quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Nilto Maciel (O Bom Selvagem) 2a. Parte

COLÉGIO

Carrego sempre comigo meu álbum de fotografias. No entanto, não gosto de mim no passado nem de meu passado. Como fui tolo e enganado! Fizeram-me crer em tantas ilusões!

Talvez me fascine o mistério do retrato. A gente poder perenizar-se, rever-se. Também o espelho me encanta. A gente duplicar-se, multiplicar-se. Copiar-se. A máquina fotográfica, seu mecanismo, sempre me inquietou. Antes eu fazia muitas perguntas a estranhos sobre ela. Hoje não tenho mais a inocência de perguntar. Ora, vão dizer, um homem tão estudado não devia fazer tantas perguntas.

Uma das fotografias que mais me fazem pensar é aquela onde apareço vestido de colegial . A primeira tirada com pose e logo após chegar ao colégio de Cuiabá. Eu tinha 12 anos de idade.

De início, estranhei a nova vida, o clima da cidade, os colegas, o colégio, apesar de ter sido apresentado como aluno exemplar. Pouco a pouco fui me adaptando ao novo ambiente, mesmo sem dispor de muito tempo para conversar e brincar. Os mestres exigiam demais de mim e eu conseguia estar sempre adiante de suas exigências. O latim aprendi com grande facilidade, a ponto de dentro de um ano já ler trechos clássicos, sem nenhuma dificuldade. Gutta cavat lapidem.

Quantas e quantas expressões decoradas e aprendidas! Melior canis virus leoni mortuo.

Não deixei o francês para trás. E como era gostoso ler e falar francês!

“Un loup n'avait que les os et peau,

Tant les chiens faisaient bonee garde.”

As fábulas de La Fontaine. Até inglês já nos ensinavam. E eu aprendia a gostar de sandwich, jazz, girls e dos United States e da England.

Ensinaram-se também números arábicos e romanos, operações, frações, álgebras. E tudo eu aprendia com distinção e louvor. Até as histórias de Sodoma e Gomorra, as vidas de Rebeca, Raquel e Lia, José e seus irmãos.

– Então fez o Senhor chover enxofre e fogo.

– A moça era mui formosa de aparência, virgem, a quem nenhum homem havia possuído. À tarde, vindo Jacó do campo, saiu-lhe ao encontro Lia, e lhe disse: Esta noite me possuirás.

– Teve José um sonho, e o relatou a seus irmãos; por isso o odiaram ainda mais.

Minha cabeça se enchia de palavras. Um, duo, trois, four. Eu todo me compunha de lições. Acordava ainda com os sonhos numerais, históricos, linguísticos, para rezar a Deus e aos santos, e depois ler, copiar e estudar lições que nunca meus pais viveram.

– Senhor, posto que o Capitão-mor desta vossa frota...

Hoje me abraço de novo àquelas palavras, a parte daquelas lições, por ofício, razão daquele mesmo aprendizado ou talvez por ironia do destino. Não mais decoro o texto que me deram. Vou mais adiante: traduzo para minha antiga língua a história do aniquilamento de meus próprios antepassados. História de heróis estrangeiros. Vasco da Gama, D. Manuel, o Venturoso, Pedro Álvares Cabral (e eu não descendo dele, meus filhos!), Gaspar de Lemos, Martim Afonso de Souza, Diogo Álvares Correia, o Caramuru (nem deste herdei nada). Uma fileira de nomes, antes tão estrangeiros. Eu, Bokodori, tradutor, professor.

VIAGEM À EUROPA

Nunca me preocupei com fazer um paralelo entre a História do Brasil e a minha. Não quero me perder em análises, sobretudo porque prefiro contar simplesmente minha vida. Além do mais, não vivi os grandes acontecimentos históricos. Eles não me despertaram sequer a atenção. Nem hoje consigo interessar-me por eles. O passado do Brasil e da Humanidade são para mim apenas textos ou lições escolares. Se aceitei traduzi-los para minha primeira língua, o fiz por qualquer motivo, menos pelo de ser um cidadão ocupado com a História.

Tenho notado o quanto escrever é traiçoeiro. Ora, eu não queria me perder em análise e cá estou perdido.

Escrever é desmentir, é negar hoje a afirmação de ontem. É contradizer-se, brigar consigo mesmo.

Meu primeiro intento hoje é, no entanto, situar a quarta fase mais importante de minha vida no contexto da História do Brasil. Aos 15 anos de idade viajei à Europa. Governava o Brasil o Marechal Hermes. No Ceará um padre comandava uma revolta. Fala-se agora da importância daqueles fatos. Eu, porém, ainda me sabia menino, apesar de toda a sabedoria e da ambição que me empurrava. Ler e falar francês não me custavam nada. E atravessei os mares e fui passear na capital do mundo moderno. Eu me sentia grande, notável, excelente. Um ex-selvagem brasileiro transitando pelas ruas e praças mais cultas da Terra, como um intelectual europeu. Depois eu soube: há mais de quatrocentos anos alguns índios brasileiros desfilaram nus pelas ruas de Ruão, para gáudio do rei Henrique II e sua pomposa corte. Não me senti um animal exótico, digno dos olhares concupiscentes de nobres ou burgueses. Antes, um homem até mais inteligente do que eles, pois não falavam bororo e nunca ouviram falar de Ké-Marugodu, enquanto eu também falava francês e sabia da história de Adão e Eva. Além do mais, eles sempre me pareceram uns macacos, todos fracos, baixos, magros, horríveis.

