu diário.

É preciso abrir uma válvula ao sentimento, — e escreve. É também a única maneira que ela tem de se fazer lembrar a si mesma que ela é — Victória — a mulher de carne e osso, da mesma espécie, portanto, que as pobres camponesas que andam pelos campos ceifando, e vão à tarde para as pontes e as cercas tagarelar com os noivos. Este livro é como que uma janela aberta numa prisão.

Eu gostaria de lê-lo, certa de que ele será um excelente estudo de uma alma, revelação de uma tortura desconhecida e nobre, cuja interpretação é esta: a ânsia de uma rainha por ser antes, e mais que tudo — a Mulher.

Em toda a sua biografia só entrevi, talvez mal, um traço ligeiro de vaidade. Sua Majestade Britânica, oferecendo o seu jornal ao grande romancista Dickens escreveu:

"Como o dom de um dos mais humildes escritores, ao maior de todos."

Talvez que este livro espontâneo, espelho de uma alma em toda a sua intimidade, dê direito ao titulo que a rainha se arrogou.

Que observações finas e curiosas teriam essas páginas comentadoras de atos e de personagens da Corte, se a mão da soberana, trocando o cetro pela pena, a empunhasse, não como derivativo de saudade amarga, mas como um instrumento que tudo revolve em busca da Verdade!

O livro de uma rainha tem de ser nublado pelos preconceitos e as conveniências. Muitas linhas teriam sido riscadas, quando, deixando de ser álbum íntimo, esse confidente discreto passou a ser livro publicado.

Todavia, o que naturalmente o torna encantador, é a sua essência, a expansão ingênua da felicidade ao alcance de qualquer...

Talvez tivesse sido esse o segredo da popularidade da rainha. O povo ama os simples e reverencia, sobre todas, as qualidades do coração.

Não tardará que essas virtudes decantadas, atravessem contos ingleses e canções idílicas, como embrião de formosas e futuras lendas. O tocante episódio da oferta de um brinquedo a filha de um camponês, anos depois de feita a promessa, interrompida por viagens e altas preocupações de estado, servirá de assunto magnífico para histórias do Natal, em que as crianças que hão de vir, antes de conhecer a rainha da História, comecem a amar a mulher do conto...

Assim, a rainha bem amada, surgirá em várias páginas, conduzida pelas mãos daquele a quem ela se associou, chamando-se escritora.

Eu quisera, sempre a exigência da perfeição! Que, para a apoteose de tão clara e amorosa existência, a velha Rainha da Inglaterra e Imperatriz das Índias, soerguendo-se no leito de morte, com o esforço supremo da sua vontade soberana, tivesse pedido aos seus ministros e ao novo rei, seu filho, a terminação da guerra sul-africana.

Dizem que do mal desta guerra se finou a velha senhora. Quero crê-lo; e só assim concebo a suavidade da sua morte.

A dor, que não pôde ser expressa, por conveniências e por orgulhos de Estado, e que ficou abafada no último suspiro, deve vibrar agora, como um remorso na consciência dos que a provocaram.

Triste, o brilhante destino dos reis, que nem os deixa morrer como os demais cristãos: perdoando!

A alma da rainha-imperatriz muito se mostrara ao seu povo para que ele não a conhecesse. Com a percepção aguda do instinto, ele lê nela como em um livro: por isso afirma que era infinito o desgosto da sua soberana ao fechar os olhos para o último sono.

Era infinito o seu desgosto; mas, se em vez de oitenta anos a Rainha Victoria tivesse quarenta, teria sabido morrer de outra maneira.

Então, o rumor surdo das armas em combate, descansando no solo ainda fumegante da batalha, soaria mais alto que todas as orações e que todos os sinos das abadias e das catedrais. Esse devia ter sido o último sonho da Rainha.

Advinhando-o, todo o seu povo se cobre de luto sincero, os jardins do Reino despojam-se das suas flores, e as viúvas e os órfãos não a amaldiçoam.

As virtudes altíssimas do seu espírito e do seu caráter são mencionadas em todas as línguas da Terra; o telégrafo espalha o seu nome pelo mundo inteiro, e há em todo este movimento um respeito singular e profundo pela mulher cujo conselho, cuja prudência e cujo acerto, desenvolveram, ampararam e enriqueceram a mais poderosa nação do Globo, e que afinal, morre calada e triste, por não poder realizar o seu último sonho!

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Livro das Donas e Donzelas. Belém/PA: Núcleo de Educação a Distancia da Universidade da Amazonia (UNAMA).

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