sábado, 5 de novembro de 2011

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Sítio do Picapau Amarelo III – A Pescaria


III A pescaria

Afinal acabaram as jabuticabas. Somente nos galhos bem lá do alto é que ainda se via uma ou outra, todas furadinhas de vespa.

Rabicó — rom, rom, rom, — volta e meia aparecia por ali por força do hábito. Ficava imóvel, muito sério, esperando que caíssem cascas; mas, como não caísse coisa nenhuma, desistia e retirava-se, rom, rom, rom...

Narizinho também ainda aparecia de vez em quando de comprida vara na mão e nariz para o ar, na esperança de “pescar” alguma coisa.

— Arre, menina! — gritou lá do rio tia Nastácia, numa dessas vezes. — Não chegou quase um mês inteiro de tloc, tloc? Largue disso e venha me ajudar a estender esta roupa, que é o melhor.

Narizinho jogou a vara em cima do leitão, que fez coim! e foi correndo para o rio, com a Emília de cabeça para baixo no bolso do avental.

Lá teve uma idéia: deixar a boneca pescando enquanto ela ajudava a preta.

— Tia Nastácia, faça um anzolzinho de alfinete para a Emília. A coitada tem tanta vontade de pescar...

— Era só o que faltava! — respondeu a negra, tirando o pito da boca. — Eu, com tanto serviço, a perder tempo com bobagem.

— Faz? — insistiu a menina. — Alfinete, tenho aqui um. Linha, há no alinhavo da minha saia. Vara não falta. Faz?

A negra não teve remédio.

— Como não hei de fazer, demoninho? Faço, sim... Mas se ficar atrasada no serviço, a culpa não é minha.

E fez. Dobrou o alfinete em forma de gancho, amarrou-o na ponta duma linha e descobriu uma vara — uma varinha de dois palmos, imaginem! Narizinho completou a obra, atando a vara ao braço da boneca.

— E isca? — indagou depois.

— Isca é o de menos, menina. Qualquer gafanhotinho serve.

Salta daqui, salta dali, Narizinho conseguiu apanhar um gafanhoto verde. Espetou-o no anzol. Depois arrumou a boneca à beira d’água, muito tensa, com uma pedra ao colo para não cair.

— Agora, Emília, bico calado! Nenhum pio, senão espanta os peixes. Logo que um deles beliscar, zuct!, dê um puxão na linha.

E, deixando-a ali, foi ter com a preta.

— Você me frita para o jantar o peixinho da Emília, Nastácia? Frita?

— Frito, sim! Frito até no dedo!...

— Não caçoe, Nastácia! Emília é uma danada. Ninguém imagina de quanta coisa ela é capaz.

Palavras não eram ditas e — tchíbum!... pescadora de pano revirava dentro d’água, com pedra e tudo.

— Acuda, Nastácia! Emília está se afogando!... — gritou a menina aflita.

De fato. Um peixe engolira a isca e, lutando por safar-se do anzol, arrastara a boneca para o meio do rio.

Tia Nastácia arranjou uma vara de gancho e com muito jeito foi puxando para a beira do córrego a infeliz pescadora, até o ponto onde a menina a pudesse agarrar.

Assim aconteceu. e qual não foi o assombro de Narizinho vendo sair d’água, presa ao anzol de Emília, uma trairinha que rabeava como louca!

A negra pendurou o beiço.

— Credo! Até parece feitiçaria! — resmungou.

Muito contente da aventura, Narizinho disparou para casa com o peixe na mão.

— Vovó — gritou ela ao entrar, — adivinhe quem pescou esta trairinha...

Dona Benta olhou e disse:

— Ora, quem mais! Você, minha filha.

— Errou!

— Tia Nastácia, então.

— Qual Nastácia, nada!...

— Então foi o saci — caçoou Dona Benta.

— Vovó não adivinha! Pois foi a Emília...

— Está bobeando sua avó, minha filha?

— Juro! Palavra de Deus que foi a Emília. Pergunte a tia Nastácia, se quiser.

A preta vinha entrando com a trouxa de roupa lavada à cabeça.

— Não foi mesmo, tia Nastácia? Não foi Emília quem pescou a trairinha?

— Foi, sim, sinhá — respondeu a preta dirigindo-se para dona Benta. — Foi a boneca. Sinhá não imagina que menina reinadeira é essa! Arranjou jeito de botar a boneca pescando na beira do rio e o caso é que o peixe tá aí...

Dona Benta abriu a boca.

— Bem diz o ditado, que quanto mais se vive mais se aprende.

Estou com mais de sessenta anos e todos os dias aprendo coisas novas com esta minha neta do chifre furado...

— Criança de hoje, sinhá, já nasce sabendo. No meu tempo, menina assim desse porte andava no braço da ama, de chupeta na boca. Hoje?... Credo! Nem é bom falar...

E com a menina dançando à sua frente, tia Nastácia lá foi para a cozinha fritar a traíra.
–––––––––
Continua... As formigas ruivas

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

Nenhum comentário: