
Narizinho estava justamente no meio dum lindo sonho quando despertou de sobressalto, com umas pancadinhas de chicote na vidraça — pen, pen, pen... E logo em seguida ouviu a voz do marquês de Rabicó, que dizia:
— O sol não tarda, Narizinho. Pule da cama que são horas de partir.
Chegando à janela, viu o marquês montado num cavalinho de pau à sua espera.
— E a condessa? Já está pronta? — perguntou a menina.
— A senhora condessa já está lá embaixo, corcoveando no cavalo Pampa.
— Pois então que me selem o pangaré. Em três tempos me visto.
Enquanto por ordem do marquês selavam o cavalo pangaré, a menina punha o seu vestido vermelho de bolso. Precisava de bolso para levar os bolinhos de tia Nastácia sobrados da véspera e também para trazer coisas do reino das Abelhas.
Porque era para o reino das Abelhas que eles iam, a convite da rainha. Reino das Abelhas ou das Vespas? Não havia certeza ainda.
Na véspera chegara um maribondo mensageiro com um convite assim:
“Sua Majestade a Rainha das... dá a honra de convidar vocês todos para uma visita ao seu reino.”
Como o papelzinho estivesse rasgado num ponto, havia dúvida se o convite era da rainha das Vespas ou da rainha das Abelhas.
Narizinho respondeu ao convite por meio dum borboletograma.
Não sabem o que é? Invenção da Emília. Como não houvesse telégrafo para lá, a boneca teve a idéia de mandar a resposta escrita em asas de borboleta. Agarrou uma borboleta azul que ia passando e rabiscou-lhe na asa, com um espinho, o seguinte:
“Narizinho, a Condessa e o Marquês agradecem a honra do convite e prometem não faltar.”

— Porque ele não é nobre — nem barão ainda é!... Pronto que foi o borboletograma, surgiu uma dificuldade. A quem endereçá-lo? À rainha das Vespas ou à das Abelhas?
— Já resolvo o caso — disse Emília, e soltou a borboleta com estas palavras: “Vá direitinha, hein? Nada de distrair-se com flores pelo caminho.”
— Ir para onde? — perguntou a borboleta.
— Para a casa de seu sogro, ouviu? Malcriada! Atrever-se a fazer perguntas a uma condessa!
— Mas... — ia dizendo humildemente a borboleta.
Emília, porém, interrompeu-a com um berro.
— Ponha-se daqui para fora! Não admito observações. Conheça o seu lugar, ouviu?
A borboleta lá se foi, amedrontada e desapontadíssima.
— Você parece louca, Emília! — observou Narizinho. – Como há de ela saber o endereço se você não deu endereço algum?
— Sabe, sim! — retorquiu a boneca. — São umas sabidíssimas as senhoras borboletas. Se sabem fabricar pó azul para as asas, que é coisa dificílima, como não hão de saber o endereço dum borboletograma ?
Narizinho fez cara de quem diz: “Ninguém pode entender como funciona a cabeça da Emília! Ora raciocina muito bem, tal qual gente. Outras vezes, é assim — tão torto que deixa uma pessoa trapalhada...”
O cavalo pangaré veio, a menina montou e lá partiram todos pela estrada afora — pac, pac, pac... Em certo ponto Narizinho disse à boneca:
— Vamos apostar corrida? Emília aceitou, muito assanhada.
— Pois toque, então!
Emília — lept, lept! chicoteou o cavalinho pampa, disparando numa galopada louca. Narizinho, porém, não se moveu do lugar. O que queria era ficar só com o marquês de Rabicó para uma conversa reservada — o casamento dele com a condessa.
— Mas afinal de contas, marquês, quer ou não quer casar-se com a condessa?
— Já declarei que sim, isto é, que casarei, se o dote for bom. Se me derem, por exemplo, dois cargueiros de milho, casarei com quem quiserem — com a cadeira, com o pote d’água, com a vassoura. Nunca fui exigente em matéria matrimonial.
— Guloso! Pois olhe que vai fazer um casamentão! Emília é feia, não nego, mas muito boa dona de casa. Sabe fazer tudo, até fios de ovos, que é o doce mais difícil. Pena ser tão fraquinha...
— Fraca? — exclamou o marquês admirado. — Não me parece. Tão gorda que está...
— Engano seu. Emília, desde que caiu n’água e quase se afogou, parece ter ficado desarranjada do fígado. E aquela gordura não é banha, não, é macela! Emília o que está é estufada. Inda a semana passada tia Nastácia a recheou de mais macela.
O marquês pensou lá consigo: “Que pena não a ter recheado de fubá!” mas não teve coragem de o dizer em voz alta, limitando-se a exclamar:
— Pois pensei que fosse toucinho e do bom!...
— Que esperança! Toucinho do bom está aqui, disse a menina apalpando-lhe o lombo. — Dos tais que dão um torresminho delicioso! — e lambeu os beiços, já com água na boca. Felizmente o dia de Ano Bom está próximo!...
Dia de Ano Bom era dia de leitão assado no sítio, mas Rabicó não sabia disso.
— Dia de Ano Bom? — repetiu ele sem nada compreender.
— Que tem isso com o meu toucinho ?
— Nada! É cá uma coisa que sei e não é da sua conta — respondeu a menina piscando o olho.
E assim, nessa prosa, alcançaram a condessa, que estava lá adiante, furiosa com o logro.
— Não achei graça nenhuma! — foi dizendo Emília logo que a menina chegou. — Nem parece coisa duma princesa (Emília só a tratava de princesa nas brigas).
— Pois eu, Emília, estou achando uma graça extraordinária na sua zanguinha! Sua cara está que é ver aquele bule velho de chá, com esse bico...
Mais zangada ainda, Emília mostrou-lhe a língua e dando uma chicotada no cavalinho tocou para a frente, resmungando alto:
— Princesa!... Princesa que ainda toma palmadas de dona Benta e leva pitos da negra beiçuda! E tira ouro do nariz... Antipatia!...
Calúnias puras. Narizinho nem tomava palmadas, nem levava pitos, nem tirava ouro do nariz. Emília, sim...
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Continua... O Assalto
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
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