quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Nilto Maciel (O Bom Selvagem) 3a. Parte

REGRESSO

Com muito esforço chego aqui. Não foram poucos os momentos em que o desvanecimento me sugeriu deixar de lado essa ideia de escrever sobre mim mesmo. Primeiro porque me reconheço pobre de palavras. Segundo porque meu passado, escrito ou não, não será outro nunca, a menos que eu minta. Terceiro porque não vejo grandes recompensas para mim no fato de contar minha vida.

De outras vezes, porém, tenho sido impelido a dar continuidade à minha obra. Impele-me, por exemplo, a vaidade. Serei um escritor, terei um livro. Além disso, sei da existência de milhares de livros pequenos, ora porque copiam obras maiores, ora porque não traduzem nada de relevante, embora seus autores usem e abusem do vocabulário e não arredem pé da sintaxe. O escritor, não sendo máquina, fatalmente foge aos mecanismos gerais e, errando, realiza aquilo de que só ele é capaz – a invenção. Assim sendo, meu passado ninguém pode modificar, mas eu tenho a plena liberdade de narrá-lo como bem eu entender. Posso ainda imaginá-lo, em vez de resgatá-lo dos labirintos da memória.

Contradigo-me mais uma vez, se disser que poderei ser recompensado, se acaso conseguir fazer do bobo dos salões parisienses-romanos um homem plenamente consciente de si mesmo.

Não me interesso mais por recompensas. Ficarei feliz, no entanto, se meu livro servir para que outros vejam o índio como o portador da cultura vindoura ou, pelo menos, fonte de inspiração para um novo mundo.

E aqui retomo o ímpeto dos primeiros momentos e já não quero relembrar a viagem à Europa. Ainda assim, dentro de meu coração estão todos os lugares onde estive, avenidas de Paris, praças de Roma, o mar, pedaços de minha terra.

Relembro o regresso à Missão. Completava 17 anos de vida e só almejava rever minha formosa Aroia. Voltar ao Boqueirão, rever meus parentes, minha terra, os bichos, o mato.

Fui recebido como herói. Todos me olhavam cheios de curiosidade e me faziam perguntas as mais inocentes. Satisfiz a todos, inclusive com presentes. Um vestido para a irmã, um par de meias para a mãe, isto para fulano, aquilo parra sicrano. E uma carícia sem fim na passada menina Aroia, agora mais bonita, cheia de corpo, feita moça, chamada por todos Lucina.

Aroia mal sabia ler, seus pais e antepassados nunca chegaram a chefes. Nela não havia nada que a distinguisse das outras mocinhas. A mesma cor da pele, os mesmos olhos negros. No entanto, eu a amava desde menino. Atraía-me nela qualquer coisa esquisita – a faceirice do andar, os olhos de mistério, o pecado prometido.

De nada eu podia me queixar e via tudo vivo, belo, colorido. Não havia ainda parado para pensar e nem necessitava disso. Minha vida tinha sido até então um interessante movimento ritmado de alegrias. Como se nunca meu povo tivesse se dividido. Como se jamais um estrangeiro houvesse pisado nossas terras com intenção de tomá-las. Como se fossem apenas um sonho breve – mentirinha de pernas curtas – os acontecimentos que terminaram por fazer de mim a mascote dos europeus.

Como fui egocêntrico! O mundo pegava fogo ao meu redor e eu a me sentir adorado. No entanto, eu próprio me queimava, embora não sentisse na pele o ardor das labaredas, tanto dormia ou parecia morto.

MESTRE-ESCOLA

Nesta terrível noite de insônia relembro o que fiz e podia ter feito na vida.

Há dias nem olho para a História do Brasil e os padres devem estar ansiosos para ver concluído meu trabalho. Talvez me chamem de preguiçoso. Pode pensar todas as hipóteses, padre Tonelli, inclusive que estou reescrevendo o tal livro. Ou mesmo inventando tudo, desde o começo. Na verdade, estou desiludido e decepcionado. E não é de hoje. Por que nossa História deve remontar a antes que o rei Fernando falecesse? Por que nossa História deve ter situados seus primórdios na ocidental praia lusitana? Por que nossa História deve afluir de Leão, Aragão, Navarra e Castela? Na verdade, padre Tonelli, eu queria falar do tempo de Tadugo, Bacororo, Itubori, dos personagens de nossos mitos e nossas lendas. Partir do mato e dos rios do Brasil. Porém, senhores padres, quem escreveu a História do Brasil foram os filhos das Dinastias de Borgonha e Avis, e nós, os primeiros filhos desta terra, nunca escrevemos nada. A História do Brasil engatinhou no estrangeiro. É como se quisessem contar minha vida e começassem assim: “Em 1495 Carlos VIII invadiu a Itália, quando Leonardo da Vinci iniciava a pintura da Última ceia. Quatro anos mais tarde, Miguel Ângelo esculpiu a Pietá. Etc, etc. Aos 15 anos de idade o índio Bokodori visitou Roma e ...”

