OS MORTOS
Ao menos junto dos mortos pode a gente
Crer e esperar n’alguma suavidade:
Crer no doce consolo da saudade
E esperar do descanso eternamente.
Junto aos mortos, por certo, a fé ardente
Não perde a sua viva claridade;
Cantam as aves do céu na intimidade
Do coração o mais indiferente.
Os mortos dão-nos paz imensa à vida,
Dão a lembrança vaga, indefinida
Dos seus feitos gentis, nobres, altivos.
Nas lutas vãs do tenebroso mundo
Os mortos são ainda o bem profundo
Que nos faz esquecer o horror dos vivos.
FLORIPES
Fazes lembrar as mouras dos castelos,
As errantes visões abandonadas
Que pelo alto das torres encantadas
Suspiravam de trêmulos anelos.
Traços ligeiros, tímidos, singelos
Acordam-te nas formas delicadas
Saudades mortas de regiões sagradas,
Carinhos, beijos, lágrimas, desvelos.
Um requinte de graça e fantasia
Dá-te segredos de melancolia,
Da Lua todo o lânguido abandono...
Desejos vagos, olvidadas queixas
Vão morrer no calor dessas madeixas,
Nas virgens florescências do teu sono.
O CEGO DO HARMONIUM
Esse cego do harmonium me atormenta
E atormentando me seduz, fascina.
A minh’alma para ele vai sedenta
Por falar com a sua alma peregrina.
O seu cantar nostálgico adormenta
Como um luar de mórbida neblina.
O harmonium geme certa queixa lenta,
Certa esquisita e lânguida surdina.
Os seus olhos parecem dois desejos
Mortos em flor, dois luminosos beijos
Fanados, apagados, esquecidos...
Ah! eu não sei o sentimento vário
Que prende-me a esse cego solitário,
De olhos aflitos como vãos gemidos!
HORAS DE SOMBRA
Horas de sombra, de silêncio amigo
Quando há em tudo o encanto da humildade
E que o anjo branco e belo da saudade
Roga por nós o seu perfil antigo.
Horas que o coração não vê perigo
De gozar, de sentir com liberdade...
Horas da asa imortal da Eternidade
Aberta sobre tumular jazigo.
Horas da compaixão e da clemência,
Dos segredos sagrados da existência,
De sombras de perdão sempre benditas.
Horas fecundas, de mistério casto,
Quando dos céus desce, profundo e vasto,
O repouso das almas infinitas.
ALELUIA! ALELUIA!
Dentre um cortejo de harpas e alaúdes
Ó Arcanjo sereno, Arcanjo níveo,
Baixas-te à terra, ao mundanal convívio...
Pois que a terra te ajude, e tu me ajudes.
Que tu me alentes nas batalhas rudes,
Que me tragas a flor de um doce alívio
Aos báratros, às brenhas, ao declívio
Deste caminho de ânsias e ataúdes...
Já que desceste das regiões celestes,
Nesse clarão flamívomo das vestes,
Através dos troféus da Eternidade
Traz-me a Luz, traz-me a Paz, traz-me a Esperança
Para a minh’alma que de angústias cansa,
Errando pelos claustros da Saudade!
ROSA NEGRA
Nervosa Flor, carnívora, suprema,
Flor dos sonhos da Morte, Flor sombria,
Nos labirintos da tu’alma fria
Deixa que eu sofra, me debata e gema.
Do Dante o atroz, o tenebroso lema
Do Inferno a porta em trágica ironia,
Eu vejo, com terrível agonia,
Sobre o teu coração, torvo problema.
Flor do delírio, flor do sangue estuoso
Que explode, porejando, caudaloso,
Das volúpias da carne nos gemidos.
Rosa negra da treva, Flor do nada,
Dá-me essa boca acídula, rasgada,
Que vale mais que os corações proibidos!
VOZINHA
Velha, velhinha, da doçura boa
De uma pomba nevada, etérea, mansa.
