quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Emiliano Perneta (Ilusão) Parte 4


ÉBRIOS...

Muito embora que vão alegres e cantando,
Causa terror assim pelo meio da estrada
Vê-los a caminhar, como um sinistro bando;
Eles têm o nariz vermelho, a face inchada...

Pelas vielas mais escuras, cambaleando,
Sem que queiram saber de nada, de mais nada,
Notâmbulos, senis, passam de quando em quando,
Mas como espectros, que fogem de madrugada...

Nada pior. É bem como uma Messalina,
Que já teve e não tem e anda cumprindo a sina
Misérrima... Porém eu vejo-me tão mal,

Que até chego a sentir saudade dos mendigos,
Da espelunca e dos meus camaradas antigos,
Que eu sei que hão de morrer num catre d’hospital!

***

ESSE PERFUME...

Esse perfume – sândalo e verbenas –
De tua pele de maçã madura,
Sorvi-o quando, ó deusa das morenas!
Por mim roçaste a cabeleira escura.

Mas ó perfídia negra das hienas!
Sabes que o teu perfume é uma loucura:
– E o concedes; que é um tóxico: e envenenas
Com uma tão rara e singular doçura!

Quando o aspirei – as minhas mãos nas tuas –
Bateu-me o coração como se fora
Fundir-se, lírio das espáduas nuas!

Foi-me um gozo cruel, áspero e curto...
Ó requintada, ó sábia pecadora,
Mestra no amor das sensações de um furto!

***

CONVALESCENTE

Ao coronel Joaquim Ignácio

Choveu durante largo tempo; dia
Sobre dia choveu, e ela, doente,
E ela, pálida e triste, em febre, via
Brumoso e feio o céu, continuamente.

E nem uma esperança mais! Chovia.
Mas melhora, e, olhando o céu em frente,
Vê que o céu fulge e se enche de alegria,
De uma alegria de convalescente!

E débil, de mansinho, abre a janela...
O sol casquilha, em ouro se derrama,
Fora na balsa, como uma risada...

E ela: “Que doce por aquela estrada
Pisar agora em luz! Feliz quem ama,
Como eu amo esta vida, que é tão bela!”

***

VERSOS DE OUTRORA

Fui bom. Mas a bondade é coisa trivial:
A infância, a infância fez-me uma guerra infernal.

Fui alegre e sincero. O mundo, a rir, em troco,
Abominavelmente achou que eu era um louco.

Ema, a teus pés caí, beijei-te as mãos, Ester!
Fiz tolices de quem não sabe o que é a mulher...

Com que olhar de altivez, com que fundo desprezo,
Chamastes-me coitado – olhar noutro olhar preso.

Numa ideia de forma esquisita, uma vez,
Aspirei com ardor a esplêndida nudez;

Gente que não entende um fino gozo d’arte,
Que eu era um imoral, disse-o por toda parte.

Indiferentemente eu agora caminho
Sobre rosas em flor ou sobre linho ou espinho;

Automático vou, sem pesar nem prazer;
Ora pois! vamos ver o que é que vão dizer...

Num País de Bárbaros.

***

METAMORFOSES

À Mme. Georgine Mongruel

Sei que há muita nudez e sei que há muito frio,
E uma voracidade horrível, um furor
Tão desmedido que, quando eu acaso rio,
Quantos não estarão torcendo-se de dor.

Conheço tudo, sim, apalpo, indago, espio…
Tenho a certeza que vá eu para onde for,
Como o escaravelho, hei de o ódio sombrio
Ver enodoar até o seio de uma flor.

Mas sei também que há mil aspirações estranhas,
Que havemos de subir montanhas e montanhas,
Que a Natureza avança e o Homem faz-se luz…

Que a Vida, como o sol, um alquimista louro,
Tem o dom de poder mudar a lama em ouro,
E em límpidos cristais esses rochedos nus!

***

NOITE. DEITO-ME AQUI...

Noite. Deito-me aqui ansiosamente, e deito
Este fardo de dor, e esta fadiga enorme.
Faz frio. A neve cai. O vento chora. O leito
Gela. Mas vou dormir, e feliz de quem dorme.

Realmente, a vida foi como um castelo informe,
Como um castelo no ar, como um castelo feito
De papelão, mas construído de tal jeito
Que eu fiz de marionete, ó Marion Delorme!

Hoje, tudo rolou pelos abismos, tudo,
Esse orgulho feroz, essa lança, esse escudo,
As viagens a Citera, e esses brasões reais...

Eu vou dormir, porém. O sono não sei donde
Desce por sobre mim, como uma grande fronde...
Ah que bom de dormir e não acordar mais!

Maio – 1910

***

SONETO

Ao Azevedo Macedo

Que se escreveu, quando se acreditou que tendo dona Alba se ausentado por mui longes terras, nunca tornasse mais a dar novas de sua pessoa.

É noite. E o vento, como a folha d’uma espada,
Corta, sibila, espanca, e zurze, e dilacera,
E eu que vou, eu que vou, sozinho, pela estrada,
Eu não tenho por mim nem um raminho d’hera.

Eu não tenho por mim ninguém, não tenho nada.
Tenho a noite, este horror, esta cruel quimera,
A minha solidão, que a mim me desespera,
E o vento a soluçar, e a túnica gelada...

Mas, bruscamente, enfim, ao longe, ao longe se ergue,
Como um olho de sangue, embora, aquele albergue,
Oh! um espectro mau, que outrora eu conheci!

Dentro dele, eu bem sei, uma profunda vala...
É o covil da traição que envenena e apunhala...
Tenho sono, porém, e vou dormir ali!

Abril – 1905

***

PARA ELA

Quem um dia me vir, caído pelo chão,
Ferido pela dor, que é o teu punhal, Iago,
No meio do sangue, assim, no meio d’um lago,
Como um funâmbulo torcido, mas em vão...

Há de dizer que do meu destino aziago
A culpa teve mais minha imaginação,
Quando errava através da noite, como um vago,
Como um fantasma, só, como um ladrão.

Cada qual, cada qual, com um motivo diverso:
Este me dirá que foi a mania do verso
Que me veio a matar; aquele, outra qualquer...

Ao ver a minha face, em terra, friamente,
Muitos hão de pensar: coitado, era um doente...
Ninguém dirá, porém, que foi esta mulher!...

Fonte:
Emiliano Perneta. Ilusão e outros poemas. Re-edição Virtual. Revista e atualizada por Ivan Justen Santana. Curitiba: 2011

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