quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Júlia Lopes de Almeida (Órfãos de Heróis... )


Ninguém ignora quanto é assombrosa a imaginação e como é inteligente a pertinácia dos ingleses e dos americanos na concepção e na expansão dos seus anúncios e reclamos. Não lhes bastando os avisos que inserem nos seus jornais de grande tiragem, avidamente lidos por populações que têm mais almas do que formigas têm os maiores formigueiros dos nossos jardins; não lhes bastando os cartazes com que enfeitam as suas cidades, aqueles formidáveis cartazes de fundo vermelho e luzidio, com figuras negras (negros ali só pintados...), em que num zig-zag de raio, rabeia de alto a baixo, em caracteres amarelos, o nome da droga exposta; não lhes bastando os milhares de bilhetes que espalham tumultuariamente pelos seus teatros, salões públicos, gares, vagões, avenidas, cervejarias, etc., eles remetem com a mesma fúria para os mais longínquos pontos do globo, cartões, livros, folhetos, mapas, cromos, pastas, com uma prodigalidade que chega a ser ofensiva.

É imperturbável a seriedade e a convicção com que esses senhores afirmam aos povos de todas as raças, a superioridade das suas indústrias. O que nós não seríamos capazes de fazer com uma fileira cerrada de pontos de exclamação e ainda outra de ahs e de ohs, acompanhados pela régia magnificência de muitos adjetivos pomposos, eles fazem com uma frase seca, onde engastam um superlativo esmagador e positivo.

A tática do anúncio não está, pois, na palavra, está no veículo em que ela vem assentada. Reproduzisse um comerciante, menos negocioso que idealista um verso de Shakspeare em um papel barato, feio, fácil de amarfanhar, e a frase maravilhosa, que lhe servisse de epígrafe ao anúncio, escorregaria pelos bueiros das ruas ou para a caixa do cisco dos quintais, sem ter logrado atrair a atenção de ninguém.

A habilidosa insinuação do anuncio está na boa qualidade do seu papel, na nitidez do seu tipo, na variedade das cores em que está impresso, no seu asseio enfim.

Compreende-se a manha.

Quem terá a coragem de atirar para a cesta dos papeis rasgados um livrinho, em que, sobre o marroquim bem imitado da capa, brilha um emblema dourado, e que, por pequeno e elegante, mais parece uma carteira de lembranças amáveis, do que um catálogo de chapas e de fogões!? Aberto o livro, o desencanto é completo; nas suas curtas páginas acetinadas não há segredos, mas uma imposição clara de fabricante, chamando sem cansaço a atenção da gente para os seus produtos, sempre com a mesma frase, cem vezes repetida, e em que ainda na última página se sente fôlego para outras tantas afirmações.

É de se ficar agoniado! Mas os ingleses e os americanos não ficam, e continuam na sua ambiciosa propaganda, a exportar para as cinco partes do mundo em anúncios de toda a espécie, a doce e encantadora efígie das suas crianças louras, vestidinhas de azul, com margaridas, ou gatos brancos no regaço.

Que vão fazer nos arraiais africanos, nas povoações asiáticas, nos sertões americanos, ou mesmo nas modestas aldeias européias essas carinhas rosadas e gorduchas, feitas para o beijo e a carícia do olhar? Vão dizer em inglês que a manteiga mais pura e saborosa é de tal ou tal fabricante de Londres ou de New York.

E como a menina tem um bom ar de inocência, todos os que entendem o que ali está escrito, lhe prestam a maior fé, e os que o não entendem, guardam, por amor dos seus olhos cor do céu, o cartão em que ela vem estampada entre dizeres comerciais.

Parecia-me a mim, que nesta questão estava tudo feito e explorado, desde as paisagens sugestivas, rotulando latas de leite, onde a vaquinha gorda demonstra
a fertilidade do pasto, até às folhinhas em que, a par das vantagens das pílulas que preconizam, se desvendam os mistérios dos astros e vem a profecia de invernos e verões. Enganei-me; a arte do reclamo não pára, vai alargando cada vez mais a sua fantasia.

Agora, com a mesma parcimônia de vocábulos, os senhores fabricantes de graxa, de vernizes, ou de qualquer outra coisa, encontram jeito de falar ao coração das turbas desprevenidas. Que traição! Já não basta o atrativo para a vista, começa também o assalto ao sentimento!

Senão, vejamos:

Há tempos achei sobre a minha mesa de trabalho um livrinho adornado na capa, brochura, com as armas de Inglaterra, Abri-o e folheei-o; só continha retratos de crianças, nada menos de cinqüenta e seis fototípias nítidas e bonitas. De quem eram? A pequena introdução do livro explicava tudo em poucas linhas: essas cinqüenta e seis crianças, cujos nomes, idade, filiação, morada, etc.., vem indicados sob cada retrato, são apresentadas ao mundo como órfãs dos heróis da guerra sul-africana, a quem o proprietário de uma farinha qualquer alimenta gratuitamente. E bem provam as gravuras a eficácia de tal fécula. São gordos, os bebês!

Tenho-os aqui, diante de mim. Que triste galeria esta! A cada página que viro, as minhas mãos tremem e alastra-se-me no coração, a par de uma grande indignação, uma piedade dolorida por não ter remédio.

Abre o livro por um pequenino de dez meses, repimpado na sua cadeira, muito pelado e sério, com vestido de rendas e sapatinhos brancos; depois vem todo o rancho de infortunados, uns ainda de touca, outros em fraldinhas, com as pernas
grossas, as mãos papudas, o peitinho gordo; uns de boca aberta, mostrando no seu riso cor de rosa as gengivas sem dentes, outros de ar pensativo e todos muito galantes e muito simpáticos, como se para isso não bastasse o sereia crianças e o serem infelizes.

Olhando para o rostinho redondo da penúltima criança do livro, esta formosa Clara Alice Wilson, de dezenove meses, não haverá quem não imagine que deveria ter voado para ela o pensamento do pai ao expirar o seu último alento na guerra, a que talvez se opusessem as suas convicções de homem para só obedecer à sua disciplina de soldado...

Ora, a caridade desse fabricante inglês, que alimenta gratuitamente crianças para exibi-las ao mundo, em proveito seu, é de uma expressão muito singular e absolutamente nova nos anais da filantropia e do anúncio! A pátria que lhe agradeça o desvelo que ele demonstra pelos órfãos dos seus heróis! Se a exploração do sentimento continua desta maneira, não nos deixam nada para a literatura...

Mas não seria por amor disso que eu gritaria, mas por outra causa mais respeitável e delicada. Sempre gostaria de saber com que olhos os senhores do governo da velha Inglaterra olhariam para este álbum de reclamo, se ele algum dia lhes caísse sobre a sua mesa, como caiu sobre a minha, sem eu saber como!

Talvez que levantassem os ombros e nem lessem os nomes dos soldados e dos oficiais, cujas mortes vêm autenticadas sob o retrato de cada órfão; talvez que não ligassem à fileira de rostinhos infantis maior importância que a que ligam aos gordos frades emborcando cerveja nos cartazes dos schops, ou as dançarinas nos anúncios das tabacarias, tão acostumados estão as extravagantes explorações dos seus industriais; contudo, a minha ignorância de mulher sentimental parece que o olhar mudo e inocente destas criancinhas revolver-lhes-ia na consciência maiores reflexões do que todos os discursos das duas câmaras...

Realmente, a fúnebre lembrança desta propaganda é de fazer arrepios. Pobres órfãos inocentes! o que eu acredito que eles espalhem pelo mundo não é a fama da farinha que lhes engrossa o leite, e os prepara para futuras batalhas, mas sim a idéia da injustiça que as fere, o tremendo horror da guerra, que semeia com sangue as mais tristes saudades da terra!

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Livro das Donas e Donzelas. Belém/PA: Núcleo de Educação a Distancia da Universidade da Amazonia (UNAMA).

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