terça-feira, 17 de setembro de 2013

Célio Simões * (O Extraordinário Miguel Venâncio)

  
  Quando definitivamente passei a residir em Belém, o Miguel era um atleta de futebol, mas ainda não havia sido promovido a rei. Contentava-se nos desfiles de sete de setembro com o título de imperador, réplica improvisada de Dom Pedro I, aquele um que às margens do tal riacho Ipiranga, mais estreito que o córrego do Curuçambá ou do Irurá, desembainhou a espada e proclamou a independência do Brasil, tantos eram os abusos da Corte Portuguesa contra suas colônias, num processo predatório que se ao mesmo tempo garantiu a integridade do território nacional, por outro lado carregou para Lisboa e de lá direto para a Inglaterra, grande parte das nossas reservas auríferas, ainda por cima esmagando o povo com impostos escorchantes. Vem de lá, penso eu, nossa sobrecarga tributária, uma das mais desumanas do mundo. Sorte que não descobriram Serra Pelada ou as minas de Carajás, caso contrário, o sacrifício de Tiradentes teria sido um gesto inútil.

    Inexistia e aí falo do tempo que morei na Cidade Presépio, um único evento que não contasse com a participação do Miguel Venâncio, devidamente caracterizado, a compatibilizar a personagem com a comemoração. Se na data magna da nacionalidade, lá vinha ele cavalgando seu ginete, encarnando nosso libertador político. Se no carnaval do mascarado fobó, preferia trajar-se de Zorro, capa preta, máscara e espada reluzente, a duelar ao som das marchinhas com seu amistoso antagonista, o excelente zagueiro do Paraense Esporte Clube cujo apelido – Canela de Vidro – dá bem uma ideia de quanto sofriam os atacantes adversários em uma peleja no antigo Estádio General Rego Barros.

    Guardadas as devidas proporções, Miguel me lembra um sujeito que morava em Marabá quando lá trabalhei no ano de 1969. O nome o tempo apagou. Suas presepadas não. Nas festas juninas, era o mais animado nas “quadrilhas”, nas quais rebolava vestido de mulher, braço dado com seu cavalheiro, ambos em trajes caipiras. No carnaval, instalava-se principescamente sobre um carro alegórico, com indumentária e adereços que lembravam Clóvis Bornay; na pungente “Procissão do Encontro”, que marca o ápice da Semana Santa, lá estava ele pregado na cruz, coroa de espinhos na cabeça, sangue de mentirinha escorrendo dos ferros cravados nos pés, mãos e do golpe na costela, fazendo o papel de Jesus Cristo. Alfaiate habilidoso, produzia suas próprias vestimentas e adereços. Era fato público sua excentricidade, aspecto que não lhe empanava a criatividade, justo porque o talento e a arte independem de orientação sexual.

    O Venâncio, todos o sabem, jogava no time dos aprimoradores da eugenia masculina, mesmo quando pulava o carnaval vestido de baiana. Ademais, suas personagens e modo de vida assim o demonstravam. Dos que anualmente se entregavam à folia na antiga Praça do Quartel, onde os blocos explodem em animação num dos mais badalados carnavais do interior paraense, sempre ele caprichava nas fantasias e se destacava nos desfiles encantando platéias embasbacadas com seu vigor físico, conquanto já tivesse ultrapassado os setenta anos. E se o cortejo extravasa os limites da praça para exibir-se pela cidade, lá ia o lépido setentão subindo as ladeiras da velha Pauxis, como um adolescente ainda na flor da juventude.

    Incentivado para sobre ele escrever, fiquei inicialmente sem elementos factuais para fazê-lo, buscando na memória as magníficas performances nas efemérides em que testemunhei seu desempenho. Salvo engano, além de vigoroso futebolista, que atuava no gramado com o calção amarrado um palmo acima do estômago, sempre foi pessoa pacífica, cordata, gente fina, simpática a seus conterrâneos em especial pelo seu inegável carisma. Seus momentos de hostilidade ele os guardava para os duelos de faz-de-conta que antes me reportei e destes não admitia sair derrotado; na quadra carnavalesca, qualquer que seja o antagonista ele os enfrentava de forma destemida, em implacáveis batalhas de confetes, propiciando shows que definitivamente o elevaram ao patamar de grande figura popular.

    Em 2008 tive uma grata surpresa e constatei seu especial pendor para viver de bem com a vida. Festa de Sant´Ana dia 26 de Julho, cliper da praça botando gente pelo ladrão, após a gritaria infernal do leilão teve início o arrasta-pé no acanhado espaço reservado a essa finalidade. Vi pares conhecidos, outros nem tanto, caboclo de Oriximiná dançando como se estivesse no mafuá do “Macaxeira” e lá pelas tantas surgiu o Miguel Venâncio. Pávulo, sestroso e pândego, materializou-se dançando sozinho. Mas sua dança não era algo comum, como estamos acostumados a ver. O Miguel dançava com ele mesmo, inventava passos que desafiavam o equilíbrio corporal, transmudava sua imagem em moldura superposta que dele se libertava para petrificar-se longe do dono e a ele retornava em fraterna união entre criador e criatura. Sua postura rítmica dava aos movimentos que inventava um significado estético de perenidade, em continuada comunhão com a música, pernas trançadas em incrível geometria, olhar de conquistador, chamando para esse jogo de habilidades sua parceira, uma senhora que atendia aos compassos da música com a mesma disposição com que ingeria generosas doses da “água que passarinho não bebe”, até tombar derreada no duro piso do salão sob o avantajado peso do corpo. Um show à parte!

Em homenagem a Momo, o Miguel protagonizou várias personalidades, dentro do escorreito feitio de sua fértil imaginação. Não só da história universal, como daquelas diretamente ligados à conquista da Amazônia e do Rio Amazonas, que ele se ufanava de haver nascido às margens e conhecer como poucos.

Já se trajara de Vasco da Gama e de Francisco de Orelana. Alguém lhe disse que este foi companheiro dos Pizarro, que representando os espanhóis conquistaram o Peru pelo Oceano Pacífico, assenhoreando-se da planície por força do tratado de Tordesilhas, chegando a Quito e de lá até a Europa, dando nome ao grande rio. Também de Pedro Teixeira, que fez o trajeto em sentido contrário, do Atlântico até os Andes, plantando nos pontos estratégicos do grande rio os fortes para a defesa do território, misturando fortalezas militares com missões religiosas, traçando definitivamente na Amazônia o contorno lusitano, aceito como fato consumado após a separação das coroas ibéricas, formalizada no século XVIII pelo princípio do uti possidetis, nos tratados de Madri e Santo Ildefonso. Isto sem esquecer de Raposo Tavares, com seu imenso chapéu por ele mesmo confeccionado, esse admirável bandeirante que partindo de São Paulo pelo planalto central, subiu os vales dos rios Paraná e Paraguai, atingiu o Amazonas navegando o Rio Madeira, tendo como destino a cidade de Gurupá, antecipando-se em 250 anos à mesma trajetória feita pelo General Cândido Rondon. Miguel, pelas condições financeiras modestíssima em que viveu, nunca incursionou pelos livros de História. Apenas ouvia as estórias. 

    Sua imaginação era espantosa para sua baixa escolaridade. Dizem que sua pesquisa, aleatória e superficial, era realizada durante o ano todo, em opiniões de amigos, livros e revistas emprestados, a partir dos quais decidia como seria sua fantasia no carnaval do ano subseqüente. Orelana, os Pizarro, Pedro Teixeira, Raposo Tavares, Rondon qualquer desses andarilhos incomparáveis, o que interessava mesmo era o deleite de cada comemoração onde pontificava sua imaginação delirante e seu espírito inovador. Carpinteiro por profissão, seresteiro, exímio tocador de banjo, daqueles que não enjeitava uma roda de samba, na verdade eu o reputava um artista popular de muitos méritos, que a todos encantava com suas performances, enquanto seguia extraindo da vida o que ela tinha de melhor - a construção de um largo círculo de admiradores, que dele virou público cativo por aquele hábil sapateado festeiro cuja extravagância mereceu do compositor paraense Eduardo Dias expressa referência numa de suas excelentes músicas.   

    Na folia de 2009 o Miguel novamente abrilhantou os blocos de rua em que desfilou. Restou inconteste sua habilidade na produção da própria fantasia, se é que ele próprio não viveu num mundo de fantasia, só existente nos recônditos de sua imaginação. Não há como negar que à sua maneira, com seu jeito especial no apogeu dos seus setenta anos, esse inteligente ribeirinho nos propiciava uma lição de muito proveito. Protagonista de sua própria existência, ele levou a vida como brincava o carnaval e brincava o carnaval como levou a vida: com leveza, criatividade, descontração e felicidade - nem aí para os que se arvoram a criticá-lo.

    Finalmente, o Miguel Venâncio nos deixou. Sujeito teimoso, recusou-se a se submeter a uma prosaica cirurgia para curar-se de uma hérnia. A par do meu profundo lamento, sinto na alma o conforto de tê-lo condecorado ainda em vida, em Julho/2010, com a Medalha “Cidade Presépio”, da Academia de Letras de Óbidos (quando eu a presidia), troféu destinado a premiar os filhos da terra que contribuíram para a preservação e o resgate do folclore e das tradições culturais do nosso Município, o que ele fez a vida toda. Na sessão solene de entrega, vi seus olhos brilharem de felicidade. Agradeceu-me comovido, dizendo que guardaria a preciosa láurea para mostrar aos parentes, netos e bisnetos, confessando-me ser o primeiro e único reconhecimento oficial que recebera durante toda sua existência. 

    Ficamos sem Miguel Venâncio. E o samba, o lundu, a desfeiteira, as serestas, os folguedos juninos e o carnaval, sem o extraordinário protagonista que hoje deve estar empenhado em animar o suave ambiente da corte celeste, pois na terra não fez outra coisa enquanto viveu.
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(*) Advogado. Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós (IGTap) e da Academia Paraense de Jornalismo.