Conheci também Roma, vi o papa e todas as fantasias da Igreja Católica.

Paris e Roma me encantaram. A história e a arquitetura. Notre-Dame, Versalhes, Via Appia, Arco de Tito, Catedral de Reims, Place Royale, Coliseu, Basílica de São Pedro.

Foram dois anos de intensa vida social. Conheci Louises e Luigis, Françoises e Francescas, frequentei as mais luxuosas e burguesas casas, sempre bem tratado e acompanhado. Recitavam-me versos dos mais distintos poetas franceses, antigos e modernos, numa incessante chuva de belas palavras. Presentearam-me livros e mais livros e alguns poemas até consegui decorar. Hoje restam-me apenas fragmentos deles, perdidos nos cantinhos da memória:

Dictes-moy où, n'en quel pays,
est Flora, la belle Romaine?”


Nunca pude esquecer um soneto que todas as noites uma bela parisiense me dizia:

“Quand vous serez bien vieille, au soir à la chandelle,
Assisse aupres du feu, deuidant & filant,
Direz chantant mes verses...”


Em Paris aprendi a ser romântico e, quando me via só, rabiscava versos para a moça com quem me casaria. Chamava-se Aroia. Depois, os padres arranjaram-lhe um nome português: Lucina. Disto, porém, falarei adiante. Quero, agora, recordar versos que escrevi para ela. Alguns deles consegui reter na memória, como estes:

Ah! quantas vezes, quantas! junto dela
Não senti tremer sua mão na minha.
Até um soneto cheguei a compor:
Em seu leito de flores bem deitada,
Palidamente bela e escurecida,
Ela dormia, a minha doce amada,
E sonhava, de tudo esquecida.

Pela maré das águas embalada,
Era a virgem do mar adormecida.
Em maravilhosos sonhos banhada,
Mais parecia um anjo de outra vida.

Como eram aqueles seios belos!
Ah! seus negros olhos me fascinavam.
Ah! suas formas nuas me enlouqueciam.

Não te rias de mim, de meus anelos.
Por ti – vivi noites que me matavam,
E morrerei como os loucos morriam.


Já se foram vinte anos. Meus livros de poetas franceses perderam-se, rasgaram-se, queimaram-se, levaram-nos os ventos fortes de todas as desilusões. Para que conhecer Gérard de Nerval ou Leconte de Lisle, Victor Hugo ou Ronsard, se até os padres que me ensinaram francês me enxotavam? Para que guardar versos, ainda mais cheios de nymphes, amours, spectres, se só me restavam homens duros, ódios e a vida nua e crua? Meu desejo é esquecer o que aprendi e pôr para fora minhas verdadeiras emoções, ser eu mesmo, Bokodori e não Daniel Álvares.

Não me fazem falta François Villon ou Baudelaire, Mallarmé ou Apollinaire. Não sinto saudades da mademoiselle do soneto de todas as noites. Nem sequer lhe recordo o nome. Talvez seja Caroline, Marguerite ou mesmo Jeane D'arc. Se estiver viva, será uma quarentona gorda, cheia de filhos e varizes, e certamente nem se lembrará mais de um selvagem chamado Daniel Álvares, que em 1913 conheceu Paris. Provavelmente também esqueceu os versos do poeta e, à luz da vela, sentada ao pé do fogo, aflita e decadente, contará apenas sua solidão.

Onde andará certo Henri Barrès que também escrevia poesia e me chamava de “bon sauvage”? Apaixonado de Jean-Jacques Rousseau, tudo lhe servia de pretexto para citar seu mestre. Sonhava com viajar ao Brasil e conviver com os índios. Terá se casado com mademoiselle Caroline? Ou vive no Amazonas, com uma silvícola? Talvez seja deputado pelo Parti Socialiste, não faça mais versos e nem se lembre mais do “bon sauvage Bokodori”.

E por que estou eu, neste relato breve e simples, a recordar-me dele, de seu entusiasmo estudantil, e da bela senhorita que declamava sonetos? Por que relembro Paris, poetas franceses, meus 15 anos, ora bolas? Hoje sou de novo apenas um selvagem brasileiro, já quase velho, cão sem dono, professor de inutilidades para meus pobres descendentes, historiador de segunda mão, que um dia acreditou em tudo, inclusive na Beleza da palavra. Je suis. Coitado de mim! Sou apenas um fantasma que se refugia na solidão da natureza. Contra a solidão, porém, nada se pode fazer.

Fonte:
Nilto Maciel. Vasto Abismo. Brasília: Ed. Códice, 1998.

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