sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Contemporâneos do Clã – Geraldo Mello Mourão

Gerardo Mello Mourão (Ipueiras, 1917 - Rio de Janeiro, 2007), romancista, poeta, contista, ensaísta, tradutor e jornalista, estreou em livro com Poesia do homem só, 1938. Seu primeiro romance foi O Valete de Espadas, 1960. No gênero conto publicou, em 1979, Piero Della Francesca ou As Vizinhas Chilenas, constituído de 19 narrativas. Recebeu o Prêmio Mário de Andrade, da Associação Paulista de Críticos de Arte, em 1972. É tido como um dos principais poetas brasileiros

Não há nele nenhuma semelhança com outros contistas cearenses, quer pela estrutura de suas peças, quer pelo espaço geográfico dos enredos. Excetuando os transgressores do gênero (os que aboliram episódio ou enredo), a maioria dos cultores da história curta no Ceará dá ênfase à movimentação episódica e situa as histórias nos sertões, nas serras, no litoral, em pequenas cidades e em Fortaleza, embora nem sempre de forma explícita. Mourão prefere o relato em primeira pessoa, com certo sabor de crônica. O narrador, em algumas composições, é apenas testemunha, embora não se desvie do ponto de vista onisciente, isto é, mesmo não tendo presenciado determinados atos (de alcova, por exemplo), manipula a narração como se protagonista fora. Por outro lado, o contista foi buscar em países da América espanhola os seres fictícios para compor algumas narrativas. Mas há também, mesmo em pequena escala, o ambiente e personagens nordestinos, como em “O Herege”. Em “Réquiem por um testa de ferro” o narrador se refere, em diversos trechos, ao Estado de Alagoas. Entretanto, os protagonistas são Mr. Lademakers, holandês, e Mariano Figueroa, colombiano.

Uma das composições mais enigmáticas nada tem de nordestino ou hispano-americano: Winston Spencer Churchill, o narrador de “English Réquiem”, moribundo (“Venho agonizando lentamente há vários dias”...), faz confidências sobre certo momento da História mundial e seus personagens principais. Trata-se do último e único escrito do fictício Churchill.

Mourão dá preferência ao conto em primeira pessoa, parente próximo da crônica. Mas nem só de relatos à maneira de Jorge Luis Borges é composto Piero Della Francesca ou As Vizinhas Chilenas. Em “Procusto” o mito grego é recriado, de forma concisa. “A Ponte” é uma parábola, sem seres fictícios. Também o leitor pode ver na ponte o protagonista ou o próprio núcleo da história. Em “A Regra do Jogo” o personagem central é um jogador de baralho e xadrez. Durante quase toda a narração, que é curta, o narrador é somente testemunha. As ações são do jogador, sem nome explícito. No desfecho, o narrador se transforma em ser de ficção, embora sem importância: “Atualmente, frequenta comigo um professor italiano de espada, florete e sabre”. O narrador de “A Caminho de Susana” é um escritor. Susana (o ser fictício imaginário) é uma metáfora (o ser buscado, o outro, “a mais bela das mulheres”). Em “O Tédio Celestial” a estrutura é de crônica-crítica. Não há propriamente um protagonista, embora o astronauta em viagem pelo espaço seja o único ser em ação: “Comprou um pequeno livro e o escondeu ali (numa pequena bolsa)”; “Começou a ler”. Com feição de alegoria ou de ficção científica é “O Plano Quinquenal”: isolamento e transplante de uma enzima. Quanto mais biocromos tivesse uma pessoa, mais anos de vida teria. Como complemento deste é “O Falanstério”, narrado em primeira pessoa, embora não se saiba de quem se trata. Nele também não há protagonista. Os personagens se mostram imprecisos, opacos. São apenas “os rapazes de Buenos Aires” ou o Falanstério. Sátira da sociedade de consumo, do capitalismo. A science-fiction é mero pretexto para satirizar os ricos ou o capitalismo. Oferecem dinheiro aos rapazes em troca de seus biocromos. Semelhante a este é “A Empresa”.

