Deitaram-se bem tarde naquela noite. Tanta coisa tinha o menino a contar, coisas da casa da dona Antonica e da escola, que somente às onze horas foram para a cama. Que sono regalado! Isto é, regalado até uma certa hora. Daí por diante houve coisa grossa.
Narizinho estava justamente no meio dum lindo sonho quando despertou de sobressalto, com umas pancadinhas de chicote na vidraça — pen, pen, pen... E logo em seguida ouviu a voz do marquês de Rabicó, que dizia:
— O sol não tarda, Narizinho. Pule da cama que são horas de partir.
Chegando à janela, viu o marquês montado num cavalinho de pau à sua espera.
— E a condessa? Já está pronta? — perguntou a menina.
— A senhora condessa já está lá embaixo, corcoveando no cavalo Pampa.
— Pois então que me selem o pangaré. Em três tempos me visto.
Enquanto por ordem do marquês selavam o cavalo pangaré, a menina punha o seu vestido vermelho de bolso. Precisava de bolso para levar os bolinhos de tia Nastácia sobrados da véspera e também para trazer coisas do reino das Abelhas.
Porque era para o reino das Abelhas que eles iam, a convite da rainha. Reino das Abelhas ou das Vespas? Não havia certeza ainda.
Na véspera chegara um maribondo mensageiro com um convite assim:
“Sua Majestade a Rainha das... dá a honra de convidar vocês todos para uma visita ao seu reino.”
Como o papelzinho estivesse rasgado num ponto, havia dúvida se o convite era da rainha das Vespas ou da rainha das Abelhas.
Narizinho respondeu ao convite por meio dum borboletograma.
Não sabem o que é? Invenção da Emília. Como não houvesse telégrafo para lá, a boneca teve a idéia de mandar a resposta escrita em asas de borboleta. Agarrou uma borboleta azul que ia passando e rabiscou-lhe na asa, com um espinho, o seguinte:
“Narizinho, a Condessa e o Marquês agradecem a honra do convite e prometem não faltar.”
— Por que não incluiu o nome de Pedrinho, Emília? — perguntou a menina.
— Porque ele não é nobre — nem barão ainda é!... Pronto que foi o borboletograma, surgiu uma dificuldade. A quem endereçá-lo? À rainha das Vespas ou à das Abelhas?
— Já resolvo o caso — disse Emília, e soltou a borboleta com estas palavras: “Vá direitinha, hein? Nada de distrair-se com flores pelo caminho.”
— Ir para onde? — perguntou a borboleta.
— Para a casa de seu sogro, ouviu? Malcriada! Atrever-se a fazer perguntas a uma condessa!
— Mas... — ia dizendo humildemente a borboleta.
Emília, porém, interrompeu-a com um berro.
— Ponha-se daqui para fora! Não admito observações. Conheça o seu lugar, ouviu?
A borboleta lá se foi, amedrontada e desapontadíssima.
— Você parece louca, Emília! — observou Narizinho. – Como há de ela saber o endereço se você não deu endereço algum?
— Sabe, sim! — retorquiu a boneca. — São umas sabidíssimas as senhoras borboletas. Se sabem fabricar pó azul para as asas, que é coisa dificílima, como não hão de saber o endereço dum borboletograma ?
Narizinho fez cara de quem diz: “Ninguém pode entender como funciona a cabeça da Emília! Ora raciocina muito bem, tal qual gente. Outras vezes, é assim — tão torto que deixa uma pessoa trapalhada...”
O cavalo pangaré veio, a menina montou e lá partiram todos pela estrada afora — pac, pac, pac... Em certo ponto Narizinho disse à boneca:
— Vamos apostar corrida? Emília aceitou, muito assanhada.
— Pois toque, então!
Emília — lept, lept! chicoteou o cavalinho pampa, disparando numa galopada louca. Narizinho, porém, não se moveu do lugar. O que queria era ficar só com o marquês de Rabicó para uma conversa reservada — o casamento dele com a condessa.
— Mas afinal de contas, marquês, quer ou não quer casar-se com a condessa?
— Já declarei que sim, isto é, que casarei, se o dote for bom. Se me derem, por exemplo, dois cargueiros de milho, casarei com quem quiserem — com a cadeira, com o pote d’água, com a vassoura. Nunca fui exigente em matéria matrimonial.