Fonte:
Texto enviado pelo autor

Delcy Canalles (Monólogo da Desintegração)

Sempre disseste que és meu amigo
E  que entendes
esta  imensa  tristeza ,
que  trago  comigo ...
Talvez, por isto, eu sinta, hoje,
esta  necessidade  estranha ,
esta  necessidade  tamanha
de  falar  contigo,
de  dialogar ,
desabafar  ,
de  explodir,
de  chorar !
E é em meio a este desespero,
que  eu  quero,
que eu  espero,
que  eu imploro,
quase  em choro,
que  me  ouças ,
que compreendas,
que  escutes
e  que  entendas
esta  catarse sem peias ,
que eu sinto correr nas veias,
buscando  liberação,
para esta angústia incontida,
para esta  tristeza  sentida ,
que oprime meu coração !
Tu, que estudaste o átomo,
em  sua  contextura ,
elementos, dimensão,
ajuda-me a descobrir a essência
_qual  estudioso  da  ciência _
do que é desintegração!
Não da matéria bruta, inanimada,
mas da matéria viva,
 orgânica, humanizada!
Não podes me ajudar?
Eu já sabia!
Eu sentia! Eu temia! Eu previa!
É que as leis ,que os cientistas formularam,
se  aplicam à matéria  inerte, fria!
Por isso, tens de calar!
Mas eu não. Eu quero falar!
Quero contar-te, agora,o meu exemplo,
como se eu me confessasse, a  ti ,
num grandioso e extraordinário templo,
onde serias tu , amigo , o confessor ,
e  eu , aquele que busca ,
busca , em ti , um consolo pra dor!
Imagina um ser humano machucado pela vida,
arranhado  pelo destino ,
violentado em sua própria alma,
afastado da pessoa que mais ama,
privado de descanso, paz, sossego e calma!
E se isso, meu amigo, não  bastasse,
jogassem , contra ele , uma bomba fantástica,
da  maneira mais drástica,
como aquela que abateu Hiroshima
e, não ,apenas, matou,
mas destruiu, desintegrou,
tornou aquela terra, dantes,tão povoada,
um  vazio de vidas ,
um deserto  de nadas!
Tu ris ? – Eu  acabo de ver!
E  tens razão de rir,
pois não chegaste a entender
o que eu quis te dizer !
E, então , como tu, eu também rio:
Ah !  Ah ! Ah !
Mas o meu riso é triste,é desolado,
é um riso nervoso, é um riso aparvalhado,
é um riso falso de tristeza e dor!
É um mecanismo. Entendes ?
De  defesa !
É formação  reativa
do meu estado  interior !
Tu choras , amigo  meu ?
Choremos juntos , então.
Enfim , tu compreendeste
o que é  desintegração !
Esse  alguém , de triste  fado,
que um dia,
há muito , nasceu !
Hoje, desintegrado,
ainda  existe :
– Sou  Eu !!!

Fonte:
http://www.delcy.poeta.ws/

Bernardo Guimarães (Poemas Humorísticos e Irônicos : Ao Cigarro)

Canção

Cigarro, minhas delícias,
Quem de ti não gostará?
Depois do café, ou chá,
Há nada mais saboroso
Que um cigarro de Campinas
De fino fumo cheiroso?

Cigarro, quanto és ditoso!
Já reinas em todo mundo,
E esse teu vapor jucundo
Por toda parte esvoaça.
Até as moças bonitas
Já te fumam por chalaça!...

Sim; — já por dedos de neve
Posto entre lábios de rosa,
Em gentil boca mimosa
Tu te ostentas com vaidade.
Que sorte digna de inveja!
Que pura felicidade!

Anália, se de teus lábios
Desprendes subtil fumaça,
Ah! tu redobras de graça,
Nem sabes que encantos tens.
À invenção do cigarro
Tu deves dar parabéns.

Qual caçoula de rubim
Exalando âmbar celeste,
Tua boca se reveste
Do mais primoroso chiste.

A tão sedutoras graças
Nenhum coração resiste.

Embora tenha o charuto
Dos fidalgos a afeição,
E do conde ou do barão
Seja embora o favorito;
Mas o querido do povo
Ës tu só, meu cigarrito.

Quem pode ver sem desgosto,
Esse charuto tão grosso,
Esse feio e negro troço
Nos lábios da formosura?...
É uma profanação,
Que o bom gosto não atura.

Mas um cigarrinho chique,
Alvo, mimoso e faceiro,
A um rostinho fagueiro
Dá realce encantador.
É incenso que vapora
Sobre os altares de amor.

O cachimbo oriental
Também nos dá seus regalos;
Porém nos beiços faz calos,
E nos faz a boca torta.
De tais canudos o peso
Não sei como se suporta!...

Deixemos lá o grão-turco
No tapete acocorado
Com seu cachimbo danado
Encher as barbas de sarro.
Quanto a nós, ó meus amigos,
Fumemos nosso cigarro.

Cigarro, minhas delícias,
Quem de ti não gostará?
Certo no mundo não há
Quem negue tuas vantagens.
Todos às tuas virtudes
Rendem cultos e homenagens.

És do bronco sertanejo
Infalível companheiro;
E ao cansado caminheiro
Tu és no pouso o regalo;
Em sua rede deitado
Tu sabes adormentá-lo.

Tu não fazes distinção,
És do plebeu e do nobre,
És do rico e és do pobre,
És da roça e da cidade.
Em toda a extensão professas
O direito de igualdade.

Vem pois, ó meu bom amigo,
Cigarro, minhas delícias;
Nestas horas tão propícias
Vem dar-me tuas fumaças.
Dá-mas em troco deste hino,
Que fiz-te em ação de graças.

Rio de Janeiro, 1864

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 41

CAPÍTULO XVI

No dia seguinte, ela procurou de novo o marido para saber se ele estava ou não disposto a tomar qualquer deliberação a respeito dos negócios do Aguiar.

Teobaldo respondeu já meio impacientado:

– Que o deixassem em paz e não o estivessem apoquentando com tolices! Já bastante tinha com que se aborrecer e não era pouco! A mulher, se queria ser atendida, que diabo! Dissesse a razão que levava a semelhante exigência e, se não estava resolvida a desembuchar, que não lhe desse mais uma palavra sobre o tal assunto!

Branca, todavia, hesitou ainda. Seu espírito, aliás tão forte para entestar com outras provações, seu espírito orgulhoso e sempre vencedor, quando abria luta contra a bestialidade da carne, acobardava-se agora defronte da hipótese de um escândalo social.

— Um escândalo! Que horror!

Não podia conformar-se com a idéia de que seu nome fosse correr as ruas, de boca em boca, despertando em uns a curiosidade e o direito de desejá-la também e em outros a simples vontade de rir; não podia aceitar enfim que um fato de sua vida caísse no domínio público e servisse de divertimento à multidão, igualando-a com qualquer artista tapageuse ou com qualquer meretriz de espavento, que precisa do escândalo para não ser esquecida.

Via-se entalada por um dilema, cuja saída havia de ser fatalmente escandalosa, porque das duas uma: ou tudo confessava ao marido e a questão daria um escândalo doméstico; ou deixava que a vingança do Aguiar corresse à revelia e neste caso o escândalo teria um caráter todo comercial. Preferia o último. Mas desde então terrível sobressalto apoderou-se dela e começou a crescer à proporção que os dias se passavam; afinal era já um martírio de todo o instante urna agonia sem tréguas, que lhe não deixava um momento de repouso.

Nesta conjuntura lembrou-se de André e resolveu contar-lhe tudo. E tal idéia lhe chamou logo aos lábios um suspiro, como se ela, só por si, fora já uma consolação completa. Entretanto, não podia a pobre senhora explicar qual era o estranho motivo dessa confiança que lhe inspirava o Coruja.

— Que mais podia esperar dele, além de conselho ou algumas palavras de animação? O fato, porém, é que Branca só com a idéia de lhe confiar aquilo que ela não quis confiar ao marido, sentiu-se menos oprimida e mais sobranceira ao perigo.

Uma inexplicável esperança, uma espécie de fé a arrastava para junto daquele homem honrado, daquele anjo de bondade que sempre encontrava meios de proteger todo o infeliz que ia procurar abrigo à sombra das suas asas.

Havia um quer que seja de religioso naquela confiança de Branca por André; ela esperava dele a proteção como os crentes quando se dirigem a Deus, sem mesmo indagar quais os meios que este empregará para isso. E, nesta ilusão, tinha de si para si que chegaria ao Coruja tão facilmente como uma devota supõe chegar ao objeto de sua crença; mas, uma vez ao lado dele, sentiu-se vazia, sem encontrar o que dizer, sem uma palavra para principiar.

André estranhou-a e quedou-se igualmente mudo.

Houve um silêncio, durante o qual Branca de olhos baixos; torcia e distorcia o debrum de seu casaquinho de musselina preta, ao passo que ele, sem se animar a encará-la, olhava para os lados, meneando o corpo da direita para a esquerda.

— A senhora, se não me engano, balbuciou afinal o pobre André, creio que disse ter alguma coisa a comunicar-me. Não é exato?

É exato... Fez Branca, tornando-se ainda mais pálida.

— Pois então...

— Mas é que...

— Tenha a bondade de falar com franqueza...

— Sim, eu, ouça-me... Eu...

E ela não achava ânimo.

— Então!

— Vai ouvir tudo. Aguiar, sabe?...

— Seu primo?

— Sim; o Aguiar tem procurado todos os meios de me seduzir.

André sorriu lividamente. Ela acrescentou:

— Não me deixa há muito tempo, e, se bem que nenhum perigo houvesse nisso até agora, porque sou bastante honesta e virtuosa para não temê-lo... Receio todavia quê...

— Quê?...

— Que ele, aproveitando-se das nossas circunstâncias atuais, se lembre de fazer-nos alguma maldade...

— Mas como?

— Ora! Ele é credor de Teobaldo.

— Oh! É impossível, porém, que aquele rapaz leve a esse ponto semelhante perseguição. Não creio que haja no mundo um homem capaz disso!

— É porque supõe os outros por si.

— E Teobaldo? Que diz ele a respeito disto?

— Nada, porque nada sabe.

— Pois a senhora não lhe contou tudo?

— Não.

— Por quê?

— Receando um escândalo.

— Ah! E o que tenciona fazer agora?

— Não sei, e é isso justamente que eu desejo ouvir de sua boca. O senhor, como o modelo dos homens honestos, deve saber aconselhar-me, dirigir os meus passos. Quero evitar um escândalo e quero conservar-me imaculada; diga-me: o que compete fazer?

— Mas...

— Oh! Não hesite por amor de Deus! É impossível que o senhor não tenha uma boa resposta para me dar. É impossível que o senhor, tão bom, tão amigo dos outros, não encontre meio de me valer, quando eu venho pedir o seu auxílio.

Coruja não respondeu e pôs-se a coçar a cabeça.

— Então? Disse ela. Vamos, fale. Diga-me alguma coisa!

E Branca sacudiu-lhe o braço.

Ele ia responder afinal, quando foram interrompidos por um criado, que vinha anunciar o Aguiar.

— Ainda?! Exclamou Branca, deveras surpreendida. Pois meu primo tem ainda o atrevimento de voltar?

— Receba-o, disse o Coruja enfim.

E acrescentou, encaminhando-se para uma porta que havia na sala:

— Eu fico aqui escondido por detrás desta cortina. Receba-o sem o menor escrúpulo, porque a senhora não está só.

— Faça entrar meu primo, ordenou Branca ao criado.

Daí a pouco Aguiar estava defronte dela.

— Que deseja? Perguntou a senhora, vendo que a visita não se resolvia a falar.

— Venho receber a confirmação do que há dias a senhora me disse.

— Ora essa! De que espécie de confirmação fala o senhor?

— Da confirmação das suas últimas palavras. Não quero que me pese na consciência a menor sombra de remorso pelo que vou fazer...

— Contra quem?

— Contra a senhora e contra seu marido.

Branca, por única resposta, apontou-lhe a porta, como da primeira vez.

— Pense um instante! Disse ele ainda. Veja bem o que faz!...

— Rua!

— Branca!

— Saia! Já lhe disse!