Peça singular do livro é “Com uma carta na mão”. Narrado, em forma de diário, por uma adolescente, o conto se afasta da forma do relato-crônica e apresenta um enfoque individual e não mais social e político. Dividido em três partes, o diário vai, aos poucos, conduzindo o leitor para um desenlace inesperado. A primeira data de 1935. A jovem Rita se lastima da solidão em que vive e dos reclamos da tia Lola: “– Menina, sai da janela!” Seu maior “desejo é apenas receber um dia uma carta”. Como isto não acontecia, passou a ler romances. A segunda parte do diário tem início em março de 1945. Rita, então com trinta e dois anos, continua à janela do velho casarão amarelo e a sonhar com uma carta. Como isto não acontecia, decidiu escrever cartas. A última parte do manuscrito é de 1947 e Lola trabalha nos Correios. Um dia abre um envelope: trata-se de carta de um homem, Emílio, para sua mulher, Abigail. Fala da ideia de suicídio dela e marca encontro, na esquina do Municipal, para reconciliação. O desfecho é patético: “... fiquei parada na esquina, olhando para todos, pálida, pálida, com uma carta na mão”.

O primeiro dos relatos hispano-americanos é “O Ópio do Povo”. A feição dele é de crônica de um episódio. O narrador fala de si, muito vagamente, por ser o cronista e não o personagem central, que é o padre Camilo Torres, revolucionário colombiano. Em “A Morte do Prefeito Boliviano” o narrador pode ser confundido com o próprio escritor: “Chegado do Nordeste do Brasil, criado na palha de cana dos engenhos em que os Mourões fabricavam a rapadura serrana (...)” O protagonista, no entanto, é o menino Juan, depois Juan Martinez Barceló, político boliviano. Em “Bodas de Eyquem” o espaço é chileno. Em “As Quatro ou Cinco Mortes de D. Nicanor” mais uma vez o narrador não revela o nome e deixa no leitor a hipótese de ser o próprio Gerardo: (...) “meu parente José Mourão, bandoleiro famanaz e capitão da Renascença em pleno sertão do Ceará”. Conjetura logo anulada, com a narração da última morte de Nicanor, o personagem principal, o boliviano Nicanor Bernal Gómez. O Nordeste reaparece em “Não Há Deus”, na figura do coronel Salustiano, natural de Palmares, Pernambuco, e do caboclo Amarolino. Como em outras composições, o protagonista é latino-americano: Pepe Vial, chileno, possuidor de vasta cultura teológica. “O Coronel Paraguaio” é relato de feição heroica.

O conto que dá título à coleção pode ser visto como peça antológica. Deixando de lado a faceta heroica dos protagonistas, neste o contista se volta para o erotismo. O narrador onisciente é apenas testemunha de certo momento na vida de Raimundo Pessoa, deputado federal nos idos de 1964, em refúgio no Chile. Poderia não ser testemunha, não fossem duas ou três frases: “Não cheguei a conhecer a mulher do corneado, nem tenho qualquer elemento para julgar de sua reputação” (...) Todo o enredo gira em torno da figura de Rosa Maria Bandera, uma das vizinhas de Pessoa, até o desfecho.

A linguagem de Gerardo Mello Mourão em Piero Della Francesca ou As Vizinhas Chilenas se calca, sobretudo, na narração de fatos, com alguma ênfase na observação de determinados períodos da História do Brasil e da América Latina. As descrições são mínimas, mesmo quando o relato se foca no estrangeiro. Se há alguma prolixidade, deve-se ela à necessidade da narrativa ou à maneira de ser dos hispano-americanos. O narrador de “Réquiem por um testa de ferro” chega a afirmar: “Prolixos na guerra, os colombianos também o são em suas narrativas, como meu amigo Gabriel Garcia Márquez e o pessoal de Macondo, em geral”. Diríamos: os narradores de Mourão são prolixos porque conviveram com colombianos e seus vizinhos. Os diálogos (as falas) são mínimos, dando lugar, às vezes, ao discurso indireto: “Falou-lhe longamente do amor”. Não se veem aqueles infindáveis e monótonos diálogos artificiais. Vê-se, pelo contrário, a frase bem elaborada, mas sem floreios, capaz de dar ao leitor o prazer de ler palavra por palavra, frase por frase: “Rolaram na calçada fria, ao clamor dolorido, à delícia cruel das garras curvas, à faísca dos olhos coruscantes. Era o amor”. É a arte literária de Gerardo Mello Mourão em relatos de muita sedução.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

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