terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Nilto Maciel (O Bom Selvagem) 1a. Parte

(novela integrante do livro Vasto Abismo)

PRESENTE

As noites aqui no Boqueirão já foram mais alegres. Agora nem saio mais de casa. Se há luar, olho para o céu, feito poeta de antigamente. Porém, não dura um minuto sequer meu namoro com as estrelas. E volto ao caderno, onde escrevo em minha língua a História do Brasil. É uma tradução apenas.

Quem me encarregou dessa missão foi padre Tonelli. Quer ensinar aos bororo a História do Brasil. Já ensina português, aritmética, geografia, religião. A católica, logicamente.

Padre Tonelli é meio esquisito. Diz que índio deve continuar índio, preservar suas tradições. Sobretudo sua língua. Mas deve renegar alguns costumes. Como o de viver nu.

Não sei mais viver nu. Além do mais, todos por aqui usam roupas. Mesmo os índios mais atrasados. Os padres da Missão não permitem a nudez. Chamam de pecado. E chamam a Missão de Colônia.

Tudo mudou muito em minha vida. Primeiro mudou meu nome. De Bokodori passei a Daniel Álvares. Deixei a aldeia indígena, um amontoado de cabanas de palha, e fui viver no meio dos brancos.

Hoje sou de novo um bororo, um selvagem. Ninguém me aceitaria de paletó e gravata, falando português, andando pelas ruas das grandes cidades, dentro de automóveis.

O padre missionário, no entanto, não se cansa de querer me desfigurar. Devo voltar a ser professor. Esquecer os dissabores. Levar uma vida cristã e moderna. Educar os filhos, viver em paz com Lucina.

Não quero desgostar padre Tonelli. Vou cumprir minha promessa, traduzir para o bororo o livro de História. Ele é um homem de bom coração. E me trata com muito respeito e amizade.

Deixarei de lado este caderno e dedicarei algumas horas à tradução. Aos heróis portugueses e seus descendentes. Os matadores de índios.

ANTEPASSADOS

Minha tarefa estou para concluir. Mais algumas páginas, nomes, datas, fatos, e fim. Aliás, o autor devia ter ficado por aqui. O resto está tão recente que nem devia ter sido escrito. A história de um país é diferente da história de uma pessoa. Na minha vida, por exemplo, 17 anos valem muito. Na de um país são migalha. Eu mesmo não me lembro de nada muito importante ocorrido aqui nos últimos tempos. Comigo, sim, aconteceram coisas para lá de desastrosas. E é disso que vou tratar agora. Deixarei de lado essa História do Brasil e me voltarei para mim mesmo. Ora, sou mais importante para mim do que esses marechais.

Aprendi um pouco de tudo. Aprendi caminhos desconhecidos. Aprendi, sobretudo, que o sonho passa por nós feito nuvem. E emigra para longe, na eterna correria do tempo.

Aproveitando o método do livro que traduzo, relembrarei tudo, desde meu nascimento.

O Brasil – diz o livro – nasceu dos portugueses. Já eu, embora brasileiro, não venho de portugueses. Meus pais eram bororo, que viviam aqui muito antes de o Brasil nascer. Engraçadíssima essa história! Em compensação, só tenho a idade da República. Antes de mim houve o Império. Anteriores a este, porém, são meus avós.

Para falar de mim, devo começar lembrando meu povo. Só assim os leitores – pois pretendo publicar isto um dia – poderão me entender melhor.

Contam os mais velhos terem sido Bacororo e Itubori os primeiros bororo. Foram gerados de um canguçu e uma mulher, viveram inúmeras aventuras na selva, ditaram leis aos homens e animais, tiveram poder sobre todas as coisas, foram príncipes dos bororo, e o serão para sempre.

Meu defunto pai chegou a chefe de tribo, assim como seu pai, etc. E todos muito inteligentes. Conheciam os Tereno, os Botocudo e outros povos. Iam do Paraguai até Goiás, grandes caçadores que eram. E eu herdei tudo isso. Só não sou chefe porque hoje não temos mais tribo. Em compensação, aprendi várias línguas e vivi na Europa. Ouvi falar da teoria quântica e conheci Marconi. Li Rilke e Conrad e vi os quadros de Picasso. Admiro profundamente Einstein e Santos Dumont. Discuti a teoria da deriva continental, em francês, com estudantes parisienses. Hoje me interesso pelos Nêutrons e pelos estudos de John Logie Baird. Seus inventos ainda vão revolucionar o mundo. Quero ler Virgínia Woolf, Pirandello, William Faulkner e ver de perto a arquitetura de Le Corbusier.

