sábado, 12 de novembro de 2011

Yêda Schmaltz (Poesias Avulsas)


POEMA BISSEXTO
Aos nascidos em 29 de fevereiro

Num ano não bissexto
de meses absurdos
e de horas escritas,
o teu dia não existe,
o teu dia absoluto.
Hoje é a véspera, mas amanhã acabou.
Agora, é cedo ainda
pra eu ir cantar na tua porta,
mas amanhã, é tarde, Inês é morta.

Uma interrogação escorre luminosa
sobre o imponderável
do teu dia não-dia,
mas eu dou uma rosa
pro teu dia não-dia,
ante-dia,
adversus,
carpe-diem.

No teu ante-aniversário
que não fazes este ano
porque amanhã é primeiro,
não será mais fevereiro,
quisera ver o teu rosto:
a face triste do baiano
e o riso largo do mineiro.

Perdido nas estrelas
de um zodíaco azul
ficou teu dia
nadando, peixenauta,
pelo espaço,
— olhando para o céu é que te abraço
enquanto estabilizas tua idade
de sempre criança,
de sem gravidade.

E nem temos taças para o ritual,
nem temos a nós mesmos
(dançamos um longínquo carnaval)
nem tenho teus braços
que o vento, que o tempo,
que a nave levou.
Mas um vidro parco
ou acrílico largo
tilinta: trim!
A festa acabou.

O DESVIO

A mim pouco me importa
aberta ou fechada a porta,
vou entrar.

E pouco me importa estar
sendo amada ou não amada:
vou amar.

Que a mim me importa tanto
eu mesma e o sentimento,
quanto!

A mim pouco me importa
se a tua amada é doente,
se a tua esperança é morta.

E me importa muito menos
se aceitas solenemente
a nossa vida parca e torta.

Porque a mim me importaria
deixasse de ser eu mesma
e a poesia.

A mim pouco me importa
se a lira quebrou a corda:
vou cantar.

E pouco me importa estar
no picadeiro do circo:
vou rodar.

Que a mim me importa tanto
eu mesma e o sentimento,
quanto!

A mim pouco me importa
se estamos todos presos
por uma invisível corda.

E me importa muito menos
sermos todos indefesos
ante o destino que corta.

Porque a mim me importaria
deixasse de ser eu mesma
e a poesia.

AMOR

Amor, se houve, eu tive.
De lembrar o amor
em poesia,
minha alma
sobrevive.

CAVALO DE PAU

Quando amo, sou assim:
dou de tudo para o amado
— a minha agulha de ouro,
meu alfinete de sonho
e a minha estrela de prata.

Quando amo, crio mitos,
dou para o amado meus olhos,
meus vestidos mais bonitos,
minhas blusas de babados,
meus livros mais esquisitos,
meus poemas desmanchados.

Vou me despindo de tudo:
meus cromos, meu travesseiro
e meu móbile de chaves.
Tudo de mim voa longe
e tudo se muda em ave.

Nos braços do meu amado,
os mitos se acumulando:
um pandeiro de cigana
com mil fitas coloridas;
de cabelo esvoaçando,
a Vênus que nasceu loura.
(E lá vou eu navegando.)

Nos braços do meu amado,
os mitos se acumulando,
enchendo-se os braços curtos
e o amado vai se inflando.

— O que de mais me lamento
e o que de mais me espanto:
o amado vai se inflando
não dos mitos, mas de vento
até que o elo arrebenta
e o pobre do amado estoura.

(Nenhum amado me agüenta.)

OITANTE

Alguém fabricou para mim
Uma estrela particular;
Este calor sem-fim.

Receita para se fabricar
uma estrela: é só queimar
átomos de hidro/gênio
por meio da fusão do olhar,
isto é, nuclear.

Fórmula: Bill Gates
que é igual a Olavo Bilac,
ouvindo as janelas,
(E acreditar que vai brilhar, ter fé.)

Mas não se esqueça:
amai para entendê-la.
Quantos celulares fantasmas
há por aqui! Cibernéticos na linha.
Ai, que saudade que eu tenho
do tempo de Ivanhoé!

BACANTE A OESTE

A manhã mastiga
o canto do melro:
pão de trigo e mel.
Nossa vida é de sal
e de vinagre
apesar do passarinho
e o sal da terra.

Meu canto a Dionísio
é benfazejo
e o que desejo,
é amenizar os caminhos
do homem
com cristais de doçuras
de mulher.

E a poesia é doidivanas,
louca e séria
e vai arando
nossos caminhos de sede
e de torturas,
nossos caminhos de fome
e de miséria.

De noite
os pirilampos vagam
seus vagos lumes
pelos campos de buritis
e guarirobas.
— Cocos iluminados
de lantejoulas.

A POBREZA II
(DECLARAÇÃO DE BENS)

Escolhi para mim
— cabeça de poeta,
adolescência pura —
o que não deveria escolher
vivendo no Terceiro Mundo:
dediquei minha vida
à Educação e à Cultura.
Professora da Universidade Brasileira,
não pude comprar fazenda,
chácara, terreno ou boi,
( essa goiana maneira de ser ).
Eu só pude criar,
no meu curral de sonho,
o canto do cavalo,
o canto da boiada
em poesia aberta e hermética;
essa boiada que tanto aflige,
ruminando na janela
da minha aula de Estética.

Apenas com um salário de sucata,
sustentei o filho e as filhas
que partilhei ao gerar,
mas que não dividi na hora
dos divórcios, das partilhas.
(Apenas com o salário,
pois dispensei o tal “alimento”
da descasada profissional.)

Fiquei com a Poesia,
esse bagulho
terceiromundista,
este meu Bem;
fiquei com a Pobreza,
o meu orgulho:
nunca roubei ninguém.
Não fui grileira e nem
posseira de nada
e, se invadida,
como fui, certa vez,
por astutas fazendeiras,
ora, que bobagem!
A minha obra está datada.
A Poesia
é o meu Patrimônio:
a palavra certa,
a palavra dura.
A poesia canta
e eu fico muda,
de espanto.

Meu Patrimônio maior
é a Literatura.

A POETISA

Canto
o prazer e a esperança,
a loucura e a liberdade.

Cabelos soltos
véus diáfanos
minha flauta
e minha jarra

de vinho.
Que Deus inventou a uva
e Baco inventou o vinho
com seus efeitos.

(Cabelos punk
eus de afanos
minha falta
e minha farra.)

Ao coração humano
medroso, dou alegria
e coragem.

Cabelos soltos
véus diáfanos
minha flauta
e minha garra.

Fonte:
Antonio Miranda

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