segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Monteiro Lobato (Viagem ao Céu) XI – Continua a Viagem


Depois de algumas horas de bem-dormido sono, Pedrinho acordou e viu no relógio Terra, suspenso no céu da Lua, que o continente americano vinha de novo aparecendo — sinal de seis horas da manhã lá no sítio. Pedrinho foi ter com São Jorge, que estava longe dali dando ordens ao dragão. Era um dragão verde, escamudo, com dois tocos de asas nas costas. O gosto dele era enrolar a cauda como saca-rolha, com a ponta de flecha erguida para cima. Volta e meia punha de fora a língua cor de tomate, também com ponta de flecha.

Pedrinho explicou ao santo que iam continuar a viagem pelos domínios celestes, não só porque tinham vindo com esse fim como porque era indispensável descobrirem o paradeiro do Doutor Livingstone e salvarem o Burro Falante, que com certeza andava enroscado na cauda de algum cometa.

— Não sei se poderão salvar o Doutor Livingstone — observou São Jorge. — Se ele foi projetado da Lua pela força do tal pó maravilhoso, o mais certo é estar transformado em satélite da Lua.

— Já pensei nisso — tornou Pedrinho apreensivo. — Vovó diz que a força de atração dos astros puxa todos os corpos para o centro deles. Quando a gente joga para o ar uma laranja, a laranja sobe até certa altura e depois volta. Que é que a faz voltar? Justamente a força de atração que puxa todos os corpos para o centro deles. Enquanto a força que jogou a laranja é maior que a força de atração que puxa a laranja, a laranja sobe; quando a força de atração se torna maior, a laranja cai.

São Jorge admirou-se dos conhecimentos de mecânica daquele menino.

— O pó de pirlimpimpim que o Visconde cheirou — prosseguiu Pedrinho — era muito pouco, não dava nem para levá-lo até à Terra. E como ele não caiu de novo sobre a Lua e não podia ter chegado à Terra, o certo é estar parado na zona em que a força de atração da Terra empata com a força de atração da Lua — e nesse caso não sobe nem desce — fica toda vida girando em redor da Lua como um satélite. Acho que foi o que sucedeu — concluiu Pedrinho com a maior gravidade.

— Também acho — disse Emília.

Pedrinho riu-se com ar desdenhoso.

— A boba! “Também acho!...” Eu acho com base, mas que base tem você para achar?

— Eu acho com base no meu desejo de achar — respondeu Emília.

— Deseja, então, pestinha, que o Visconde fique toda vida como satélite da Lua?

— Desejo, sim. Ando me implicando com esse Doutor Livingstone. É sério demais. Não brinca. Não faz o que eu mando. Está mesmo bom para satélite da Lua. Quando voltarmos à Terra, vou pedir a Tia Nastácia para fazer um Visconde igualzinho ao antigo. Aquele é que era o bom — era o “legímaco”.

Emília não dizia “legítimo”, dizia “legímaco”. Pedrinho e Narizinho também andavam a implicar-se com o Doutor Livingstone, de modo que deram razão à boneca e resolveram deixá-lo como satélite da Lua. Mas o Burro Falante precisava ser salvo.

— Esse, sim — concordou Emília. — Temos de virar de cabo a rabo os mundos celestes até descobri-lo, porque Dona Benta ficará furiosa se o deixarmos enroscado nalguma cauda de cometa. Sabe, São Jorge, que ele é o único burro falante que existe na Terra?

— Burros falantes de dois pés — respondeu o santo — conheci numerosos em minha vida terrena, mas de quatro jamais ouvi falar de algum. Mas se esse precioso burro estiver enganchado num rabo de cometa, como vão fazer vocês para alcançar esse cometa?

Pedrinho embatucou. Não havia pensado naquilo. Mas Emília veio com uma daquelas idéias do tamanho de bondes.

— Nada mais fácil — disse ela. — Basta arranjarmos um cometa mais veloz que o do burro; montamos nele e o tocamos a chicote e espora atrás do cometa do burro.

— Isso é perigoso — declarou São Jorge. — Tudo no espaço está muito bem regulado. Cada astro segue o seu caminho certo, sempre na mesma velocidade. Se um deles se apressasse demais ou diminuísse a marcha, a “harmonia universal” estaria destruída.

— Para nós não há impossíveis — afirmou Pedrinho com orgulho. — Quem tem no bolso este pó mágico, zomba das leis da natureza. Sabe o que podemos fazer? Montar num cometa e esfregar no nariz dele um pouco de pirlimpimpim — e juro que ele alcança o outro num instantinho! Ah, São Jorge, o senhor não faz idéia do que é o pó de pirlimpimpim!...