— Guloso! Pois olhe que vai fazer um casamentão! Emília é feia, não nego, mas muito boa dona de casa. Sabe fazer tudo, até fios de ovos, que é o doce mais difícil. Pena ser tão fraquinha...
— Fraca? — exclamou o marquês admirado. — Não me parece. Tão gorda que está...
— Engano seu. Emília, desde que caiu n’água e quase se afogou, parece ter ficado desarranjada do fígado. E aquela gordura não é banha, não, é macela! Emília o que está é estufada. Inda a semana passada tia Nastácia a recheou de mais macela.
O marquês pensou lá consigo: “Que pena não a ter recheado de fubá!” mas não teve coragem de o dizer em voz alta, limitando-se a exclamar:
— Pois pensei que fosse toucinho e do bom!...
— Que esperança! Toucinho do bom está aqui, disse a menina apalpando-lhe o lombo. — Dos tais que dão um torresminho delicioso! — e lambeu os beiços, já com água na boca. Felizmente o dia de Ano Bom está próximo!...
Dia de Ano Bom era dia de leitão assado no sítio, mas Rabicó não sabia disso.
— Dia de Ano Bom? — repetiu ele sem nada compreender.
— Que tem isso com o meu toucinho ?
— Nada! É cá uma coisa que sei e não é da sua conta — respondeu a menina piscando o olho.
E assim, nessa prosa, alcançaram a condessa, que estava lá adiante, furiosa com o logro.
— Não achei graça nenhuma! — foi dizendo Emília logo que a menina chegou. — Nem parece coisa duma princesa (Emília só a tratava de princesa nas brigas).
— Pois eu, Emília, estou achando uma graça extraordinária na sua zanguinha! Sua cara está que é ver aquele bule velho de chá, com esse bico...
Mais zangada ainda, Emília mostrou-lhe a língua e dando uma chicotada no cavalinho tocou para a frente, resmungando alto:
— Princesa!... Princesa que ainda toma palmadas de dona Benta e leva pitos da negra beiçuda! E tira ouro do nariz... Antipatia!...
Calúnias puras. Narizinho nem tomava palmadas, nem levava pitos, nem tirava ouro do nariz. Emília, sim...
–––––––––
Continua... O Assalto
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
Narizinho estava justamente no meio dum lindo sonho quando despertou de sobressalto, com umas pancadinhas de chicote na vidraça — pen, pen, pen... E logo em seguida ouviu a voz do marquês de Rabicó, que dizia:
— O sol não tarda, Narizinho. Pule da cama que são horas de partir.
Chegando à janela, viu o marquês montado num cavalinho de pau à sua espera.
— E a condessa? Já está pronta? — perguntou a menina.
— A senhora condessa já está lá embaixo, corcoveando no cavalo Pampa.
— Pois então que me selem o pangaré. Em três tempos me visto.
Enquanto por ordem do marquês selavam o cavalo pangaré, a menina punha o seu vestido vermelho de bolso. Precisava de bolso para levar os bolinhos de tia Nastácia sobrados da véspera e também para trazer coisas do reino das Abelhas.
Porque era para o reino das Abelhas que eles iam, a convite da rainha. Reino das Abelhas ou das Vespas? Não havia certeza ainda.
Na véspera chegara um maribondo mensageiro com um convite assim:
“Sua Majestade a Rainha das... dá a honra de convidar vocês todos para uma visita ao seu reino.”
Como o papelzinho estivesse rasgado num ponto, havia dúvida se o convite era da rainha das Vespas ou da rainha das Abelhas.
Narizinho respondeu ao convite por meio dum borboletograma.
Não sabem o que é? Invenção da Emília. Como não houvesse telégrafo para lá, a boneca teve a idéia de mandar a resposta escrita em asas de borboleta. Agarrou uma borboleta azul que ia passando e rabiscou-lhe na asa, com um espinho, o seguinte:
“Narizinho, a Condessa e o Marquês agradecem a honra do convite e prometem não faltar.”
— Por que não incluiu o nome de Pedrinho, Emília? — perguntou a menina.
— Porque ele não é nobre — nem barão ainda é!... Pronto que foi o borboletograma, surgiu uma dificuldade. A quem endereçá-lo? À rainha das Vespas ou à das Abelhas?