Não sei dar os motivos dessa “decisão” de relatar minha vida, justamente agora e quando chegava às últimas páginas da tradução que me foi confiada pelos padres. Alguma coisa a motivou, tenho certeza. E por que agora e não antes? Nunca me ocorreu contar minha epopeia, mesmo quando li romances, biografias, diários, memórias. As vidas dos outros sempre me pareceram infinitamente mais maravilhosas do que a minha. Já agora vejo o maravilhoso não mais nas ações heróicas por si mesmas, mas no contexto da narrativa.

Haverá alguma relação entre a decisão de escrever minha história e a tradução que empreendo? Possivelmente sim. Basta constatar que traduzir é também escrever. Copiar, ler são igualmente exercícios intelectuais, de criatividade. Ninguém lê ou copia sem ferir, modificar, recriar o texto lido ou copiado.

Não é essa a relação principal, no entanto. Porque traduzi a Bíblia e não escrevi minha história. A Bíblia é judaica e muito antiga. Já a História do Brasil é portuguesa e brasileira, e eu alcancei a declaração de guerra pelo governo brasileiro aos Impérios Centrais. Eu tinha 19 anos de idade, havia dois com Lucina vivia, e ela se apaixonou por outro.

Esta talvez seja a quarta revolução mais importante na minha vida. Na primeira, quando os padres me descobriram, eu me sentia tão diferente dos meus companheiros que até os via como pequenos animais.

Na segunda, quando conheci a Europa, senti-me diferente e até superior aos europeus. Nada me parecia estranho, como se eu fosse anterior a eles. Aprendi suas línguas e seus costumes, numa rapidez e facilidade fora do comum, como se apenas tivesse vivido alguns anos na selva. Alguns dias.

A terceira revolução em minha vida se deu quando reencontrei Aroia e com ela me casei. Senti-me o único homem capaz de ser dela.

Logo após regressar da Europa, arranjaram-me os padres a função de mestre-escola, na própria colônia. Por isso, a mim chamam professor Daniel. Nos primeiros dias dediquei-me de corpo e alma aos alunos. Ministrava-lhes aulas de aritmética, gramática, geografia, história, religião, tudo, sem deixar de contar episódios de minha viagem e estada nas capitais europeias. O tempo das aulas, porém, parecia-me curto demais. Uma ou duas horas por dia mal davam para ensinar o á-bê-cê. E os meninos não aprendiam nada. Aquilo me chateou e fez perder o gosto pela escola. Preferia caçar ou estar em casa. Sobretudo caçar. Como eu me sentia feliz no mato, feito um bororo! Aquela vidinha parada, sem sentido, me aborrecia. Vigiado o tempo todo pelos padres, tanta reza e besteira, conversa e mais conversa, tudo me mandava de volta ao mato. E, enquanto eu caçava, Aroia me atraiçoava.

O primeiro filho dela não me pertenceu, e ela acabou saindo de casa. Passou a viver com o outro, enquanto eu mais me escondia no mato, já demitido da escola.

Eu não podia viver só, porém. E também deixei nossa casa. Digo nossa porque esta casa não é minha, é dos ventos e da chuva, do sol e da poeira.

No Boqueirão havia muitas mulheres e nunca estive solteiro. Ora, o mato me dava caça a qualquer hora e o mundo andava cheio de mulheres. Para que lamentar o pecado (como diziam os padres) de Lucina? O que quiser a vontade, quanto desejar o corpo, tudo seja feito. Assim tenho passado.

Nessa época já ia bem adiantada a História do Brasil e só se falava em guerra. Mas eu não queria saber de nada disso. Guerra maior eu vivia. Talvez esteja aqui a razão por que deixei a tradução justamente nesse ponto. Que a História do Brasil espere por mim. Eu sou mais importante. Vou contar primeiro a história de Bokodori. Ou do professor Daniel Álvares.