— Mas repare que a senhora me obriga a ser pior do que sou!

— Se não sair, mando-o despejar lá fora pelo criado!

— Sim?! Pois não sairei!

— Hein?!

— Não saio, porque não quero!

E, pondo o chapéu na cabeça:

— Já não se trata aqui de pedir amor em troca de amor; agora trato apenas de exigir o que me compete de direito! Quero para aqui o que me devem!

— Miserável!

— Oh! Pois não! A senhora entende que me deve humilhar a seu gosto e eu devo ficar de cabeça baixa! Engana-se! Por bem sou capaz de todos os sacrifícios; por mal sou capaz de todas as crueldades. Já não é a recusa do seu amor o que me revolta; farte-se com ele quem quiser; mas o seu atrevimento, a sua insolência, o seu orgulho mal entendido!

Branca, lívida e trêmula, mas sem dar uma palavra, encaminhou-se para a mesa onde estava o tímpano, com a intenção de chamar um criado.

— É inútil! Observou Aguiar, cortando-lhe o passo; é inútil fazer vir alguém, porque eu não sairei. Já não é com a senhora que tenho de me entender e sim com o seu marido!

E, sacando do bolso algumas letras:

— Exijo o pagamento destas letras ou elas serão protestadas!

Nisto, porém, afastou-se o reposteiro do quarto, onde estava escondido o Coruja, e Aguiar viu com espanto surgir o vulto maltrapilho do professor e encaminhar-se tranqüilamente para ele com um terrível sorriso nos lábios. A sua primeira menção foi de sair, mas o outro o deteve com um gesto cheio de delicadeza.

— Espere, disse, o senhor vai imediatamente ser embolsado do que lhe deve o marido desta senhora. Fui encarregado por ele de tratar disto.

O Aguiar mediu-o de alto a baixo com um olhar em que transparecia mais decepção do que altivez. André, sem se alterar. afastou-se e voltou depois com um grosso maço de dinheiro.

— Faça o favor de verificar se está certo, acrescentou.

E, como o outro hesitasse ainda:

— Então, vamos, confira!

E, para o animar, principiou ele próprio a contar o dinheiro, nota por nota.

— Bem! Fez, logo que estava a soma conferida; creio que agora já ninguém lhe deve nada nesta casa. Pode retirar-se.

Aguiar, muito pálido e constrangido, tomou o chapéu com a mão a tremer e encaminhou-se para a saída, sem ânimo de levantar os olhos sobre nenhum dos dois outros.

Entretanto Branca presenciara isto imóvel e com a vista presa ao Coruja, como se contemplara um Deus.

André foi acompanhar o outro até à porta da rua e disse-lhe, empurrando-o brandamente para fora de casa:

— Agora, muito cuidadinho com a língua, porque não é só com Teobaldo que terás de te haver! A respeito do que se passou aqui, nem uma palavra! Compreendes? Anda. Vai-te embora, desgraçado!

Feito isto, voltou tranqüilamente ao seu sótão, fechou a gaveta da sua secretária, que ele deixara aberta com a precipitação de buscar o dinheiro, e desceu ao gabinete de Teobaldo.

Branca, porém, foi ao encontro dele e, passando-lhe os braços em volta do pescoço, deu-lhe um beijo em pleno rosto e desatou a soluçar. Mas a porta do gabinete acabava de abrir-se, e Teobaldo aparecia defronte dos dois com um flamejante olhar de leão cioso.

CAPÍTULO XVII

Com a chegada de Teobaldo, Branca e o Coruja separaram-se instintivamente, enquanto aquele, tirando da algibeira o seu revólver, precipitou-se sobre o amigo.

A mulher lançou-se entre eles, tentando desviar o tiro, mas a bala partiu e foi cravar-se no calcanhar esquerdo de André, que caiu, amparando-se à parede.

— Fizeste mal... Disse a vítima com um gemido.

E Branca, soltando um grito, exclamou para o outro:

— Desgraçado! Acaba de ferir o salvador da sua e da minha honra!

— Expliquem-se!

Branca apresentou-lhe as letras do Aguiar e acrescentou:

— Já que o senhor assim o quer, saberá tudo. Fiz o possível para não lhe falar em semelhante coisa; vejo, porém, que era muito mal empregado o meu escrúpulo.

— Deixemos-nos de palavras e venham os fatos! Quero a explicação do que acaba de se passar aqui e quero saber a razão por que essas letras se acham em seu poder!

— Estas letras aquele pobre homem resgatou-as ainda há pouco.

— Resgatou-as? E por quê?

— Porque assim era preciso, como aliás já o senhor sabia.

— Mas, afinal, porque era necessário resgatá-las?

— Pelo simples motivo de que o seu amigo Aguiar queria se prevalecer dessa dívida para me obrigar a esquecer os meus deveres de mulher casada.

— Será possível? interrogou Teobaldo, vencido agora pelo implacável olhar da esposa e pelo sereno gesto de perdão que transparecia já no rosto do Coruja.

Houve um silêncio.

— Oh! Maldito seja eu! Exclamou Teobaldo por fim, correndo a erguer nos braços o ferido.

— Não és culpado! Disse este. Foi um instante de loucura! Não te incomodes comigo! Isto nada vale!

À detonação do tiro os criados haviam acudido; Coruja foi carregado para uma cama; descalçaram-no e banharam-lhe o pé com arnica, enquanto não chegava o médico, que se fora chamar a toda pressa.

Teobaldo parecia louco, estava atarantado, ia e vinha do gabinete ao quarto, esmurrando a cabeça, torcendo os punhos, sem encontrar palavras bastantes para se maldizer.

É que duas idéias o atormentavam: a de haver ferido o amigo e a de vingar-se do outro.

— Ah! Resmungava de vez em quando, aquele miserável há de cair-me nas mãos! E há de pagar-me bem caro a sua infâmia!

Logo que o médico declarou que o ferido não apresentava maior perigo, Teobaldo enterrou o chapéu na cabeça e teria ganho a rua se gente de casa, por ordem de Branca não lhe impedisse a saída.

Foi, porém, necessária a intervenção do Coruja para que ele consentisse em ficar.

— Não saias ainda, pediu-lhe aquele; o médico acaba de dizer que a extração da bala há de ser um tanto dolorosa; fica para me animares com a tua companhia.

Teobaldo compreendeu a intenção de tais palavras e assentou-se resignado junto à cama de André.

Entretanto fez-se a operação logo que a ferida esfriou. Branca, enquanto não viu o Coruja com o pé aparelhado, não se desprendeu do lado dele, cercando-o de desvelos, ameigando-o e servindo de ajudante ao médico. Este, apesar das repetidas perguntas que ela lhe fazia a respeito do ferido, não quis logo falar abertamente e só ao despedir-se, confessou que o Coruja havia de ficar aleijado, visto que a bala lhe cortara vários tendões do pé; mas que não tinham a recear amputação, se não descuidassem de lhe dar o tratamento necessário.

Com efeito, durante os dias que a isto se seguiram, era André a maior preocupação dos que moravam naquela casa. Todos os cuidados de Branca lhe pertenciam.

Teobaldo, porém, achava-se em terrível estado de inquietação, já porque lhe chegara aos ouvidos a notícia de que o Aguiar havia arribado para a Europa, e já porque as suas circunstâncias não lhe permitiam naquela ocasião restituir ao amigo o dinheiro de que este se privara por causa dele.

— Todavia, disse-lhe o Coruja, acho que, para evitares um escândalo à tua esposa, deves fazer acreditar a todos que o pagamento das letras do Aguiar foi feito por ti e não por mim; e, então, quando puderes, me restituirás a quantia, sem ser necessário que mais ninguém além de nós saiba de tais particularidades.

Teobaldo jurou que, desse momento em diante, não descansaria enquanto não tivesse obtido o dinheiro necessário para evitar que o amigo ficasse em falta com o Banco. Mas o dia destinado à primeira prestação do Coruja chegou, sem que o outro tivesse obtido coisa alguma. E, para maior desgraça, André ainda não podia andar, senão de muletas.

O colégio foi posto de novo em arrecadação e vendido em proveito do Banco.
––––––––
continua…

domingo, 15 de setembro de 2013

Ialmar Pio Schneider (Anita Garibaldi)

Anita, por Jorge Bichuetti
POEMA ANITA GARIBALDI
Para a tradicionalista e entusiasta Elma Sant´Ana, que tanto se dedica à causa da heroína.

Heroína dos Dois Mundos,
Esposa de Garibaldi,
A luta não foi embalde
Em prol de nobre ideal,
Sempre valente e leal,
Cavalgando com firmeza,
Que além de sua beleza
Era enérgica e jovial !

Nascida em Laguna ou Lages,
Só Deus o sabe; mas viu
O Giuseppe em seu navio,
No porto catarinense,
Quando o amor que tudo vence
Surgiu em seu coração
E ela plena de emoção,
No convés da nau subiu...

E desde então começou
Aquela união de bravura,
Nascida pela ternura
De duas almas fagueiras
Que seriam companheiras,
Constituindo família
Nessa Pátria Farroupilha,
Das dignas lides guerreiras !

Em sua curta existência
Foi mãe heroica e exemplar,
Nunca deixou de lutar
Pelo lema: “Liberdade,
Igualdade, Humanidade”;
Que norteou os Farroupilhas
A seguirem novas trilhas,
Na conquista da verdade.

Viva Anita Garibaldi,
No dia do seu nascimento,
Embora em qualquer momento
Devemos lembrar a glória
Da grande mulher da história
De nossa querência amada,
Pois não será sepultada
Sua imagem de vitória !

Porto Alegre, RS, 30 de agosto de 2013

Malba Tahan (O Mensageiro da Morte)

Na última curva da estrada Te-ha-tá parou e olhou para o céu. As montanhas sombrias, cobertas de neve, pareciam gigantes encanecidos que vigiavam silenciosos as fronteiras do Tibete. O sol, já perto do horizonte, retardava a sua marcha como se quisesse receber as últimas preces com que os monges imploravam a misericórdia do Senhor da Compaixão.

A sombra de um vulto surgiu, sobre uma pedra, na margem da estrada. Te-ha-tá tremeu de pavor. Em seu caminho achava-se o impiedoso Han-Ru, o Anjo da Morte, o mensageiro da dor e da desolação.

O coração tem, por vezes, o dom de pressentir a desgraça. Te-ha-tá, ao avistar o Anjo da Morte, lembrou-se de sua noiva, a formosa Li-Tsen-li. Te-ha-tá dirigiu-se, pois, sem hesitar, ao mensageiro cruel do Destino.

- Han-Ru, ó gênio desapiedado! - exclamou. - Que procuras aqui, quase à sombra da casa da encantadora Li-Tsen-lí? Bem sei que a tua presença vale por uma sentença de morte.

Respondeu Han-Ru, com a paciência de um enviado do Eterno:

- A tua inquietação é legítima, meu amigo. Vim a este recanto buscar a tua noiva Li-Tsen-li. Chegou, pela determinação do Destino, o termo de sua existência neste mundo. Lí-Tsen-li vai morrer!

- Piedade, Han-Ru! Piedade! - implorou Te-ha-tá. - Ela é tão jovem, e tão prendada! Deixa viver Li-Tsen-li!

O Anjo da Morte meditou em silêncio durante alguns instantes e depois, sem erguer o rosto, disse: - Sei que tens direito a uma vida longa e tranqüila; restam-te, ainda, quarenta e seis anos de vida. Poderás ceder à tua noiva a metade do tempo que te cabe, no futuro, para viver.  Li-Tsen-li ficará, portanto, com direito à metade de tua vida e viverá em tua companhia, vinte e três anos. Findo esse prazo, morrerão ambos no mesmo instante? Aceitas essa proposta?

As palavras de Han-Ru fizeram hesitar o jovem Te-ha-tá. Quem, decerto, não ficaria indeciso antes de sacrificar, cedendo a outrem, a metade da própria vida?

- A tua sugestão, Han-Ru, implica uma decisão de infinita gravidade para a minha vida. Não poderei tomar uma decisão nesse sentido, sem, previamente, consultar os meus três grandes amigos. Poderás esperar que eu ouça a opinião daqueles que sempre me auxiliaram e me orientaram na vida?

- Farei como pedes, meu amigo - respondeu o Anjo da Morte. - Até o findar da noite que vai começar, aguardarei a tua palavra final. Deverás voltar, com a tua decisão, à minha presença, antes do amanhecer.

Partiu Te-ha-tá em busca dos amigos, cujos sábios conselhos pretendia ouvir. Deveria ele como noivo sacrificar a metade da sua vida para salvar das garras da Morte a criatura amada?

O primeiro amigo de Te-ha-tá era um artista tibetano de assinalados méritos. Su-Liang sabia esculpir com admirável perfeição, na pedra ou na madeira, e os seus trabalhos eram muito apreciados.

Eis como Su-Liang, o escultor, falou a Te-ha-tá:

- A vida, meu amigo, só tem sentido quando a sua finalidade é traduzida por um grande e incomparável amor. E o amor que dispensa sacrifícios e renúncias não é amor; é a expressão grotesca de um capricho vulgar. Feliz aquele que pode demonstrar a grandeza de seu coração medindo-a pela extensão de um ingente sacrifício. Pela mulher amada deve o homem sacrificar, não apenas a metade de sua vida, mas a vida inteira! Que importa, Te-ha-tá, uma existência longa, torturada pela dor de uma incurável saudade? Preferível, mil vezes, que vivas a metade de tua vida à sombra feliz do amor delicioso de tua eleita. No teu caso eu não teria hesitado, um só instante, em aceitar a proposta do terrível Han-Ru.

O segundo amigo de Te-ha-tá chamava-se Niansi. Era hábil caçador e auferia consideráveis lucros mercadejando peles.

Ao ouvir a consulta do jovem, Nian-si não se conteve.

- É uma loucura, Te-ha-tá! Onde se viu um moço, rico e cheio de saúde, sacrificar a metade da vida por causa de uma mulher? Encontrarás, pelo mundo, milhões e milhões de mulheres lindas. Aqui mesmo (no Tibete) poderás topar, em qualquer aldeia, com centenas de meninas, algumas das quais nada ficariam a dever, julgadas pelos seus predicados de graça e beleza, à tua noiva Li-Tsen-li! Desgraçada a idéia de quereres adiar o termo da existência de uma mulher com o sacrifício de vinte e tantos anos de tua vida! E quem poderá prever o futuro? Amanhã, essa mulher, arrebatada por uma nova paixão e deslembrada do sacrifício que por ela fizeste, abandonar-te-á e irá viver, nos braços de outro, a vida que é a tua própria vida! Que farás, então, vendo-a ceder a um odiento rival os dias roubados ao rosário de tua existência? Penso que não deverias ter hesitado ante a proposta descabida de Han-Ru, repelindo-a no mesmo instante.

A divergência entre os dois amigos mais fez crescer a indecisão e a incerteza no coração de Te-ha-ta.

- Vou ouvir - pensou o jovem - a opinião do prudente Kín-Sa. Só ele poderá indicar-me o caminho a seguir.

Kín-Sa, citado no Tibete como um estudioso das leis e dos ritos, assim falou ao apaixonado noivo:

- Se amas realmente Li-Tsen-li, acho que deves ceder, a essa jovem, a metade do tempo que te resta para viver. Convém, entretanto, impor uma condição. A parcela de vida, depois de cedida a Li-Tsen-li, poderá ser retomada por ti, em qualquer momento. Terás, assim, a tua tranqüilidade garantida no caso de uma infidelidade de tua futura esposa. Se ela, por qualquer motivo, não se mostrar digna de teu sacrifício, perderá o direito ao resto da vida que lhe cabia viver! Fora dessa condicional, qualquer outra solução para o caso não passaria de irremediável loucura!

E concluiu o seu conselho com estas palavras:

- Fizeste bem em hesitar. A hesitação é irmã da Prudência. Só os loucos e temerários é que nunca hesitam.

Achou Te-ha-tá bastante prudente e razoável a proposta sugerida pelo douto Kin-Sa, e levou-a, sem perda de tempo, ao conhecimento de Han-Ru, o Enviado da Morte.

Han-Ru aceitou a condição imposta pelo noivo:

- Está bem, Te-ha-tá. Aceito a tua proposta. A bondosa Li-Tsen-li vai viver os vinte e três anos. Esta parcela de vida não foi, porém, dada, mas sim "emprestada".

Passaram-se muitos meses. Li-Tsen-li casou-se com o jovem Te-ha-tá, e os dois eram citados como os esposos mais felizes do Tibete. Li-Tsen-li, depois do casamento, passou a chamar-se Ti-long-li, vocábulo que significa "minha vida querida".

Um dia, afinal, Te-ha-tá foi obrigado a fazer uma longa viagem para além das fronteiras de sua terra. Deixou Ti-long-li e seu filhinho, que já contava algumas semanas, em companhia de seus pais.

Quando regressou, tempos depois, teve a surpresa de encontrar os seus três amigos que o aguardavam na entrada da pequena povoação.

- Onde está Ti-long-li? - perguntou, ansioso, aos amigos. - Por que não veio? Estará doente? Que aconteceu à Ti-long-li?

Disse um dos amigos:

- Enche de ânimo e de coragem o teu coração, ó Te-ha-tá ! Uma grande desgraça, há três dias, caiu sobre a tua vida!

- Desgraça? - repetiu, aflito, Te-ha-tá. - Horrível esta angústia! Vamos! Quero saber a verdade! Onde está Ti-long-li?

- Morreu!

- Morreu! - gritou Te-ha-tá, desesperado. - Não é possível! Não podia morrer! Eu sacrifiquei por ela, metade de minha vida!

E Te-ha-tá, dominado pela dor e revoltado pelo infortúnio de haver perdido a sua esposa querida, entrou a blasfemar como um possesso, contra o Senhor da Compaixão. Erguia os braços para o céu; rolava, por vezes, sobre a terra. Insultava o nome do Criador. Os amigos afastaram-se, cautelosos. Era preciso deixar o infeliz Te-ha-tá dar plena expansão à indizível angústia que lhe esmagava o coração.

Em dado momento Te-ha-tá viu surgir diante de si a figura de Han-Ru, o Anjo da Morte.

- Han-Ru! - bradou, num tom de incontido rancor. - Faltaste com a tua palavra. Que fizeste de Ti-long-li?

- Escuta, Te-ha-tá - respondeu Han-Ru. - Preciso dizer-te a verdade, para que não continues a blasfemar desse modo. A tua esposa deveria viver vinte e três anos. Um dia, porém, o seu filhinho adoeceu gravemente. O pequenino ia morrer. Que fez a tua esposa? Pediu, em preces, que a sua vida fosse dada ao filhinho enfermo para que ele pudesse viver! Salvou-se o teu filho, mas tua esposa morreu!

E, ante a estupefação de Te-ha-tá, o Anjo da Morte concluiu:

- E enquanto tu, como noivo, hesitaste em ceder a metade de tua vida, ela, mãe extremosa, não hesitou um segundo em dar, pelo filhinho, a vida inteira!

 Fonte:
Malba Tahan. Minha Vida Querida.

Guilherme de Azevedo (Alma Nova)VII

foi mantida a grafia original.
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A CRISTO

Precisamos Jesus, se não Te sentes velho,
Que cinjas novamente o resplendor da luz
E venhas explicar a letra do evangelho
A muitos que hoje vês prostrados ante a cruz!

Ainda não cessou, de todo, essa contenda
Que um dia, há muito já, tentaste debelar:
E aqueles que são bons e adoram Tua lenda
Desejavam também ouvir-Te hoje falar.

Apenas ressoasse o Teu verbo indignado,
O látego febril das grandes corrupções,
Iria atrás de Ti um mundo revoltado
Que sente na consciência a luz das redenções.

E embora não houvesse, aqui, outra alma gémea
Da Tua, e tão ungida em bálsamos dos céus,
Havias de encontrar essa alma de boémia
Que sonha uma justiça e sente em si um Deus!

Mas não, não voltes cá: Teu corpo combalido
Não pode suportar os gelos da manhã.
Precisavas de pão, de abrigo e de vestido
E a vida aqui é cara e longo o macadam!

Terias de encontrar, decerto, mil estorvos
No mundo revolvido, e escuta-me Jesus:
Se não fosses, enfim, comido pelos corvos
Talvez Te fuzilasse um cura Santa-Cruz!

Serias apontado a dedo, muitas vezes,
Como um simples bandido, um agitador feroz,
E haviam de esconder seus ouros os burgueses
Apenas ressoasse, ao longe, a Tua voz!

Depois vinhas achar a par do proletário,
Ao pé do que se inunda em bagas de suor,
Aquele velho Pedro, agora milionário,
E triste por pensar que já esteve melhor!

E perto do ócio vil à sombra do qual medra
O egoísmo feroz que extingue o coração,
Lutando todo o dia o britador de pedra
A quem à noite espera, em casa, um negro pão;

E uns pequenos sem cor; talvez cheios de fome,
Com pouca luz no olhar; atrofiados, nus;
Abrindo os olhos muito à côdea que ele come
E indo-se deitar sem roupas e sem luz!

Assim deixa-Te estar. O Teu cadáver triste
Recende uma fragrância etérea e divinal,
Enquanto o mundo segue e vai de lança em riste
Sem tréguas combatendo as legiões do Mal!

Tu foste o paladino, o trovador sagrado,
Que falaste do amor, da paz e do perdão,
E o ferro que varou Teu corpo lado a lado
Contudo inda reluz altivo em muita mão!

Nós, hoje, quando em luta erguemos sobre a liça
O gládio vingador das opressões cruéis,
Soltamos, num sorriso, o nome da Justiça,
E há quem saiba morrer sem bênçãos nem lauréis!

Descansa pois Jesus! Bem basta que Tu sintas,
Nesse velho sepulcro, o imenso vozear
Dos mineiros sem luz, das legiões famintas,
Que nunca, um dia só, deixaram de lutar,

Mas que hão de enfim vencer, porque a suprema essência
A jorros cai do Céu nas mãos dos Prometeus,
E tanto vai subindo a vaga da consciência
Que um dia há de abismar-se em nós o próprio Deus!

