sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Carlos Drummond de Andrade (O Poeta Singrando Horizontes VIII)


A UM BRUXO, COM AMOR

Em certa casa da Rua Cosme Velho
(que se abre no vazio)
venho visitar-te; e me recebes
na sala trajestada com simplicidade
onde pensamentos idos e vividos
perdem o amarelo
de novo interrogando o céu e a noite.

Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro.
Daí esse cansaço nos gestos e, filtrada,
uma luz que não vem de parte alguma
pois todos os castiçais
estão apagados.

Contas a meia voz
maneiras de amar e de compor os ministérios
e deitá-los abaixo, entre malinas
e bruxelas.
Conheces a fundo
a geologia moral dos Lobo Neves
e essa espécie de olhos derramados
que não foram feitos para ciumentos.

E ficas mirando o ratinho meio cadáver
com a polida, minuciosa curiosidade
de quem saboreia por tabela
o prazer de Fortunato, vivisseccionista amador.
Olhas para a guerra, o murro, a facada
como para uma simples quebra da monotonia universal
e tens no rosto antigo
uma expressão a que não acho nome certo
(das sensações do mundo a mais sutil):
volúpia do aborrecimento?
ou, grande lascivo, do nada?

O vento que rola do Silvestre leva o diálogo,
e o mesmo som do relógio, lento, igual e seco,
tal um pigarro que parece vir do tempo da Stoltz e do gabinete Paraná,
mostra que os homens morreram.
A terra está nua deles.
Contudo, em longe recanto,
a ramagem começa a sussurar alguma coisa
que não se estende logo
a parece a canção das manhãs novas.
Bem a distingo, ronda clara:
É Flora,
com olhos dotados de um mover particular
ente mavioso e pensativo;
Marcela,
a rir com expressão cândida (e outra coisa);
Virgília,
cujos olhos dão a sensação singular de luz úmida;
Mariana, que os tem redondos e namorados;
e Sancha, de olhos intimativos;
e os grandes, de Capitu,
abertos como a vaga do mar lá fora,
o mar que fala a mesma linguagem
obscura e nova de D. Severina
e das chinelinhas de alcova de Conceição.
A todas decifrastes íris e braços
e delas disseste a razão última e refolhada
moça, flor mulher flor
canção de mulher nova...
E ao pé dessa música dissimulas (ou insinuas, quem sabe)
o turvo grunhir dos porcos, troça concentrada e filosófica
entre loucos que riem de ser loucos
e os que vão à Rua da Misericórdia e não a encontram.
O eflúvio da manhã,
quem o pede ao crepúsculo da tarde?
Uma presença, o clarineta,
vai pé ante pé procurar o remédio,
mas haverá remédio para existir
senão existir?
E, para os dias mais ásperos, além
da cocaína moral dos bons livros?
Que crime cometemos além de viver
e porventura o de amar
não se sabe a quem, mas amar?

Todos os cemitérios se parecem,
e não pousas em nenhum deles, mas onde a dúvida
apalpa o mármore da verdade, a descobrir
a fenda necessária;
onde o diabo joga dama com o destino,
estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro,
que resolves em mim tantos enigmas.

Um som remoto e brando
rompe em meio a embriões e ruínas,
eternas exéquias e aleluias eternas,
e chega ao despistamento de teu pencenê.
O estribeiro Oblivion
bate à porta e chama ao espetáculo
promovido para divertir o planeta Saturno.
Dás volta à chave,
envolves-te na capa,
e qual novo Ariel, sem mais resposta,
sais pela janela, dissolves-te no ar.

A INGAIA CIÊNCIA

A madureza, essa terrível prenda
que alguém nos dá, raptando-nos, com ela,
todo sabor gratuito de oferenda
sob a glacialidade de uma estela,

a madureza vê, posto que a venda
interrompa a surpresa da janela,
o círculo vazio, onde se estenda,
e que o mundo converte noma cela.

A madureza sabe o preço exato
dos amores, dos ócios, dos quebrantos,
e nada pode contra sua ciência

e nem contra si mesma. O agudo olfato,
o agudo olhar, a mão, livre de encantos,
se destroem no sonho da existência.

A LOJA FEMININA

Cinco estátuas recamadas de verde
na loja, pela manhã, aguardam o acontecimento.
é próprio de estátuas aguardar sem prazo e cansaço
que os fados se cumpram ou deixem de cumprir-se.
Nenhuma ruga no imobilismo
de figurinos talhados para o eterno
que é, afinal, novelo de circunstâncias.
Iguais as cinco, em postura vertical,
um pé à frente do outro, quase suspenso
na hipótese de vôo, que não se consumará,
em direção da porta sonora
a ser aberta para alguém desconhecido
- Vênus certamente, face múltipla -
assomar em tom de pesquisa,
apontando o estofo, o brinco, o imponderável
que as estátuas ocultam em sigilo de espelhos.
Passaram a noite em vigília,
nasceram ali, habitantes de aquário,
programadas em uniformes verde-musgo
para o serviço de bagatelas imprescindíveis.
Sabem que Vênus cedo ou tarde,
provavelmente tarde e sem pintura,
chegará.
Chega, e o simples vulto
aciona as esculturas.
Ao cintilar de vitrinas e escaninhos,
Ao cintilar de vitrinas e escaninhos,
objetos deixam de ser inanimados.
Antes de chegar à pele rósea,
a pulseira cinge no ar o braço imaginário.
O enfeite ocioso ganha majestade
própria de divinos atributos.
Tudo que a nudez torna mais bela
acende faíscas no desejo.
As estátuas sabem disto e propiciam
a cada centímetro de carne
uma satisfação de luxo erótico.
O ritmo dos passos e das curvas
das cinco estátuas vendedoras
gera no salão aveludado
a sensação de arte natural
que o corpo sabe impor à contingência.
Já não se tem certeza se é comercio
ou desfile de ninfas na campina
que o spot vai matizando em signos verdes
como tapeçaria desdobrante
do verde coletivo das estátuas.
Hora de almoço.
Dissolve-se o balé sem música no recinto.
Não há mais compradoras. Hora de sol
batendo nos desenhos caprichosos
de manso aquário já marmorizado.
As estátuas regressam à postura
imóvel de cegonhas ou de guardas.
São talvez manequins, de moças que eram.
O viço humano perde-se no artifício
de coisas integrantes de uma loja.
Se estão vivas, não sei. Se acaso dormem
o dormir egípcio de séculos,
se morreram (quem sabe), se jamais
existiram, pulsaram, se moveram,
não consigo saber, pois também eu
invisível na loja me dissolvo
nesse enigma de formas permutantes.

A UM AUSENTE

Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enloqueceu, enloquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.

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