METEOROLOGISTA

Para não perder o fio da meada, tive de reler todo o meu manuscrito. Minha pretensão é escrever sempre em linha reta. Nada de zigzags. Basta de desordem. Também não é só questão de encadeamento. Pois se eu não tivesse o cuidado de passar uma vista nessa gaforina, talvez narrasse agora um capítulo mais adiantado de minha vida ou recontasse a viagem à Europa.

Nesses dias andei muito em pensamentos e recordei seguidas vezes todo o meu caminhar pela terra. Às vezes emaranhava tudo, passando da infância imediatamente para hoje, por associação de ideias. Ou partia de um fato mais recente para um quase esquecido, de tão distante no tempo. Cheguei a enxertar, em fatos vividos, momentos imaginados ou desejados. Se eu escrevesse tal qual pensei, ninguém me entenderia.

Ando tão desatinado que não posso repousar direito. De noite quase não durmo e de dia é essa inquietação.

Eu falava da traição de Aroia e contive as palavras. Naquele dia eu não me sentia disposto a entrar em detalhes. Não queria incriminar minha mulher e muito menos perder-me em lamentações. Pensei mesmo em não tocar no assunto, esquecê-lo, como venho fazendo com outros. Porém, ele é fundamental para mim. Talvez até eu me descubra mais, se conseguir passá-lo a limpo.

Escrever isto tem sido uma descoberta de mim mesmo, como se eu fosse um animal enterrado e aos poucos me livrasse do peso do mundo, me limpasse da lama que me cobre. Conhecer-se é limpar-se, aperfeiçoar-se, purificar-se.

Agora meu desejo é outro. Não mais o de culpar Lucina. Porque ainda vivemos juntos e temos nossos filhos. Além disso, não durou muito nossa separação. Porém, o grande arquiteto da volta dela foi padre Pittini.

Quais os motivos desse empenho dele? Talvez por me conhecer desde menino e me considerar seu filho e protegido. Ou queria evitar a propagação de hábitos anárquicos na Missão? Ora, sua religião condena tais práticas.

Para selar mais eficazmente sua diplomacia, padre Pittini não voltou a me falar da escola e me propôs uma outra ocupação – a de cuidar do observatório meteorológico. Noções de meteorologia não me faltavam e eu até gostava de prever o tempo, por minha conta. De qualquer forma, li alguns manuais sobre o assunto e, aos poucos, me familiarizei com os termos técnicos e usuais daquela ciência: névoa, cerração, garoa, chuva, granizo, trovoada, vento calmo, frente fria, etc. E lá me pus a observar o céu e fazer anotações no quadro sinótico. Daniel Álvares, previsor do tempo. Quando chovia no meu sonho, ao meu redor caíam trombas-d'água e eu acordava sobressaltado.

Aquilo cedo me cansou e, às vésperas de bom tempo, debaixo de um céu avermelhado, corri ao padre e entreguei-lhe meu posto. No dia seguinte peguei da enxada e fui cuidar da terra. Mais me valiam os pés no chão do que os olhos no céu. No entanto, assim não pensavam os padres. Viviam a me chamar de volta ao observatório. Nunca haviam encontrado meteorologista tão bom. Porque até sem ajuda dos aparelhos eu sabia da chuva que iria cair. E, se eu servia tanto para prever o tempo, por que me chamaram de preguiçoso, quando fiz a proposta de pagamento?

– Você pede muito dinheiro porque não quer trabalhar – disseram.

Continuei a arar a terra. Porque me servia. Eu me sentia mais bororo, como sou.

ÍNDIO DE NOVO

Estou cansado. Não sei, porém, de que estou cansado. Talvez disso, talvez daquilo. Mas não me importa saber por que estou cansado, pois de qualquer forma estarei cansado. Ou não é cansaço o que sinto? Não será outra coisa?

Hoje padre Tonelli perguntou como ia a tradução. Pedi mais um tempinho. Ele mostrou compreensão. Não vou deixar inconcluso meu trabalho, até porque a minha história não vai muito longe. Já narrei meus vinte primeiros anos, mais da metade do tempo vivido. E não quero misturar uma coisa com outra. Eu poderia começar em Delfim Moreira e terminar em mim, ou partir da gripe espanhola e chegar à minha experiência meteorológica. Talvez até escrevesse um bom romance. Mas, se o fizesse, ou esqueceria Epitácio Pessoa ou meu romance teria um capítulo inteiramente político. Porque nada de relevante ocorreu comigo nesse tempo. Todo ele eu dediquei à vida de lavrador, até conseguir tornar a ser um autêntico bororo.