Eu tive um sonho estranho: ouvi que vou dizê-lo.
Era em praia deserta, em frente a um longo mar:
Nos céus havia a névoa, a mãe do Pesadelo,
E o vago, o incerto, o informe em tudo a oscilar!

De súbito surgiu, na praia, uma criança
De olhar profundo e bom, de angélica expressão,
E o mar contemplou com tanta confiança
Que nem que visse nele o berço dum irmão!

Mas a vaga subindo, em cada extremo arranco
Levando ia consigo aquela flor dos céus!
E em breve só boiava um ténue vulto branco
No mar onde flutua o espírito de Deus!

Mais tarde à beira-mar chegava a pura imagem
Da mais casta mulher que em vida pude ver.
Detinha-se distante: — a espuma da voragem
Só meia extenuada aos pés lhe ia morrer! -

O imenso mar, porém, crescia a cada instante
Mais turvo e mais veloz! Depois... Não quis ver mais.
Ergui-me e caminhei de vale em vale errante
Pensando tristemente em coisas ideais! -

Ao longe, muito além, na serra desviada
De súbito encontrei — ó estranha aparição! -
Uma pobre velhita enferma e desolada
Trazendo já no olhar a grande cerração!

Que ideia me assaltou não sei dizê-lo agora.
Aonde iria o espectro, aquela sombra vã?
Iria aonde vai o que ontem foi aurora
E aonde irão também as rosas de amanhã?...

Dos meus instantes bons, ó lúcida quimera,
Bem vês que os sonhos maus são fáceis de esquecer!
Que importa a grande noite em plena primavera,
Que importa o que tu foste, o que és, e o que hás de ser!!

O GRANDE TEMPLO

Eu não trajo o burel do magro cenobita
Nem me posso infligir cruéis macerações;
Mas não rio de alguém que busca a paz bendita
No seio casto e bom das grandes solidões.

Bem sei que há na montanha aromas penetrantes
E certas vibrações que podem fazer mal;
Mas se é preciso Deus, direi que é melhor antes
Amá-Lo com fervor no templo universal!

Enquanto sobre o altar das serras azuladas
Mil lâmpadas do céu derramam toda a luz,
Nas velhas catedrais, já meio arruinadas,
O tempo — o grande verme! — até devora a cruz!

Depois é fácil ver, por entre os arabescos,
Que a arte sensual traçou com tanto amor,
As vezes, o sorrir dos Sátiros grotescos
Pungindo cruelmente a face do Senhor.

Ou mais; podemos nós voar todos cativos
Do sereno ideal, daquele sumo bem,
Ao vermos tanta vez os Faunos mais lascivos
Olhando de revés a virgem nossa mãe?!

E ainda mil traições: as músicas, as flores,
Os lindos serafins voando todos nus;
Da seda que se arrasta os lânguidos rumores,
Do incenso as espirais; os turbilhões de luz!

Oh! Visto haver de tudo; aromas e decotes,
O vinho cintilante, a viva luz do gás;
Que a vossa rouca voz, pomposos sacerdotes,
Não cante apenas Deus; que solte alguns hurras!

O fumo dessa festa, a mim, pouco me assusta.
Se eu quero alguma vez fugir do pó, voar,
Eu tenho o vale profundo ou a floresta augusta,
As montanhas, os céus, e o belo, o vasto mar!

Da casta natureza ó templo gigantesco,
Tu és mais amplo, sim; mais livre, muito mais!
O meigo e doce olhar do Cristo romanesco
A multidão gentil não chama aos teus umbrais.

Alexandre Garcia (Sentar-se à janela do avião)

Era criança quando, pela primeira vez, entrei em um avião. A ansiedade de voar era enorme.

Eu queria me sentar ao lado da janela de qualquer jeito, acompanhar o vôo desde o primeiro momento e sentir o avião correndo na pista cada vez mais rápido até a decolagem.

Ao olhar pela janela via, sem palavras, o avião rompendo as nuvens, chegando ao céu azul.

Tudo era novidade e fantasia...

Cresci, me formei, e comecei a trabalhar. No meu trabalho, desde o início, voar era uma necessidade constante. As reuniões em outras cidades e a correria me obrigavam, às vezes, a estar em dois lugares num mesmo dia.

No início pedia sempre poltronas ao lado da janela, e, ainda com olhos de menino, fitava as nuvens, curtia a viagem, e nem me incomodava de esperar um pouco mais para sair do avião, pegar a bagagem, coisa e tal.

O tempo foi passando, a correria aumentando, e já não fazia questão de me sentar à janela, nem mesmo de ver as nuvens, o sol, as cidades abaixo, o mar ou qualquer paisagem que fosse.

Perdi o encanto. Pensava somente em chegar e sair, me acomodar rápido e sair rápido.

As poltronas do corredor agora eram exigência. Mais fáceis para sair sem ter que esperar ninguém, sempre e sempre preocupado com a hora, com o compromisso, com tudo, menos com a viagem, com a paisagem, comigo mesmo.

Por um desses maravilhosos 'acasos' do destino, estava eu louco para voltar de São Paulo numa tarde chuvosa, precisando chegar em Curitiba o mais rápido possível.

O vôo estava lotado e o único lugar disponível era uma janela, na última poltrona.

Sem pensar concordei de imediato, peguei meu bilhete e fui para o embarque.

Embarquei no avião, me acomodei na poltrona indicada: a janela. Janela que há muito eu não via, ou melhor, pela qual já não me preocupava em olhar.

E, num rompante, assim que o avião decolou, lembrei-me da primeira vez que voara. Senti novamente e estranhamente aquela ansiedade, aquele frio na barriga. Olhava o avião rompendo as nuvens escuras até que, tendo passado pela chuva, apareceu o céu.

Era de um azul tão lindo como jamais tinha visto. E também o sol, que brilhava como se tivesse acabado de nascer.

Naquele instante, em que voltei a ser criança, percebi que estava deixando de viver um pouco a cada viagem em que desprezava aquela vista.

Pensei comigo mesmo: será que em relação às outras coisas da minha vida eu também não havia deixado de me sentar à janela, como, por exemplo, olhar pela janela das minhas amizades, do meu casamento, do meu trabalho e convívio pessoal?

Creio que aos poucos, e mesmo sem perceber, deixamos de olhar pela janela da nossa vida.

A vida também é uma viagem e se não nos sentarmos à janela, perdemos o que há de melhor: as paisagens, que são nossos amores, alegrias, tristezas, enfim, tudo o que nos mantém vivos.

Se viajarmos somente na poltrona do corredor, com pressa de chegar, sabe-se lá aonde, perderemos a oportunidade de apreciar as belezas que a viagem nos oferece.

Se você também está num ritmo acelerado, pedindo sempre poltronas do corredor, para embarcar e desembarcar rápido e 'ganhar tempo', pare um pouco e reflita sobre aonde você quer chegar. A aeronave da nossa existência voa célere e a duração da viagem não é anunciada pelo comandante.

Não sabemos quanto tempo ainda nos resta. Por essa razão, vale a pena sentar próximo da janela para não perder nenhum detalhe.

Afinal, 'a vida, a felicidade e a paz são caminhos e não destinos'.

Fonte:
www.quemtemsedevenha.com.br (site desativado)

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 40

CAPÍTULO XIV
A carta anônima era obra de Leonília. Esta só se decidira a lançar mão de semelhante meio de vingança depois de bem convencida da inutilidade dos esforços empregados por ela para surpreender de novo a mulher de Teobaldo em outra entrevista com o Aguiar.

Como toda a infeliz que em tempo não se abrigou a uma afeição legítima e duradoura, a cortesã sentia a sua má vontade contra os homens azedar-se à proporção que seus encantos desapareciam.

Ela estava na dolorosa transição dos quarenta anos; época em que toda a mulher só pode ser sublime ou ridícula. Sublime se a fizeram casta e principalmente se a natureza lhe permitiu ser mãe; e ridícula, se a desgraçada perdeu a flor da sua mocidade ao reflexo das orgias e ao grosseiro embate da prostituição.

Ah! Não se pode esperar de uma criatura nestas últimas circunstâncias senão o ódio contra tudo e contra todos. Durante a vida inteira deram-se de corpo e alma ao prazer, e, desde que este lhes volta as costas, sentem-se totalmente desamparadas.

E nem ao menos resta-lhes a consolação de desabafar o muito que sofrem, porque, amarradas aos próprios destroços, precisam esconder com o mesmo cuidado tanto os sintomas da velhice como as manifestações da desgraça; não se animam a rir por medo de mostrar os dentes que já lhes faltam; não se animam a chorar receosas de que as lágrimas lhes despintem os olhos.

Leonília, porém, ainda não estava de todo abandonada; sentia ainda atrás de si o tossir decrépito de seus velhos amantes e ouvia-lhes o som dos passos trôpegos e mal seguros. Ao seu lado só ficaram aqueles que, já idosos, ainda a pilharam moça e formosa; só esses não desertaram, que lhe faltavam as forças para isso e outrossim não lhe notavam os estragos do tempo e os sulcos da velhice, porque a vista lhes fora faltando a eles à proporção que a ela fora faltando a beleza.

Mas, ah! Justamente quando esta vai fugindo, é que a mulher mais a exige nos seus amantes; à moça, bonita e cheia de vida, pouco importa que o homem a quem se dá seja tão novo e tão lindo como ela; para o seu completo deleite chegam-lhe os próprios encantos e, vaidosa, contenta-se com ser admirada e não precisa admirar ninguém. Só às feias ou às que já perderam as frescuras da mocidade interessam os encantos do homem a quem se dão; querem que ele tenha aquilo que já lhes falta a ela. Chegada certa idade, trocam-se os papéis, por isso que os velhos morrem de amor pelas mocinhas e as matronas tanto apetecem aos magros estudantes de preparatório.

À Leonília, por conseguinte, já não bastava o séquito de seus amantes mais velhos do que ela, e era, pois, com profundo desgosto que acompanhava os passos de Teobaldo, vendo-o luzir por toda a parte, belo, sempre desejado, resplandecendo em meio de dois oceanos, um de inveja e outro de amor. A desgraçada não podia habituar-se à idéia de que aquele ingrato, pouco mais moço do que ela, estadeasse agora no apogeu da força e da fortuna, sem se lembrar ao menos da existência de uma pobre mulher, que o amara tão apaixonadamente.

E por isso tratou de remeter-lhe uma nova carta anônima, e logo depois outra e mais outra; certa de que com elas havia de lhe amargurar a existência. Com efeito, aquelas cartas anônimas, lançadas da sombra, traziam Teobaldo ultimamente bastante apoquentado e aborrecido, tanto mais que ele não podia fixar a sua desconfiança contra nenhum dos seus dois amigos. Ora sondava a mulher, ora sondava o Aguiar, ora o Coruja; e o resultado de suas observações eram sempre as mesmas sombras e as mesmas incertezas.

André, todavia, estava bem longe de desconfiar que era alvo de tais suspeitas; a sua existência agora, agora mais que nunca trabalhosa e cheia de responsabilidades, gastava-se em esforços de todo gênero. Oito meses haviam decorrido depois do seu compromisso com o Banco e, segundo os seus planos, a primeira entrada de dinheiro seria feita no dia convencionado. Não perdera um instante e não distraíra um vintém das suas economias; todas as aspirações necessárias para chegar aos seus fins, ele as afrontara heroicamente; e D. Margarida e mais a filha, aguardando em sôfrego silêncio o termo dessa campanha, contavam as horas e os segundos, apenas reanimadas, de quando em quando, pelas palavras do professor, que parecia cada vez mais seguro do cumprimento da sua promessa.

Agora um novo tipo freqüentava a casa de D. Margarida. Era o Costa, um alferes de polícia, conhecido pela alcunha de Picuinha. Homenzito esperto, despejado de maneiras e muito metido a taralhão com todo o mundo. Tinha o nariz comprido, luminoso e de papagaio, os olhos fundos, o queixo muito metido para dentro, com uma boquinha de coelho. Quando soltava uma das suas escandalosas gargalhadas, viam-se-lhe as presas, solitárias como as presas de um cão, porque ele já não possuía os dentes da frente. Era imberbe e macilento, o pescoço fino, as mãos nodosas e feias; todo ele raquítico e pobre de sangue, a jogar com o corpo da direita pata a esquerda, principalmente quando aparecia depois do jantar, com a farda desabotoada sobre o estômago, o boné à nuca, uma ponta de cigarro presa ao canto dos lábios e uma chibata na mão, a fustigar com ela de vez em quando o brim engomado das suas calças brancas.

D. Margarida o suportava por simples conveniência: o alferes era seu freguês de roupa e gostava de aparecer-lhe à tarde, para cavaquear à janela; um cotovelo sobre o peitoril, as pernas cruzadas, a cuspilhar consecutivamente pedacinhos de fumo que ele mascava do cigarro.

O que ela não podia lhe perdoar era o costume de bebida. O alferes em dias de folga metia-se no gole e escandalizava a rua inteira.

— É todo o seu mal! Dizia a velha. Tirando daí, não há melhor criatura!

Ele gostava de brincar com todos; não tinha graça, mas estava sempre disposto a rir; o casamento de André era assunto obrigado das suas pilhérias, quando queria mexer com Inês.

— Ele, a modos que não tem lá essas pressas de casar!...

Chacoteava a respeito do Coruja, apresentando na sua boca de roedor as duas presas isoladas.

Mas, quando a velha tomava a defesa do futuro genro, o Picuinha fazia-se sério e elogiava-o.

— Bom moço... Resmungava. Não é dos mais simpáticos, mas muito sisudo, e, dizem que sabe por uma academia!

A velha entrava então a falar sobre o colégio, sobre os altos compromissos de André e no casamento da filha, o qual seria efetuado, impreterivelmente, daí a quatro meses!

— E eu cá estou para entrar no bródio! Exclamava o alferes, chibateando as calças. — Quero só ver como aquele tipo se sai nesse dia! Consta-me que vai ser coisa de arromba!

Ali pela vizinhança da velha com efeito já se boquejava a propósito do casório, e diziam até que o noivo estava muito bem e que o seu colégio era o melhor do Rio de Janeiro.

— Ah! Mas também apertado como ele só! Afirmava uma amiga de Inês, muito cheirona da vida alheia. Aquilo é criaturinha que traz por conta os cordões do bolso! Não há meio de lhe apanhar uma de X! E depois — Que cara de homem, credo! Parece que está sempre arreliado!

O Coruja, em verdade, tornava-se cada vez mais esquisitório e mais e mais farroupilha; não havia meio de obrigá-lo a comprar um fato novo e a resignada Inês, posto não desse demonstrações, tinha já certo vexame quando o via surgir no canto da rua, com a grande cabeça enterrada nos ombros, a jogar o corpo no seu pesado andar de urso.

Em casa de Teobaldo, os criados o olhavam por cima do ombro e o Aguiar chegava muita vez a virar-lhe o rosto.

Dantes o primo de Branca ainda procurava disfarçar a sua repugnância pelo professor, mas agora nem se dava ao trabalho de fazer isso, e, sempre que a dona da casa lhe falava nele, não perdia a ocasião para ridicularizá-lo.

Em geral o pretexto destas zombarias era a famosa história do Brasil. Branca procurava defender o trabalho do Coruja, chegando até a impacientar-se com aquela grosseira perseguição do primo.

CAPÍTULO XV

Aguiar, depois que emprestara os seis contos de reis a Teobaldo, deixava transparecer muito mais claramente aos olhos da prima as suas intenções a respeito desta; Branca fingia não dar por isso, mas, de si para si, tomava as suas cautelas contra o sedutor.

Não lhe convinha entretanto denunciá-lo ao marido, não só porque bem poucas vezes entrava em conversa íntima com este, como porque, conhecendo o gênio irrefletido de Teobaldo, temia, em lhe dizendo tudo, armar algum escândalo mais perigoso e lamentável do que o próprio objeto que o promovia.

Uma ocasião, porém, o primo chegou-lhe a falar com tamanha insistência e com tamanha clareza, que ela instintivamente ergueu-se da cadeira em que estava e mediu-o de alto a baixo.

— Por que me trata desse modo?... Perguntou o Aguiar, abaixando os olhos e afetando
tristeza.

— Porque o senhor assim o merece, respondeu ela imperturbavelmente.

— E terei eu culpa de amá-la tanto?...

— Proíbo-o de repetir semelhante frase, ou ver-me-ei obrigada a tomar medidas mais sérias a este respeito. E, por enquanto, não lhe posso prestar atenção. Com licença.

— Branca! Ouça, peço-lhe que me ouça!

— Enquanto não estiver disposto a se portar dignamente para comigo, far-me–á o obséquio de não por os pés nesta casa.

Dito isto, Branca se afastou tranqüilamente, como se viera de dar qualquer ordem a algum dos seus criados, e saiu da sala sem o menor gesto que traísse a sua indignação.

Apesar disso, no entanto, ele não desistiu da sua empresa e, sem se dar por achado com as palavras da prima, continuou a freqüentar a casa, como se nada houvesse sucedido de extraordinário e apenas tratando de disfarçar o seu projeto de novos ataques.

Um belo dia, três meses depois daquela cena, surpreendendo Branca no fundo de um caramanchão que havia na chácara, a ler distraída, tomou-a de improviso pela cintura e caiu-lhe aos pés, exclamando:

— Perdoa, perdoa, se de tudo me esqueço e não resisto a este amor insensato que me consome.

E ia ferrar-lhe um beijo na face, quando Branca, escapando-lhe das mãos, ligeira como um pássaro, lançou-lhe contra o rosto uma bofetada.

Ele ergueu-se rubro de cólera e encarou-a de frente.

— Rua! Fez ela, apontando-lhe a saída. Já!

Ele não se mexeu.

— Já! Não ouviu?! Não quero que fique aqui nem mais um instante! Rua!

— Enxota-me?!

— E, se não me quiser obedecer, juro-lhe que Teobaldo a isso o constrangerá!

Aguiar sorriu, e respondeu afinal, torcendo o bigode entre os dedos:

— Não tenho medo de caretas, minha prima! Sairei daqui se eu bem quiser. Pode ir fazer queixa de mim a seu marido, vá! Diga-lhe o que entender, não me assusto com isso... Agora, sempre lhe previno de que a honra dele está nas minhas mãos e que de um momento para outro, posso reduzi-lo a trapos! Vá! Pode ir! Lembre-se, porém, de que eu tenho em meu poder títulos assinados por seu marido; títulos já vencidos e que são o bastante para lançá-los, a ele e a senhora, na ruína e na vergonha! Prefere lutar? Pois cá estou às suas ordens, e há de ver, que se fui fraco e imbecil no meu amor, saberei ser forte e cruel no meu ressentimento!

E o Aguiar saiu da chácara, deixando a prima inteiramente dominada pela impressão do que ouvira.

Quando tornou a si ela correu ao quarto, assustada e trêmula, como a corça que pressente a próxima tempestade, e lançou-se no leito, aflita e estrangulada por um desespero nervoso, um desespero que respirava de todo o seu ser, uma agonia que vinha de sua alma e também de sua carne; mas que ela de forma alguma podia explicar se era raiva, se era vergonha, se era ressentimento ou pura necessidade de amor.

E, oprimindo os olhos com os punhos cerrados e mordendo as articulações dos dedos, soluçava, soluçava tanto, e tão rápidos e seguidos eram os seus soluços que pareciam uma interminável gargalhada de quem enlouquece à força de sofrer.

À noite tinha febre, sentiu a cabeça andar à roda, mas ergueu-se e foi ter ao quarto do marido. Ela! Que havia tanto tempo não mostrava a menor curiosidade em saber a que horas ele entrava da rua ou saía de casa.

Teobaldo a recebeu tão surpreso quanto ela já estava calma e completamente senhora de si.

Era sem dúvida para impressionar aquela pálida figura de mulher, toda vestida de luto, que outro trajo não usara depois da sua viuvez moral, aquela figura altiva e sofredora, cuja expressão geral da fisionomia punha em colisão qualquer espírito, para decidir qual seria a maior e a mais forte: se a energia do seu caráter ou se a violência dos desgostos que a perseguiam.

Tão grande foi a surpresa de Teobaldo, que ele não encontrou para receber a mulher senão o gesto e a exclamação inconscientes do seu pasmo.

– Venho pedir-lhe um favor, disse ela.

— Um favor?

— Sim. É que liquide quanto antes as suas contas com meu primo.

— E por quê?

— Porque assim é preciso.

— Mas a razão porque é preciso?

— Não posso dizer, mas afianço que é preciso liquidar as suas contas com aquele homem.

— Tem a senhora alguma razão de queixa contra ele?

— Nenhuma.

— Por acaso ter-lhe-ía seu primo falado a respeito da minha dívida?

— Não; asseguro-lhe, porém, que é de todo interesse para nós livrarmo-nos dele.

— Sim, mas a senhora há de confessar que eu tenho o direito ao menos de querer saber o motivo desta sua exigência.

— E eu não lhe posso dizer qual é o motivo.

— Então por que veio me falar nisto?

— Porque era meu dever, O senhor no fim de contas, é meu marido e eu tenho obrigação de zelar pelos seus interesses.

— Obrigado, confesso-lhe, porém, que os obséquios dessa ordem não trazem a menor vantagem!

— Não faço um obséquio; cumpro com o meu dever, já disse.

— Mas, se a senhora vem me dizer isto, é que alguma coisa de extraordinário se passou aqui! Ou eu já não tenho também o direito de saber o que vai pela minha casa?

— Oh! Tem todo o direito; entendo, porém, que não é de minha obrigação dar-lhe contas do que vejo e observo. Se o senhor quer estar ao par do que se passa em sua casa, faça por isso, que não fará mais do que o seu dever.