O santo ficou atrapalhado. Realmente não conhecia o tal pó, mas o fato de o pirlimpimpim ter trazido aquelas crianças à Lua queria dizer que era na verdade o mais mágico de todos os pós existentes, e capaz de outras coisas assombrosas. Por isso não duvidou da possibilidade de caçarem um cometa montados em outro. Apenas insistiu num ponto: que se eles fizessem isso, o mais certo seria atrapalharem a “harmonia universal”, causando os mais sérios transtornos no universo.

— Admito a hipótese — respondeu Pedrinho com a importância dum Bonaparte diante das pirâmides — mas acha então que devemos perder o nosso Burro Falante? A tal “harmonia universal” que me perdoe. Entre ela e o nosso burro, não tenho o direito de escolher.

— Ela que se fomente! — interveio Emília.

São Jorge meditou uns instantes e depois disse:

— Bom, façam lá como quiserem, mas muito receio que por causa desse burro venha a estragar-se o maravilhoso equilíbrio celeste a que chamo “harmonia universal”, e existe desde os começos do mundo. Meu conselho é um só: prudência, prudência e mais prudência.

Pedrinho ficou um tanto abalado com aquelas altíssimas palavras, e Emília de novo meteu o bedelho.

— Senhor capadócio, para nós esse burro vale mais que todas as harmonias do mundo e se o universo ficar atrapalhado, pior para ele. Havemos de pegar o burro, haja o que houver.

São Jorge ainda lembrou uma coisa. Lembrou que como o espaço é infinito, e os cometas não são inúmeros, ninguém vai pegando um cometa com a facilidade com que se pega um animal no pasto.

A discussão estava se prolongando. Por fim Narizinho veio com uma proposta que foi aceita.

— Sabem do que mais? — disse ela. — O verdadeiro é deixarmos isso para depois. Se em nossa viagem pelo espaço encontrarmos algum cometa que sirva, então pularemos nele e sairemos em procura do burro. Se não encontrarmos cometa nenhum, daremos outro jeito qualquer. Agora estou com vontade de ir ao planeta Marte, para ver se realmente existem aqueles canais de que os astrônomos tanto falam. Marte me parece um planeta muito simpático.

Todos aceitaram a idéia e imediatamente começaram os preparativos da viagem. Narizinho foi à cozinha da cratera despedir-se de Tia Nastácia. Encontrou-a de nariz muito comprido, fungando e resmungando enquanto fritava uns bolinhos para São Jorge. A pobre negra nem ânimo de falar tinha. Só suspirava — uns suspiros vindos lá do fundo das crateras de seu coração.

— Pois é, Tia Nastácia — foi dizendo a menina. — Vamos partir para o planeta Marte e você comporte-se, hein? Perigo não há nenhum. São Jorge já levou o dragão para longe daqui, de modo que nem os seus bufos você ouvirá. E não se esqueça de que a maior honra para uma cozinheira como você é ficar fazendo bolinhos para um santo de tanta importância.

— Eu sei, eu sei — soluçou Tia Nastácia. — Vou fazer tudo direitinho. Mas ninguém pode governar o coração — e o meu coração está que é uma pontada atrás da outra. Vai demorar muito essa viagem?

— Não — respondeu a menina. — Vamos apenas dar um pulo até Marte e outros planetas. Quero muito conhecer os anéis de Saturno.

Tia Nastácia benzeu-se.

— Pois até anel esse diabo tem? É algum dragão?

Narizinho, com preguiça de explicar à pobre negra o que era, prometeu contar tudo na volta.

— E agora, adeus! Se você fizer cara triste, isso até ofende ao santo. Mostre-se alegre e de boa vontade. Não desmoralize o Sítio do Pica-Pau Amarelo...

Tia Nastácia arrancou um profundo suspiro; prometeu que sim e voltou à frigideira enquanto a menina saía correndo, leve como pluma, ao encontro dos outros.

— Tudo pronto? — perguntou.

— Sim — respondeu Pedrinho. — Já dividi o pó em pitadas. Tome a sua — e deu-lhe uma pitadinha de pirlimpimpim, dizendo: — Temos todos de aspirá-lo ao mesmo tempo, quando eu disser três. Vamos agora nos despedir de São Jorge.

As despedidas foram quase comoventes. Emília chegou a armar cara de choro, e ao beijar a mão do santo prometeu trazer-lhe um presente lá das regiões estelares.

— Que poderá ser? — indagou São Jorge.

— Um fio da Cabeleira de Berenice serve?

São Jorge, comovido, deu-lhe um beijo na testa. Terminados os adeuses, Pedrinho começou a contar:

— Um... dois... e três! ...

O fiunnn foi agudíssimo — e lá se sumiram todos na imensidão do espaço.
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Continua … XII – O Planeta Marte
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu & O Saci. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. II. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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