— Já resolvo o caso — disse Emília, e soltou a borboleta com estas palavras: “Vá direitinha, hein? Nada de distrair-se com flores pelo caminho.”
— Ir para onde? — perguntou a borboleta.
— Para a casa de seu sogro, ouviu? Malcriada! Atrever-se a fazer perguntas a uma condessa!
— Mas... — ia dizendo humildemente a borboleta.
Emília, porém, interrompeu-a com um berro.
— Ponha-se daqui para fora! Não admito observações. Conheça o seu lugar, ouviu?
A borboleta lá se foi, amedrontada e desapontadíssima.
— Você parece louca, Emília! — observou Narizinho. – Como há de ela saber o endereço se você não deu endereço algum?
— Sabe, sim! — retorquiu a boneca. — São umas sabidíssimas as senhoras borboletas. Se sabem fabricar pó azul para as asas, que é coisa dificílima, como não hão de saber o endereço dum borboletograma ?
Narizinho fez cara de quem diz: “Ninguém pode entender como funciona a cabeça da Emília! Ora raciocina muito bem, tal qual gente. Outras vezes, é assim — tão torto que deixa uma pessoa trapalhada...”
O cavalo pangaré veio, a menina montou e lá partiram todos pela estrada afora — pac, pac, pac... Em certo ponto Narizinho disse à boneca:
— Vamos apostar corrida? Emília aceitou, muito assanhada.
— Pois toque, então!
Emília — lept, lept! chicoteou o cavalinho pampa, disparando numa galopada louca. Narizinho, porém, não se moveu do lugar. O que queria era ficar só com o marquês de Rabicó para uma conversa reservada — o casamento dele com a condessa.
— Mas afinal de contas, marquês, quer ou não quer casar-se com a condessa?
— Já declarei que sim, isto é, que casarei, se o dote for bom. Se me derem, por exemplo, dois cargueiros de milho, casarei com quem quiserem — com a cadeira, com o pote d’água, com a vassoura. Nunca fui exigente em matéria matrimonial.
— Guloso! Pois olhe que vai fazer um casamentão! Emília é feia, não nego, mas muito boa dona de casa. Sabe fazer tudo, até fios de ovos, que é o doce mais difícil. Pena ser tão fraquinha...
— Fraca? — exclamou o marquês admirado. — Não me parece. Tão gorda que está...
— Engano seu. Emília, desde que caiu n’água e quase se afogou, parece ter ficado desarranjada do fígado. E aquela gordura não é banha, não, é macela! Emília o que está é estufada. Inda a semana passada tia Nastácia a recheou de mais macela.
O marquês pensou lá consigo: “Que pena não a ter recheado de fubá!” mas não teve coragem de o dizer em voz alta, limitando-se a exclamar:
— Pois pensei que fosse toucinho e do bom!...
— Que esperança! Toucinho do bom está aqui, disse a menina apalpando-lhe o lombo. — Dos tais que dão um torresminho delicioso! — e lambeu os beiços, já com água na boca. Felizmente o dia de Ano Bom está próximo!...
Dia de Ano Bom era dia de leitão assado no sítio, mas Rabicó não sabia disso.
— Dia de Ano Bom? — repetiu ele sem nada compreender.
— Que tem isso com o meu toucinho ?
— Nada! É cá uma coisa que sei e não é da sua conta — respondeu a menina piscando o olho.
E assim, nessa prosa, alcançaram a condessa, que estava lá adiante, furiosa com o logro.
— Não achei graça nenhuma! — foi dizendo Emília logo que a menina chegou. — Nem parece coisa duma princesa (Emília só a tratava de princesa nas brigas).
— Pois eu, Emília, estou achando uma graça extraordinária na sua zanguinha! Sua cara está que é ver aquele bule velho de chá, com esse bico...
Mais zangada ainda, Emília mostrou-lhe a língua e dando uma chicotada no cavalinho tocou para a frente, resmungando alto:
— Princesa!... Princesa que ainda toma palmadas de dona Benta e leva pitos da negra beiçuda! E tira ouro do nariz... Antipatia!...
Calúnias puras. Narizinho nem tomava palmadas, nem levava pitos, nem tirava ouro do nariz. Emília, sim...
–––––––––
Continua... O Assalto
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
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