— Engana-se; daquela porta para dentro é à senhora que compete zelar pelo que se passa nesta casa.

— E por isso venho prevenir-lhe de que é de toda a conveniência liquidar quanto antes os seus negócios com meu primo.

— Sem apresentar a razão por que.

Ela não respondeu dessa vez e fez menção de sair.

O marido deteve-a.

— E a senhora pensou um instante nas conseqüências que pode ter esta sua meia denúncia?

— Já pensei tanto quanto devia.

— E não calculou até que ponto elas poderiam chegar?

— Calculei.

— E não saberá porventura que nas condições apertadíssimas em que me acho, as suas palavras só me podem servir para mais atrapalhar a minha vida e aumentar o desespero em que ando?

— Sei apenas que é preciso fazer o que lhe disse.

— Pois aponte-me os meios para isso! Diga-me onde devo ir buscar dinheiro para fazer face a uma dívida em que eu não pensava agora ...

— Os negócios que se tratam daquela porta para fora pertencem-lhe, como de portas para dentro pertencem a mim zelar por esta casa.

E, tendo dito isto, retirou-se do gabinete do esposo ainda mais fria e sobranceira do que se apresentara.

Foram inúteis todos os esforços que Teobaldo empregou para detê-la ainda.
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continua…

sábado, 14 de setembro de 2013

Folclore dos Estados Unidos (O Coiote e a Tartaruga)

Uma noite, o Bebê Tartaruga estava com muita fome então ele decidiu deixar a segurança do rio em busca de alimento.

Logo ele encontrou um cacto com frutas muito doces.

O bebê tartaruga andou sozinho, comendo e rindo.

O sol forte se levantou e começou a bater no deserto.

Quando o Bebê Tartaruga procurava por mais comida,  percebeu que estava perdido.

A tartaruguinha começou a chorar.

O coiote ouviu o choro e foi investigar.  O Bebê Coiote estava escondido debaixo de um arbusto e  rapidamente o coiote fez planos para o jantar.

“Era uma canção bonita que você estava cantando. Por favor, continue enquanto eu construir uma grande fogueira para cozinhar você”

“Eu não estava cantando. Enfim, meu casco é muito duro. Mesmo o fogo mais quente não pode penetrá-la.”

“Bem, então, eu vou levá-lo ao topo da mais alta montanha e deixá-lo cair sobre as rochas abaixo.”

“Pff! Eu já lhe disse. Meu casco é tão espesso que eu vou simplesmente cair fora das rochas e fugir.”

Coiote pensou muito sobre como botar o Bebê Tartaruga em sua barriga.

“Eu vou te levar para o rio, afogá-lo, e então eu vou te comer.”

“Oh não, por favor, me afogar no rio. Tudo menos isso!”

“Ha! Eu sabia disso.”

“Por favor, continue cantando, é muito agradável”.

“Eu não estou cantando.”

Logo ele que chegou ao rio, o Bebê Coiote jogou a tartaruga na água.

“Coiote bobo. Obrigado por me trazer para casa.”

O coiote tinha sido enganado pelo Bebê Tartaruga. Ele ficou tão irritado que ele pulou no rio, mas a corrente era forte e que levou o coiote rio abaixo.

O Bebê Tartaruga estava seguro agora e nunca se afastou demais das margens do rio.

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Notas:

A Estória do Coiote e da Tartaruga foi um vídeo feito por Tim F. Salinas da tribo Navajo e colocado no YouTube.com em 10 de dezembro de 2006.  Não se sabe exatamente o local onde foi gravado, mas uma equipe do Pasadena City College fez a gravação em 2003.

Como outras histórias nativo americanas, a história do Coiote e da Tartaruga tem uma lição para o público. As crianças também podem aprender que não é sábio se desviar para longe do local onde você está seguro, e esta lição é voltada principalmente para crianças, comparando elas com a tartaruguinha, que também é inexperiente e acaba por afastar-se do rio. Todas as tradições orais servem a um propósito na sua cultura, e além de entretenimento, essa estórias ensinam muitas lições.


Fonte:
http://casadecha.wordpress.com/category/estados-unidos/

I Jornada Literária do Vale Histórico (18 a 20 de Setembro, em Lorena e Guaratinguetá/SP)

clique sobre a imagem para ampliar
Jornada Literária discute literatura e oralidade no Vale do Paraíba
Evento contará com a presença de escritores como Pedro Bandeira e Thiago Mello

Entre os dias 18 e 20/09 acontece em Lorena e Guaratinguetá, no Vale do Paraíba, a I Jornada Literária do Vale Histórico. Realizada pelo Instituto Uka, do Pólo de Leitura Vale Lendo e da Academia de Letras de Lorena, o evento reúne importantes nomes da literatura infantil e juvenil. O tema desta primeira edição da Jornada Literária será “Tradições Orais e Literatura”. Segundo o escritor Daniel Munduruku, o tema é uma referência necessária à discussão sobre literatura e oralidade. “Quis iniciar com este tema por entender que antes da escrita existiu e existe a oralidade. Ela é a mãe da escritura. Pensando assim quis unir autores que vêm de uma tradição oral e que agora estão usando a escrita como instrumento de divulgação da oralidade. Também quis convidar autores negros que trabalham a questão africana em seus escritos. Estes são os que irão ter um contato direto com as crianças leitoras”, contou Munduruku à Liga Brasileira de Editoras (Libre).

PROGRAMAÇÃO

Dia 18/9
 
Manhã

08h00 - EE Regina Bartelega recebe:
Rogério Andrade Barbosa e Roni Wasiry

09h00 - EM Fernando Alencar Pinto recebe (Guaratinguetá):
Maria Inez do Espírito Santo e Tiago Hakiy

08h00 – EE Geraldo Alckimin recebe:
Cristino Wapichana e Matè

Tarde

14h00 - Instituto Santa Teresa recebe:
Maria Inez do Espírito Santo e Tiago Hakiy

16h00 - EM Mário Covas recebe:
Maria Inez do Espírito Santo e Tiago Hakiy

14h00 – EM Aldelina Alves Ferraz recebe:
Rogério Andrade Barbosa e Roni Wasiry

Noite

Palestra Magna com Pedro Bandeira
Tema: “Como conquistar o aluno que não gosta de ler?”
Local: Teatro São Joaquim

Dia 19/9

Manhã
 
07h30 - CAIC recebe:
Heloisa Pires e Daniel Munduruku

10h00 - EE Francisco Marques recebe:
Heloisa Pires e Daniel Munduruku

07h30 - EM Mário Covas recebe
Rogério Andrade Barbosa e Roni Wasiry

07h30 – EM Ruy Brasil Pereira recebe:
Maria Inez do Espírito Santo e Cristino Wapichana

Tarde

14h00 - CAIC recebe:
Maria Inez do Espírito Santo e Tiago Hakiy

14h00 - EM Ruy Brasil Pereira recebe:
Cristino Wapichana e Matè

16h00 - EE Francisco Marques recebe:
Cristino Wapichana e Matè

15h00 - Obra Auxiliar de Santa Cruz recebe
Daniel Munduruku e Heloisa Pires

Noite

Mesa redonda: A presença do feminino nas mitologias
Heloisa Pires, Maria Inez do Espírito Santo e Matè
Mediação: Rogério Andrade Barbosa
Local: Auditório São José - FATEA

Dia 20/9

Manhã

Instituto Santa Teresa Recebe:
08h00 - Daniel Munduruku e Heloisa Pires

Patrocínio de São José recebe:
10h00 – Daniel Munduruku e Heloisa Pires

09h00- EM Aldelina Alves Ferraz recebe:
Maria Inez do E. Santo e Tiago Hakiy

Tarde

14h00 – EM Geraldo Alckmin recebe:
Matè e Cristino Wapichana

Noite

19h00 - Apresentação teatral: “Meu avô Apolinário” baseada na obra de Daniel Munduruku

20h00 – Palestra Magna com Thiago de Mello

Seminário Valelendo – 20/09
Local: Auditório Luís Pasin – FATEA

09h00 - Abertura oficial do evento

09h15 – Abertura cultural com Cristino Wapichana e criança leitora

09h30 – Roda de Conversa sobre políticas públicas regionais para o livro, a leitura e a literatura (representantes de instituições do Vale Histórico)

11h30 – Palavras encantadas – com Thiago de Mello

12h45 – Almoço

14h00 – sorteio da pontualidade (sorteio de livros para os presentes)

14h10 – Oficinas diversas

1ª Oficina:  “Diário de Leitura: a ideia é simples”
Prof. Cida

2ª Oficina: Literatura Indígena e Afro no cardápio de Leitura
Heloisa Pires e Maria Inez do Espírito Santo

3ª Oficina: “Ilustração e Poesia”
Denise Poeta

4ª Oficina: “Mediação de Leitura - Uma ponte entre o Livro e o Leitor.”
Marcilene Dutra Bispo e Mediadores Mirins do Projeto Lervida

Serviço
I Jornada Literária do Vale Histórico
18 a 20 de Setembro - 2013
Lorena e Guaratinguetá (SP)
Realização: Instituto UKA - Pólo de Leitura ValeLendo - Academia de Letras de Lorena.
Parceria: Instituto C&A - Prefeitura Municipal de Lorena - SP - Instituto Santa Teresa/FATEA - Unisal

Fonte:
Daniel Munduruku

Guilherme de Azevedo (Alma Nova)VI

foi mantida a grafia original.
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FLOR DA MODA

Alice, o turbilhão das salas elegantes,
Começa a entristecer; ninguém sabe porquê!
Aquela flor doente amava muito dantes
As festas, o ruído, as coisas deslumbrantes,
Agora é desolada e penso que descrê.

Que tédio se abrigou na vaga transparência
Dum todo tão subtil, aéreo, divinal,
— moderna criação da santa decadência,
Que alia gentilmente às pompas da regência
Os indecisos tons dum ar sentimental?!

Arcanjo por quem és! Desvenda esse mistério
Das vagas opressões da tua insónia má,
E diz-me o teu sonhar visão do baixo império,
Vestal que amas o gás e tens o fogo etéreo
Na conta duma cousa um tanto usada já!

No idílio pastoril das noites venturosas
Não sonhas tu decerto, e raro o hão de sonhar
Num mundo todo nosso, as belas desditosas
Que em trinta anos de fogo as suas velhas rosas
Nos grandes vendavais sentiram desbotar!

E quando a augusta voz do mar ou das florestas
Abala o coração dos justos e dos bons,
Bem sei que tu não vais, fugindo às grandes festas,
No amor das castelãs cismar entre giestas
Com medo que te acorde a bulha dos wagons!

Eu sei talvez teu mal! A febre que hoje sentes
Abrasa a geração de lírios ideais
Que passam, como tu, galantes e doentes,
Dum amor desordenado às causas dissolventes,
Às vozes da guitarra e aos cantos sensuais!...

E tem de os consumir a grande nostalgia
Dum mundo mais à moda e menos trivial,
Onde haja um grande caso, ao menos, cada dia
E se possa esquecer a vil monotonia
De tudo que nos cerca: — Alice eis o teu mal!

