A madrugada nunca está sozinha. Há sempre um bêbedo retardatário, sentado na calçada ou deitado num banco da praça. Um pequeno fazendeiro, que inicia a ordenha. Um padeiro, que encosta a bicicleta e mergulha no calor aromoso e reconfortante da padaria. Um insone, que, cansado da batalha com Morfeu, abandona a rede e abre a janela. Um poeta, que, depois de apelar às musas durante toda a noite, acaba produzindo um verso de pé quebrado. O amante, que sai sorrateiramente dos braços de um amor proibido, mergulha na semiescuridão de uma rua qualquer e caminha colado ao muro, para passar despercebido. Mas há, principalmente, o homem triste, que sai do cemitério, onde passou a noite sentado no túmulo da amada.
Ninguém mais se admira daquelas visitas noturnas. Ele sai de casa por volta das vinte e duas horas, com a caixa do violino na mão. Abre o portão, fechado apenas com uma corrente, e aproxima-se do túmulo com certa dificuldade. A cidade cresceu, o número de óbitos aumentou, e o cemitério, único, não tem como acolher aqueles corpos abandonados pelo sopro do espírito. Deposita a caixa na laje e dela retira o instrumento. Por quase uma hora os moradores das imediações ouvem o lamento comovente, que paira sobre as sepulturas e é dispersado pelo vento. Há o intervalo de uma meia hora, e novamente se ouvem os acordes chorosos, que penetram pelo mármore dos túmulos e pelas rachaduras do cimento das sepulturas mais humildes. E novamente o intervalo e, mais uma vez, o som do violino, até que a madrugada se anuncia, e o homem triste vai para casa.
Esse ritual repete-se há dez anos, desde que a mulher, a única que ele amou em toda a sua vida, morreu dando à luz o primeiro filho. O sepultamento fora pela manhã e à noite lá estava ele, seguindo para o cemitério, abraçado à caixa do violino. Foi um escândalo na cidadezinha, que via nas visitas noturnas do viúvo uma prática meio satânica. Mas ele não dava ouvido aos comentários maldosos, e os habitantes daquele recanto do mundo tiveram que acostumar-se, e incorporar a prática esquisita na rotina da cidade.
Durante o dia, o viúvo levava uma vida quase normal. Trabalhava, fazia crescer os negócios, cuidava do filho, conversava com os amigos. Mas sempre com o semblante meio anuviado e uma aura de tristeza que ele procurava suavizar, com a educação e a fineza que sempre o caracterizaram. As moças da cidade já haviam perdido as esperanças de puxá-lo para dentro da vida, e passaram a tratá-lo com o respeito e a distância cerimoniosa com que tratavam as autoridades do lugar.
Na madrugada em que se deu o ocorrido, chovia, como poucas vezes chovera naquela região. Relâmpagos clareavam a escuridão, e raios ziguezagueavam pelo céu para logo em seguida se lançarem em algum ponto da terra. Não se viu quando o viúvo se dirigiu ao cemitério, porque chovia desde o final da tarde e ninguém se aventurava a pôr a cabeça do lado de fora. Mas na hora de sempre, envolto em uma capa plástica, com a qual protegia o violino, ele abriu o largo portão da necrópole, e penetrou no território da morte. Aproximou-se do túmulo da esposa e, protegido por uma das colunas de mármore, começou a tocar o Concerto para Violino em Ré Maior Opus 3/9, de Vivaldi, predileto da amada, cujos acordes tristes se misturavam com a cavalgada enlouquecida dos trovões. A claridade de um relâmpago o encandeou, e instintivamente ele fechou os olhos. Foi o momento exato em que um raio lançou-se sobre o túmulo, cavando uma fenda larga e profunda na laje de mármore. Por entre as nuvens, que já se iam dispersando, podia-se se ver os primeiros clarões da madrugada.
O zelador do cemitério apavorou-se ao aproximar-se do túmulo, e nem viu o violino queimado em parte e caído sobre um dos batentes que dava acesso à sepultura. Observou a fenda que se fizera na pedra tumular – uma fenda larga, que apartara a pedra em duas. Olhou pela abertura e teve a impressão de ver um corpo dentro da gaveta. Correu à casa do viúvo, mas a empregada informou que, apesar da chuva, ele saíra com o violino na hora de costume e ainda não voltara.
