III A pescaria
Afinal acabaram as jabuticabas. Somente nos galhos bem lá do alto é que ainda se via uma ou outra, todas furadinhas de vespa.
Rabicó — rom, rom, rom, — volta e meia aparecia por ali por força do hábito. Ficava imóvel, muito sério, esperando que caíssem cascas; mas, como não caísse coisa nenhuma, desistia e retirava-se, rom, rom, rom...
Narizinho também ainda aparecia de vez em quando de comprida vara na mão e nariz para o ar, na esperança de “pescar” alguma coisa.
— Arre, menina! — gritou lá do rio tia Nastácia, numa dessas vezes. — Não chegou quase um mês inteiro de tloc, tloc? Largue disso e venha me ajudar a estender esta roupa, que é o melhor.
Narizinho jogou a vara em cima do leitão, que fez coim! e foi correndo para o rio, com a Emília de cabeça para baixo no bolso do avental.
Lá teve uma idéia: deixar a boneca pescando enquanto ela ajudava a preta.
— Tia Nastácia, faça um anzolzinho de alfinete para a Emília. A coitada tem tanta vontade de pescar...
— Era só o que faltava! — respondeu a negra, tirando o pito da boca. — Eu, com tanto serviço, a perder tempo com bobagem.
— Faz? — insistiu a menina. — Alfinete, tenho aqui um. Linha, há no alinhavo da minha saia. Vara não falta. Faz?
A negra não teve remédio.
— Como não hei de fazer, demoninho? Faço, sim... Mas se ficar atrasada no serviço, a culpa não é minha.
E fez. Dobrou o alfinete em forma de gancho, amarrou-o na ponta duma linha e descobriu uma vara — uma varinha de dois palmos, imaginem! Narizinho completou a obra, atando a vara ao braço da boneca.
— E isca? — indagou depois.
— Isca é o de menos, menina. Qualquer gafanhotinho serve.
Salta daqui, salta dali, Narizinho conseguiu apanhar um gafanhoto verde. Espetou-o no anzol. Depois arrumou a boneca à beira d’água, muito tensa, com uma pedra ao colo para não cair.
— Agora, Emília, bico calado! Nenhum pio, senão espanta os peixes. Logo que um deles beliscar, zuct!, dê um puxão na linha.
E, deixando-a ali, foi ter com a preta.
— Você me frita para o jantar o peixinho da Emília, Nastácia? Frita?
— Frito, sim! Frito até no dedo!...
— Não caçoe, Nastácia! Emília é uma danada. Ninguém imagina de quanta coisa ela é capaz.
Palavras não eram ditas e — tchíbum!... pescadora de pano revirava dentro d’água, com pedra e tudo.
— Acuda, Nastácia! Emília está se afogando!... — gritou a menina aflita.
De fato. Um peixe engolira a isca e, lutando por safar-se do anzol, arrastara a boneca para o meio do rio.
Tia Nastácia arranjou uma vara de gancho e com muito jeito foi puxando para a beira do córrego a infeliz pescadora, até o ponto onde a menina a pudesse agarrar.
Assim aconteceu. e qual não foi o assombro de Narizinho vendo sair d’água, presa ao anzol de Emília, uma trairinha que rabeava como louca!
A negra pendurou o beiço.
— Credo! Até parece feitiçaria! — resmungou.
Muito contente da aventura, Narizinho disparou para casa com o peixe na mão.
— Vovó — gritou ela ao entrar, — adivinhe quem pescou esta trairinha...
Dona Benta olhou e disse:
— Ora, quem mais! Você, minha filha.
— Errou!
— Tia Nastácia, então.
— Qual Nastácia, nada!...
— Então foi o saci — caçoou Dona Benta.
— Vovó não adivinha! Pois foi a Emília...
— Está bobeando sua avó, minha filha?
— Juro! Palavra de Deus que foi a Emília. Pergunte a tia Nastácia, se quiser.
A preta vinha entrando com a trouxa de roupa lavada à cabeça.
— Não foi mesmo, tia Nastácia? Não foi Emília quem pescou a trairinha?
— Foi, sim, sinhá — respondeu a preta dirigindo-se para dona Benta. — Foi a boneca. Sinhá não imagina que menina reinadeira é essa! Arranjou jeito de botar a boneca pescando na beira do rio e o caso é que o peixe tá aí...
Dona Benta abriu a boca.
— Bem diz o ditado, que quanto mais se vive mais se aprende.
Estou com mais de sessenta anos e todos os dias aprendo coisas novas com esta minha neta do chifre furado...
— Criança de hoje, sinhá, já nasce sabendo. No meu tempo, menina assim desse porte andava no braço da ama, de chupeta na boca. Hoje?... Credo! Nem é bom falar...
E com a menina dançando à sua frente, tia Nastácia lá foi para a cozinha fritar a traíra.
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Continua... As formigas ruivas
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
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