Estavam todos prontos para a volta, exceto Emília. Narizinho refletia sobre o seu caso. Por fim pediu a opinião de Tom Mix sobre o melhor meio de a levar.
-Acho que temos de pôr a senhora condessa dentro dum dos ancorotes de mel.
— Que disparate, Tom! Emília ficaria toda melada !...
— Sim, mas há um vazio — respondeu ele. — Creio que ali irá mais comodamente do que na garupa do cavalinho pangaré.
Emília fez cara feia e protestou. O meio de sossegá-la foi permitir-lhe seguir na frente do bando, para que pudesse “ir vendo as coisas antes dos outros”. Estava nascendo nela aquele espírito interesseiro que a ia tornar célebre nos anais da ciganagem.
Puseram-se em marcha. Meia légua adiante Emília pôs-se de pé dentro do barrilzinho e gritou:
— Estou vendo uma coisa esquisita lá na frente! Um monstro com cabeça de porco e “peses” de tartaruga!
Todos olharam, verificando que Emília tinha razão. Era um monstro dos mais estranhos que possa alguém imaginar. Tom Mix puxou da faca e avançou, dizendo a Narizinho que não se mexesse dali. Chegando mais perto percebeu o que era.
— Não é monstro nenhum, princesa! Trata-se do senhor marquês montado num pobre jabuti! Vem metendo o chicote no coitado, sem dó nem piedade.
E assim era. Rabicó dava de rijo no pobre jabuti e ainda por cima o descompunha.
— Caminha, estupor! Caminha depressa, se não te pico de espora até a alma! — gritava ele.
Narizinho ficou indignada com aquilo. Era demais! Vendo-a assim, Tom Mix puxou do revólver e disse:
— Se quer, apeio aquele maroto com uma bala!
— Não é necessário — respondeu ela. — Eu mesma lhe darei uma boa lição. Deixe o caso comigo.
Nisto o marquês alcançou o grupo, e já estava armando cara alegre de sem-vergonha, quando a menina o encarou, de carranca fechada.
— Desça já do pobre jabuti, seu grandíssimo...
Muito espantado daquela recepção, Rabicó foi descendo, todo encolhido.
— E para castigo — continuou a Menina — quem agora vai montar é o senhor jabuti. Vamos, senhor jabuti! Arreie o marquês e monte e meta-lhe a espora sem dó!
O jabuti assim fez, e sossegadamente, porque jabuti não se apressa em caso nenhum, botou os arreios no leitão, apertou o mais que pôde a barrigueira, montou muito devagar e lept! lept! fincou-lhe o chicote como quem surra burro bravo.
— Coin! coin! coin! — berrava o pobre marquês.
— Espora nele, jabuti! — gritava a boneca. — Espora nesse guloso que me comeu os croquetes!
— E também uma boas lambadas por minha conta! — murmurou uma voz fina no ar.
Todos ergueram os olhos. Era a libelinha enganada, que ia passando, veloz como um relâmpago.
O caso foi que naquele dia Rabicó perdeu pelo menos um quilo de peso e pagou pelo menos metade dos seus pecados...
Depois desse incidente puseram-se de novo em marcha, só parando numa figueira de boa sombra, já pertinho do sítio.
— Ponto de almoço! — gritou Narizinho, que estava com uma fome tirana. Desde que saíra de casa só comera os bolinhos trazidos.
Apearam-se. Estenderam no chão uma toalhinha. Tom Mix abriu dois barriletes de mel. Narizinho remexeu no bolso a ver se ainda encontrava algum pedaço de bolo. Não encontrou nem o besouro. Tinha fugido, o ingrato! Puseram-se a manducar mel puro, único alimento que havia.
No melhor da festa — tzzsiu! um passarinho cantou na árvore próxima. A menina ergueu os olhos: era um tiziu.
— Emília — disse ela intrigada — não acha aquele tiziu com um certo ar de Pedrinho?
— Muito! E querem ver que é ele mesmo?
— Pedrinho! Pedrinho! Venha cá, Pedrinho! — gritou a menina, aflita.
O tiziu desceu da árvore, vindo pousar em seu ombro.
— Então que é isso, Pedrinho? Deixo você em casa feito gente e o venho encontrar virado em ave!...
— Assim é — disse ele. — Todos viramos aves lá em casa.
— Como? Explique isso! — gritou Narizinho ansiosa.