Tudo isto, no entanto, de nada me serve. Aliás, se falo de progresso, desenvolvimento, mudança, é por mera vaidade. Ou talvez para não olhar para dentro de mim mesmo e de meu povo. Por isso, me chamam de índio metido a besta. Por outro lado, meus irmãos de sangue me olham com desdém. Tiraram-me de meu mundo e agora vivo isolado, como se fosse estranho a uns e outros. A solidão, essa cadela marcada, me segue os passos. Não sou mais índio, porque me ensinaram a ser europeu, branco, cristão. Não sou europeu, porque nasci índio. Para tentar conciliar as duas situações, ensino aos bororo a língua, a cultura e a História dos brancos. Traduzi do português para o bororo a Bíblia, e agora me dedico a essa estúpida História do Brasil. Desde Pedro Álvares Cabral. De quebra, me deram o nome de Daniel Álvares. A escolha do nome pode ter sido casual. Poderiam me chamar de Pedro Caminha.

Terão tido propósitos de me ridicularizar?

Há quem ainda me chame pelo meu nome indígena – Bokodori. Noto, porém, um certo ar de deboche na pronúncia. Como se quisessem dizer: você é um selvagem, mesmo sabendo falar português e francês.

INFÂNCIA

Passou mais uma noite. Não pude dormir. Revi quase minha vida inteira. Não consigo, no entanto, me lembrar de meus dias mais remotos. Depois de tanto viver, de tanto ouvir e ler, de tanto forçar a memória, é-me impossível reconstruir meu primeiro passado. Confundo-me com personagens de mitos, com outros meninos reais e imaginários, e me represento adulto em tempos de criança.

Há pouco reli trechos da História do Brasil, assim como as páginas que ontem escrevi. Os primeiros me parecem destituídos de vida. As segundas estão incompletas. Não me interessa, porém, dar vida aos capítulos da História, a menos que eu pudesse incluir nela meus antepassados. Mas como, se mal conheci meus pais?

Imaginei minha mãe, viva, tão terra, tão natureza, de repente desesperada. E depois calada, triste e morta. Sigo-lhe o destino, eu que há 36 ou 25 anos sequer supunha um só dia de desespero e solidão. Naquele tempo tudo para mim era festa e eu comemorava até minhas estupefações. Revejo todas as cenas que se seguiram aos primeiros olhares de curiosidades do padre Pittini, às suas primeiras palavras a mim dirigidas. Sua figura alva, bonita, simpática me animou, me fez sonhar mil maravilhas. Meu primeiro desejo foi entender-lhe a fala, o significado dela, traduzir seus gestos, para, em seguida, compreender a razão de tudo – da batina, da cor de sua pele, seus cabelos e olhos, dos seus passos e, sobretudo, do seu interesse por nós e por mim, em particular. Ele me cativou e por mim se enfeitiçou desde o primeiro contato. Conversou comigo, fez-me todas as perguntas do questionário humano e prometia transformar-me num sábio, num salvador ou guia de meu povo. E eu só tinha 11 anos de idade.

Hoje compreendo quase tudo. Eu seria a isca e o modelo, para ser devorado e mostrado. E, mais do que isca e modelo, o boneco bem conservado para as exposições, espécie de atleta ou manequim, objeto de carne e osso, filhote de troglodita transformado em gentleman pelas mãos hábeis e santas do cristianismo. Aprendi a rezar, primeiro como me ensinaram e depois a meu modo. Pura lamentação. Assim: Minha madrinha, Nossa Senhora, tu vês o mundo todo verde, não é? Meus olhos, no entanto, são tão pretos! Ah! Minha Nossa Senhora, pinta meus olhos, que eu quero verdes os dias futuros.

Decorei orações latinas, nomes e vidas de santos, descobri pecados e virtudes e elegi um deus todo-poderoso. Credo in Deum Patrem omnipotentem, creatorem e caeli et terra. Reneguei Ké-Marugodu, o personagem lagarto de uma das principais lendas de nosso povo. Fiz tudo para esquecê-lo. Apagar da memória meu passado de selvagem. E enchi de jactâncias e me cobri de outro nome.
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continua...

Fonte:
Nilto Maciel. Vasto Abismo. Brasília: Ed. Códice, 1998.

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