Chamaram-me de burro porque voltei a ser índio. Pode ser burro um índio que aprendeu línguas cultas, como o francês? Talvez ser inteligente para eles signifique ser burguês. Mas eu fui burguês, convivi no meio da burguesia, habitei os burgos mais exemplares, como Paris e Roma. Poderão dizer ainda terem sido os brancos, os padres e os burgueses que me fizeram inteligente. Não posso negar: aprendi o francês com eles. No entanto, quem aprendeu fui eu. E aceitei aprender. Dispus-me a aprender. Quis aprender. Portanto, sou inteligente, sem deixar de ser índio, miserável e camponês.

Aos poucos, esquecia-me dos hábitos adquiridos junto aos padres e demais brancos. Só de vez em quando visitava padre Pittini, a seu convite. Retirava do cesto calça e camisa, recordava palavras cristãs e rumava para a sede da Missão. Ele me fazia as mesmas perguntas de sempre, se eu não havia esquecido de rezar, se louvara a Deus e a Santa Mãe Igreja, se vivia em paz com Dona Lucina e os filhos, se isso mais aquilo. Oferecia-me café com pão, sentados à mesa, rezávamos de novo e eu voltava para ser Bokodori no meio do mato. E nem sabia de plantio de café, de secas no Nordeste e de uma tal Semana da Arte Moderna.

Talvez eu já não fosse mais índio, apesar de viver no mato. Quem sabe a Europa me havia transformado em português. Ou os padres e seus ensinamentos. E eu passei a frequentar mais assiduamente a casa dos padres, mesmo sem convite. Já quase não tirava a calça e a camisa do corpo. Já dava bom-dia a Aroia e a chamava novamente de Lucina. Sonhava mais uma vez com navios, observatórios e talheres.

Ia eu, assim, passo a passo, ao encontro do esquecido Daniel Álvares, quando a Ordem resolveu substituir o padre Pittini por outro na direção da Missão. A notícia não me agradou. Eu gostava daquele cristão, que sabia me cativar com palavras, gestos, sorrisos. Apesar disso, sentia-me impelido cada vez mais ao convívio com os padres e os brancos de uma maneira geral.

Fiz uma visita ao novo diretor. Achei-o um tanto sério e calado. Talvez se sentisse cansado da viagem. Nos seguintes dias, como de costume, entrei para o refeitório, tomei café, conversei, perambulei. E jamais pude esquecer o que me fez o tal padre. Ofensa grave, meus filhos e meus leitores. Como se eu fosse um selvagem que de repente invadisse sua casa. Um malfeitor, um inimigo dele e de todos os padres. Um desconhecido, um forasteiro de hábitos e língua estranhos. Um cão dos infernos que viesse para atormentá-lo. Maldito padre Grottanelli!

De início, não percebi nada, embora, a seguir, pudesse ver com clareza tudo. À boa fé, não sei como aquilo aconteceu. Eu me aproximava da casa e, de longe, avistei o diretor. Ele também me viu e correu a fechar a porta. Não me lembro de ter maldado nada na ocasião. Talvez entrasse poeira na sala e o bom padre quisesse evitar trabalho. Podia não ter percebido minha aproximação. E, mesmo que tivesse, talvez não quisesse me ofender. Por isso não me ofendi. Com o mesmo espírito, dirigi-me à porta do lado. Possivelmente lá estaria ele, o santo padre, a me esperar de braços abertos e sorriso bondoso. E estava, de fato. Braços abertos, sim, porém para fechar-me também a segunda porta. Para me negar uma xícara de café e sua própria companhia. Café que me ensinaram a beber e cristianismo que me ensinaram a viver.

Cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo, tende piedade de mim e fazei com que a esperança volte a me habitar.

É muito tarde já. Lucina e os meninos dormem. Não sinto sono. Apenas vontade de andar, cansar o corpo, esquecer certas passagens de minha vida.

E nunca ter ódio de ninguém.

Fonte:
Nilto Maciel. Vasto Abismo. Brasília: Ed. Códice, 1998.

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