Alma que se ilumina e se balança
Dentre as redes da Fé que nos perdoa.
Cabeça branca de serena leoa,
Carinho, amor, meiguice que não cansa,
Coração nobre sempre como a lança
Que não vergue, não fira e que não doa.
Olhos e voz de castidades vivas,
Pão ázimo das Páscoas afetivas,
Simples, tranqüila, dadivosa, franca.
Morreu tal qual vivera, mansamente,
Na alvura doce de uma luz algente,
Como que morta de uma morte branca.
NO EGITO
Sob os ardentes sóis do fulvo Egito
De areia estuosa, de candente argila,
Dos sonhos da alma o turbilhão desfila,
Abre as asas no páramo infinito.
O Egito é sempre o amigo, o velho rito
Onde um mistério singular se asila
E onde, talvez mais calma, mais tranqüila
A alma descansa do sofrer prescrito.
Sobre as ruínas d’ouro do passado,
No céu cavo, remoto, ermo e sagrado,
Torva morte espectral pairou ufana...
E no aspecto de tudo em torno, em tudo,
Árido, pétreo, silencioso, mudo,
Parece morta a própria dor humana!
OCASOS
Morrem no Azul saudades infinitas
Mistérios e segredos inefáveis...
Ah! Vagas ilusões imponderáveis,
Esperanças acerbas e benditas.
Ânsias das horas místicas e aflitas,
De horas amargas das intermináveis
Cogitações e agruras insondáveis
De febres tredas, trágicas, malditas.
Cogitações de horas de assombro e espanto
Quando das almas num relevo santo
Fulgem de outrora os sonhos apagados.
E os bracos brancos e tentaculosos
Da Morte, frios, álgidos, nervosos,
Abrem-se pare mim torporizados.
REPOUSO
A cabeça pendida docemente
Em sonhos, sonha o sonhador inquieto,
Repousa e nesse repousar discreto
É sempre o sonho o seu bordão clemente.
Cego desta Prisão impenitente
Da Terra e cego do profundo Afeto,
O sonho é sempre o seu bordão secreto
O seu guia divino e refulgente.
Nem no repouso encontra a paz que espera,
Para lhe adormecer toda a quimera,
Os círculos fatais do seu Inferno.
Entre a calma aparente, a estranha calma,
O seu repouso é sempre a febre d’alma,
O seu repouso é sonho, e sonho eterno.
REQUIESCAT...
Grande, grande Ilusão morta no espaço,
Perdida nos abismos da memória,
Dorme tranqüila no esplendor da glória,
Longe das amarguras do cansaço...
Ilusão, Flor do sol, do morno e lasso
Sonho da noite tropical e flórea,
Quando as visões da névoa transitória
Penetram na alma, num lascivo abraço...
Ó Ilusão! Estranha caravana
de águias, soberbas, de cabeça ufana,
De asas abertas no clarão do Oriente.
Não me persiga o teu mistério enorme!
Pelas saudades que me aterram, dorme,
Dorme nos astros infinitamente...
DOCE ABISMO
Coração, coração! a suavidade,
Toda a doçura do teu nome santo
É como um cálix de falerno e pranto,
De sangue, de luar e de saudade.
Como um beijo de mágoa e de ansiedade,
Como um terno crepúsculo d’encanto,
Como uma sombra de celeste manto,
Um soluço subindo a Eternidade.
Como um sudário de Jesus magoado,
Lividamente morto, desolado,
Nas auréolas das flores da amargura.
Coração, coração! onda chorosa,
Sinfonia gemente, dolorosa,
Acerba e melancólica doçura.
Fonte:
Cruz e Sousa, Poesia Completa, org. de Zahidé Muzart, Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura / Fundação Banco do Brasil, 1993.
Cruz e Sousa, Poesia Completa, org. de Zahidé Muzart, Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura / Fundação Banco do Brasil, 1993.
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