No entanto eu sei que és boa: apenas das insónias
A febre, mãe cruel de estranhas sensações,
Na fria placidez do gás e das begónias
Constrói na tua mente as grandes babilónias
Dum mundo extraordinário e monstro de visões!

Tocou-te um mal galante: és ténue e caprichosa:
És boa e fazes gala em que te julguem má.
E sentes sobretudo uns tédios cor-de-rosa
E os êxtases cruéis duma mulher nervosa:
Se existe a mulher-flor, tu és a flor de chá!

E chame-te o bom Deus ao foco aonde brilha
Aquela eterna luz, amor dos imortais,
Que tu amortalhada em rendas e escumilha
Achar deves, talvez, da moda, ó terna filha,
O céu modesto um pouco e os anjos triviais!

Ó máquinas febris! Eu sinto a cada passo,
Nos silvos que soltais, aquele canto imenso,
Que a nova geração nos lábios traz suspenso
Como a estância viril duma epopeia de aço!
Enquanto o velho mundo arfando de cansaço

Prostrado cai na luta; em fumo negro e denso
Levanta-se a espiral desse moderno incenso
Que ofusca os deuses vãos, anuviando o espaço!

Vós sois as criações fulgentes, fabulosas,
Que, vibrantes, cruéis, de lavas sequiosas,
Mordeis o pedestal da velha Majestade!

E as grandes combustões que sempre vos consomem
Começam, num cadinho, a refundir o homem
Fazendo ressurgir mais larga a Humanidade!

Fonte:
http://luso-livros.net/

Rafael Zenato (Desconstrução)

Rafael é aluno da Oficina On Line de Escrita Criativa, de Marcelo Spalding (http://www.marcelospalding.com/wwcursosCRIATIVA.php)
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Já era tarde quando encontrou Chico. Quieto, retraído, numa mesa de bar. Papel e caneta na mão.

- Vem cá, você não é o cantor, aquele?

Chico bebia uma dose de uísque num copo improvisado, daqueles de boteco. Levantou os olhos de curiosidade.

- Você é o cantor, sim. Olha bem pra mim. Aquele do olho azul, como é mesmo o nome?

Chico esboçava um sorriso, se divertindo com a dúvida do desconhecido. Seu uísque não tinha gelo. Nem uma pedrinha sequer.

- Caetano! É Caetano! Não, espera. Caetano é aquele outro, o baiano.

Os olhos azuis eram encarados com atenção pelo homem.

- Chico... Chico Buarque! Rá! Eu sabia! Muito prazer - e estendeu a mão.

Chico bebeu o último gole do seu uísque. Cumprimentou o homem.

- Muito prazer. E você, quem é?

- Ah, eu não sou ninguém, não. Sou um desconhecido. Tenho a minha família, meus filhos, essas coisas. Meu emprego, graças a Deus. Trabalho no ramo de construção, sabe? Essa casa aí do outro lado da rua, tá vendo? Fui eu que ergui. Quer dizer, não tá pronta ainda. Mas a gente tá erguendo, eu e os colegas aí.

- Bacana, bacana mesmo - respondeu Chico.

- Olha, desculpa eu me meter assim... mas o que o senhor tava escrevendo aí? É letra de música? - perguntou o desconhecido.

- É, é uma letra, sim. Uma canção nova que eu tô trabalhando.

- Sobre o que é? - perguntou o homem, curioso.

- É sobre você - respondeu Chico.

O desconhecido ri.

- Ah, você é um brincalhão, Chico. Não é à toa que é artista.

Chico rabisca mais um verso sobre o papel. O desconhecido estende a mão mais uma vez.

- Não quero atrapalhar, não, viu? Vou deixar você fazer a sua música. Foi um prazer.

Enquanto o pedreiro seguia em direção à rua, Chico murmurava, como se falasse com a folha de papel.

- Toma cuidado ao atravessar a rua, hein. Vê se não vai morrer aí na contramão.

Fonte:
http://escritacriativaonline.blogspot.com.br/search/label/Di%C3%A1logos

Lya Luft (A Mentirosa Liberdade)

"Liberdade não vem de correr atrás de 'deveres' impostos de fora, mas de construir a nossa existência"
Comecei a escrever um novo livro, sobre os mitos e mentiras que nossa cultura expõe em prateleiras enfeitadas, para que a gente enfie esse material na cabeça e, pior, na alma – como se fosse algodão-doce colorido. Com ele chegam os medos que tudo isso nos inspira: medo de não estar bem enquadrados, medo de não ser valorizados pela turma, medo de não ser suficientemente ricos, magros, musculosos, de não participar da melhor balada, do clube mais chique, de não ter feito a viagem certa nem possuir a tecnologia de ponta no celular. Medo de não ser livres.

Na verdade, estamos presos numa rede de falsas liberdades. Nunca se falou tanto em liberdade, e poucas vezes fomos tão pressionados por exigências absurdas, que constituem o que chamo a síndrome do "ter de". Fala-se em liberdade de escolha, mas somos conduzidos pela propaganda como gado para o matadouro, e as opções são tantas que não conseguimos escolher com calma. Medicados como somos (a pressão, a gordura, a fadiga, a insônia, o sono, a depressão e a euforia, a solidão e o medo tratados a remédio), cedo recorremos a expedientes, porque nossa libido, quimicamente cerceada, falha, e a alegria, de tanta tensão, nos escapa.

Preenchem-se fendas e falhas, manchas se removem, suspendem-se prazeres como sendo risco e extravagância, e nos ligamos no espelho: alguém por aí é mais eficiente, moderno, valorizado e belo que eu? Alguém mora num condomínio melhor que o meu? Em fileira ao longo das paredes temos de parecer todos iguais nessa dança de enganos. Sobretudo, sempre jovens. Nunca se pôde viver tanto tempo e com tão boa qualidade, mas no atual endeusamento da juventude, como se só jovens merecessem amor, vitórias e sucesso, carregamos mais um ônus pesadíssimo e cruel: temos de enganar o tempo, temos de aparentar 15 anos se temos 30, 40 anos se temos 60, e 50 se temos 80 anos de idade. A deusa juventude traz vantagens, mas eu não a quereria para sempre: talvez nela sejamos mais bonitos, quem sabe mais cheios de planos e possibilidades, mas sabemos discernir as coisas que divisamos, podemos optar com a mínima segurança, conseguimos olhar, analisar e curtir – ou nos falta o que vem depois: maturidade?

Parece que do começo ao fim passamos a vida sendo cobrados: O que você vai ser? O que vai estudar? Como? Fracassou em mais um vestibular? Já transou? Nunca transou? Treze anos e ainda não ficou? E ainda não bebeu? Nem experimentou uma maconhazinha sequer? E um Viagra para melhorar ainda mais? Ainda agüenta os chatos dos pais? Saiba que eles o controlam sob o pretexto de que o amam. Sai dessa! Já precisa trabalhar? Que chatice! E depois: Quarenta anos ganhando tão pouco e trabalhando tanto? E não tem aquele carro? Nunca esteve naquele resort?

Talvez a gente possa escapar dessas cobranças sendo mais natural, cumprindo deveres reais, curtindo a vida sem se atordoar. Nadar contra toda essa louca correnteza. Ter opiniões próprias, amadurecer, ajuda. Combater a ânsia por coisas que nem queremos, ignorar ofertas no fundo desinteressantes, como roupas ridículas e viagens sem graça, isso ajuda. Descobrir o que queremos e podemos é um bom aprendizado, mas leva algum tempo: não é preciso escalar o Himalaia social nem ser uma linda mulher nem um homem poderoso. É possível estar contente e ter projetos bem depois dos 40 anos, sem um iate, físico perfeito e grande fortuna. Sem cumprir tantas obrigações fúteis e inúteis, como nos ordenam os mitos e mentiras de uma sociedade insegura, desorientada, em crise. Liberdade não vem de correr atrás de "deveres" impostos de fora, mas de construir a nossa existência, para a qual, com todo esse esforço e desgaste, sobra tão pouco tempo. Não temos de correr angustiados atrás de modelos que nada têm a ver conosco, máscaras, ilusões e melancolia para aguentar a vida, sem liberdade para descobrir o que a gente gostaria mesmo de ter feito.

Fonte:
http://arquivoetc.blogspot.com/2009/03/lya-luft-mentirosa-liberdade.html

Bernardo Guimarães (Poemas Humorísticos e Irônicos :Ao Charuto)

Ode

Vem, ó meu bom charuto, amigo velho,
Que tanto me regalas;
Que em cheirosa fumaça me envolvendo
Entre ilusões me embalas.

Oh! que nem todos sabem quanto vale
Uma fumaça tua!
Nela vai passear do bardo a mente
Às regiões da lua.

E por lá embalado em rósea nuvem
Vagueia pelo espaço,
Onde amorosa fada entre sorrisos
O toma em seu regaço;

E com beijos de requintado afeto
A fronte lhe desruga,
Ou com as tranças d’ouro mansamente
As lágrimas lhe enxuga.

Ó bom charuto, que ilusões não geras!
Que tão suaves sonhos!
Como ao te ver atropelados correm
Cuidados enfadonhos!

Quantas penas não vão por esses ares
Com uma só fumaça!...
Quanto negro pesar, quantos ciúmes,
E quanta dor não passa!

Tu és, charuto, o pai dos bons conselhos,
O símbolo da paz;
Para em santa pachorra adormecer-nos
Nada há mais eficaz.

Quando Anarda com seus caprichos loucos
Me causa dissabores,
Em duas baforadas mando embora
O anjo e seus rigores.

***
Quanto lastimo os nossos bons maiores,
Os Gregos e os Romanos,
Por não te conhecerem, nem gozarem
Teus dotes soberanos!

Quantos males talvez não pouparias
À triste humanidade,
Ó bom charuto, se te possuísse
A velha antigüidade!

Um charuto na boca de Tarquínio
Talvez lhe dissipara
Esse ardor, que matou Lucrécia linda,
Dos mimos seus avara.

Se o peralta do Páris já soubesse
Puxar duas fumaças,
Talvez com elas entregara aos ventos
Helena e suas graças,

E a régia esposa em paz com seu marido
Dormindo ficaria;
E a Tróia antiga com seus altos muros
Inda hoje existiria.

***

Quem dera ao velho Mário um bom cachimbo
Que lhe abrandasse as sanhas,
Para Roma salvar, das que sofrera,
Catástrofes tamanhas!

Mesmo Catão, herói trombudo e fero,
Talvez se não matasse,
Se a raiva que aos tiranos consagrava,
Fumando evaporasse.

***

Fumemos pois! — Ambrósio, traze fogo...
Puff!... oh! que fumaça!
Como me envolve todo entre perfumes,
Qual véu de nívea cassa!

Vai-te, alma minha, embarca-te nas ondas
Desse cheiroso fumo,
Vai-te a peregrinar por essas nuvens,
Sem bússola, nem rumo.

Vai despir no país dos devaneios
Esse ar pesado e triste;
Depois, virás mais lépida e contente,
Contar-me o que lá viste.
 
Ouro Preto, 1857