O delegado, chamado pela família, mandou remover a pedra de mármore, dividida em dois pedaços. Apanhou o instrumento musical, no qual o zelador não havia tocado, e esperou. Lá dentro, por cima da urna funerária da esposa, cuja madeira se conservava intacta, jazia o corpo sem vida do dono do violino.
Fonte:
Vicência Jaguaribe. Ancoragem em Porto Aberto. RJ: Câmara Brasileira de Jovens Escritores, 2010.
Ninguém mais se admira daquelas visitas noturnas. Ele sai de casa por volta das vinte e duas horas, com a caixa do violino na mão. Abre o portão, fechado apenas com uma corrente, e aproxima-se do túmulo com certa dificuldade. A cidade cresceu, o número de óbitos aumentou, e o cemitério, único, não tem como acolher aqueles corpos abandonados pelo sopro do espírito. Deposita a caixa na laje e dela retira o instrumento. Por quase uma hora os moradores das imediações ouvem o lamento comovente, que paira sobre as sepulturas e é dispersado pelo vento. Há o intervalo de uma meia hora, e novamente se ouvem os acordes chorosos, que penetram pelo mármore dos túmulos e pelas rachaduras do cimento das sepulturas mais humildes. E novamente o intervalo e, mais uma vez, o som do violino, até que a madrugada se anuncia, e o homem triste vai para casa.
Esse ritual repete-se há dez anos, desde que a mulher, a única que ele amou em toda a sua vida, morreu dando à luz o primeiro filho. O sepultamento fora pela manhã e à noite lá estava ele, seguindo para o cemitério, abraçado à caixa do violino. Foi um escândalo na cidadezinha, que via nas visitas noturnas do viúvo uma prática meio satânica. Mas ele não dava ouvido aos comentários maldosos, e os habitantes daquele recanto do mundo tiveram que acostumar-se, e incorporar a prática esquisita na rotina da cidade.
Durante o dia, o viúvo levava uma vida quase normal. Trabalhava, fazia crescer os negócios, cuidava do filho, conversava com os amigos. Mas sempre com o semblante meio anuviado e uma aura de tristeza que ele procurava suavizar, com a educação e a fineza que sempre o caracterizaram. As moças da cidade já haviam perdido as esperanças de puxá-lo para dentro da vida, e passaram a tratá-lo com o respeito e a distância cerimoniosa com que tratavam as autoridades do lugar.
Na madrugada em que se deu o ocorrido, chovia, como poucas vezes chovera naquela região. Relâmpagos clareavam a escuridão, e raios ziguezagueavam pelo céu para logo em seguida se lançarem em algum ponto da terra. Não se viu quando o viúvo se dirigiu ao cemitério, porque chovia desde o final da tarde e ninguém se aventurava a pôr a cabeça do lado de fora. Mas na hora de sempre, envolto em uma capa plástica, com a qual protegia o violino, ele abriu o largo portão da necrópole, e penetrou no território da morte. Aproximou-se do túmulo da esposa e, protegido por uma das colunas de mármore, começou a tocar o Concerto para Violino em Ré Maior Opus 3/9, de Vivaldi, predileto da amada, cujos acordes tristes se misturavam com a cavalgada enlouquecida dos trovões. A claridade de um relâmpago o encandeou, e instintivamente ele fechou os olhos. Foi o momento exato em que um raio lançou-se sobre o túmulo, cavando uma fenda larga e profunda na laje de mármore. Por entre as nuvens, que já se iam dispersando, podia-se se ver os primeiros clarões da madrugada.
O zelador do cemitério apavorou-se ao aproximar-se do túmulo, e nem viu o violino queimado em parte e caído sobre um dos batentes que dava acesso à sepultura. Observou a fenda que se fizera na pedra tumular – uma fenda larga, que apartara a pedra em duas. Olhou pela abertura e teve a impressão de ver um corpo dentro da gaveta. Correu à casa do viúvo, mas a empregada informou que, apesar da chuva, ele saíra com o violino na hora de costume e ainda não voltara.
O delegado, chamado pela família, mandou remover a pedra de mármore, dividida em dois pedaços. Apanhou o instrumento musical, no qual o zelador não havia tocado, e esperou. Lá dentro, por cima da urna funerária da esposa, cuja madeira se conservava intacta, jazia o corpo sem vida do dono do violino.
Fonte:
Vicência Jaguaribe. Ancoragem em Porto Aberto. RJ: Câmara Brasileira de Jovens Escritores, 2010.
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