— Pois apareceu por lá uma velha coroca, de porrete na mão e cesta no braço. “Menino”, disse-me ela, “é aqui a casa onde moram duas velhas dugudéias em companhia duma menina de nariz arrebitado, muito malcriada?” Furioso com a pergunta, respondi: “Não é da sua conta. Siga seu caminho que é o melhor”. “Ah, é assim”? exclamou ela. “Espere que te curo”! E virou a mim em passarinho, virou vovó em tartaruga e tia Nastácia em galinha preta...
— Que horror! — foi o grito que escapou de Narizinho. — Que vai ser de nós agora? Já sei quem é essa velha! Não pode ser outra! Bem ela me disse que havia de vingar-se...
— Que foi que aconteceu, princesa? — indagou Tom Mix, já de mão no revólver.
— Não sei, Tom, se desta vez nos poderá valer! Você é invencível, mas só de igual para igual. Contra uma bruxa feiticeira, não sei... não sei... e contou o que havia acontecido.
— Deixe tudo por minha conta, princesa, e não duvide da minha arte de resolver situações complicadas. Siga viagem que eu vou dar volta pelos arredores a fim de apanhar essa velha. Juro que hei de trazê-la bem segura, para que desfaça o mal que fez...
— Os anjos digam amém! — suspirou Narizinho mais animada. E dando rédeas ao cavalo pangaré tocou para o sítio com o tiziu ainda pousado no ombro.
Que tristeza! Mal Narizinho apeou no terreiro e já ouviu uma galinha cacarejar lá dentro.
— É tia Nastácia, coitada! — suspirou com o coração apertado.
Entrou. Na sala de jantar viu sentada na rede, costurando, uma tartaruga de óculos.
— Vovó! — gritou a menina com desespero. — Não me conhece mais vovó?
A tartaruga, quieta, quieta...
— Veja, Emília, que desgraça! — gritou Narizinho em lágrimas.
Vovó é aquele bicho cascudo que está na rede! Nastácia é aquela horrenda galinha preta que mais parece urubu...
Emília olhou, olhou e também rompeu em choro, abraçando-se com a menina.
— A única esperança que nos resta é Tom Mix – disse Narizinho. — Mas este caso é tão estranho que receio que nem ele possa nos salvar...
Passaram-se dois dias. Narizinho, inconsolável, não podia conformar-se com a idéia da sua querida avó tartarugando na rede, nem de tia Nastácia volta e meia botando um ovo na cozinha.
— Sossegue, Narizinho. Tom Mix é um danado. De repente reaparece e conserta tudo, como no cinema — dizia a boneca para a consolar.
— Mas está demorando tanto, Emília!...
— Dois dias só. Você sabe que a conta para tudo é três...
Chegou afinal o terceiro dia. As duas amiguinhas, postadas à janela desde cedo, espiavam os horizontes, ansiosas. Nem uma poeira se erguia! Narizinho suspirou.
— Qual, Emília! Está tudo perdido... Se a velha tem o poder de virar os outros em bicho, também pode virar-se a si própria em pedra, árvore, tronco seco — e como há de Tom Mix saber?
— Paciência, Narizinho! Vai ver que de repente ele brota por aí com a velha na ponta da faca...
Palavras não eram ditas e um cachorrinho latiu no terreiro.
— Deve ser ele! — gritou Emília correndo para a porta.
E era mesmo. Era Tom Mix que voltava com dois revólveres apontando e a velha à frente, de braços erguidos.
— É agora! — berrou o cowboy no ouvido da bruxa. – Vais desfazer o mal que fizeste, se não te como os fígados, já neste momento...
Horrorizada com a feiúra da velha, Narizinho fechou os olhos.
Depois criou coragem e os foi abrindo devagarinho. E viu... sabem quem? Viu tia Nastácia a olhar para ela e a dizer:
— Acorde menina! Parece que está com pesadelo...
Narizinho sentou-se na cama, ainda tonta, esfregando os olhos.
— E vovó? — perguntou.
— Lá dentro, costurando.
— E Pedrinho?
— Fazendo uma arapuca no quintal.
— E... e Tom Mix?
— Deixe de bobagens e venha tomar o seu café que já está esfriando — rematou tia Nastácia.
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Continua... O Marquês de Rabicó – I – Os Sete Leitõezinhos
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
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