segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Aparecido Raimundo de Souza (Caminho sem volta)

ANA ANGÉLICA SENTIA SUA ALMA RÉS AO CHÃO.

A cabeça rodopiava por fronteiras indistintas numa bagunça incontrolável. Parecia cindida em mil pedaços. As vistas estavam enfermas embaixo dos óculos de grau vencido. No peito, o coração teimava acelerar descompassado como se alguma coisa anormal o agitasse. As pernas bambeavam, os dedos dos pés doíam apertados dentro dos sapatos de coriáceo vagabundo. Até as roupas que lhe cobriam a nudez pesavam sobre o corpo magro. Atrelado a isso, estranho mal súbito insistia dominar o ambiente como se o universo conspirasse contra e fosse acabar no próximo minuto.

Perguntas sem respostas objetivas afloravam em sua mente como água jorrando em nascente. Por que a modorra apática, o medo, a insegurança e a desagradável sensação de fadiga lhe transformando a carcaça em estrupício? Se fosse alguém de idade bastante avançada, até  se entenderia... Mas ela, só contava poucos anos de idade...

Desde a manhã o dia transcorrera pesado e frio, com a mesma miscelânea circense de sempre. As horas lhe enterraram num sepulcro hostil e inviolável, tal como se a vida lhe tivesse tamponado num buraco fundo e sem retorno. E aquele maldito quarto de pensão desgraçadamente iluminado completava o quadro dantesco da triste e malfadada sina. Tentara, por diversas vezes, dominar o astral e escapar da turbulência repulsiva que pesava sobre seus costados. Pensara fugir da alienação inconcebível e poderosa, mas o espírito perturbado a colocava em inferioridade estrema, deixando-a totalmente sem forças e carente de carinho e aconchego. Queria colo, atenção e amor. Uma gota de ternura seria o bastante para lhe devolver a felicidade entristecida. As outras ninfetas, nesse meio tempo, zombavam da sua cara, escarneavam pontos frágeis, motejavam de sua posição ridícula. Na verdade, todas elas aguardavam pacientemente a sua entrada nos labirintos obscuros da neurastenia.

Com os pensamentos embaralhados e em tumulto desordenado, se questionava aflita, como caíra tão rapidamente naquela incúria, se deixando levar pelo injustificado das incertezas e das horas tediosas da solidão? Onde ficara a vontade de vencer os obstáculos, transpor barreiras e saltar infortúnios inesperados?

Sem réplica à altura dessas indagações, Ana Angélica lamentava ter deixado uma nuvem negra pairar sobre sua cabeça, a ponto de dominar sua existência e vegetar ao deus-dará. Afinal de contas, qual o motivo, ou melhor, o que ensejou toda aquela transformação meteórica em sua tão curta jornada?

Pôs-se, de repente, a lembrar o passado. Fazia pouco tempo, seu pai lhe colocara no olho da rua. Motivo? Uma indesejável gravidez. Até então, Ana Angélica era a melhor filha do mundo. Com a revelação do exame laboratorial feito às pressas, perdeu a posição de “princesa” para aquele cidadão que gozava de elevada reputação na cidade. Na verdade, a autoridade máxima do judiciário local: o juiz!

Como representante da lei, o cidadão precisava dar exemplo. Assim, ao tomar conhecimento da prenhez, o velho genitor virou-lhe as costas mostrando a porta da rua e escancarando a crueldade que começava do portão que se abria para os infortúnios e contratempos da sorte. A decadência se tornou maior, se agigantou no exato momento em que decidiu procurar abrigo na casa do namoradinho que lhe jurara amor eterno. Contudo, Leandro, descendente de tradicional família na cidade, ao saber da novidade (para ele cruel novidade), jogou para o alto a medicina, o consultório, a clínica cardiológica e o comodismo de viver às expensas paternas. Na calada da noite o doutorzinho deixou o lugarejo a horizontes ignorados.

Em povoados de extensão limitada não é preciso muito esforço para cair na boca do povo. Envergonhada, sem comida e teto, e, ainda, com a agravante da fuga inesperada do pai da criança, a solução plausível foi embarcar no primeiro trem. Aportou, então, em São Paulo, ou mais precisamente na Estação da Luz. Sem condições de sobrevivência, não demorou a encontrar os guetos do submundo da prostituição. E neles, Ana mergulhou de cabeça, num voo cego.

Bonita, formosa e gentil, não lhe faltavam noitadas regadas a cervejas e bebidas baratas. Os fregueses variavam: ora saia com um marginal, outra carregava para a cama um gringo desses bem nojentos. Às vezes dormia com almofadinhas elegantes, casquilhos vestidos a rigor ou efeminados. A maioria deles drogados e viciados em crack, maconha e cola de sapateiro. O espaço que mediava entre a concepção e o nascimento não interrompia a hora derradeira, ao contrário, diminuía, diminuía, diminuía...

Nessa pressa de vida fácil o tempo sempre corre com rapidez impossível. Voava, para Ana Angélica como um Pégaso desgovernado, trotando atabalhoadamente na direção do precipício fatal. Atiçada pela elevada valorização do corpinho esbelto e garboso, a matrona, dona do bordel, não perdia clientes. Longe disso, multiplicava o conjunto de paroquianos como fieis num culto religioso.

Os que frequentavam a casa só queriam desfrutar daquela elegante bem proporcionada e sensual, caída dos céus, como um anjo em forma de gente. Por essa razão, a cafetina, conhecida pela alcunha de “Maria Padilha”, em menos de três semanas adquiriu dois bons apartamentos quitinetes num edifício do tipo “balança mas não cai”, quase ao lado da antiga rodoviária e, de lambuja, comprou  um carro novo para desfilar com uma dezena de pupilos que bancava em busca de prazeres carnais.

Com a mente ainda em desalinho, e sem um policiamento ostensivo para conter a avalanche de desgraças que atormentava, Ana Angélica continuava a se questionar dessas mudanças bruscas, quando, entrementes, lembrou da arma que a colega de quarto guardava numa cômoda do tempo do ronca. Resoluta, caminhou até ela. Precisava agir rapidamente. Logo a parceira chegaria do programa que saíra para fazer.

Abriu a gaveta. Um trinta e oito cano curto, cabo em madre pérola, municiado, descansava entre as calcinhas, sutiãs e uma caixa de sapatos cheia de preservativos. Apanhou o revolver, decidida, firme, resoluta, feições contraídas, o coração quase a saltar peito a fora. Lentamente se acomodou na banqueta diante do espelho com um pedaço de vidro faltando numa das extremidades:

— Adeus, mundo — disse entre palavras entrecortadas de solidão e agonia. — Adeus, vida. Pai, mãe, me desculpem!..

Num envolvente ímpeto materno alisou a barriga de modo carinhoso. Cinco meses. Cinco longos meses...

Seria um menino ou uma menina? Sem assistência médica e condições de visitar um ginecologista, o feto sobrevivia a trancos e barrancos. Que nome lhe daria? Como seria o rostinho? Com quem pareceria? Talvez, quem sabe, com ela, ou...

Nesse instante amargo, dos seus olhos de menina mulher, rolaram rosto abaixo, lágrimas ligeiras. Lembrou-se do pai, e da ultima conversa que tiveram antes de acontecer toda essa bagunça em sua vida: — Filha, — disse ele a certa altura — “aequam memento rebus in arrudas servare   mentem”(*).    E,  em  seguida,  concluiu:  — Aconteça o que acontecer jamais entregue os pontos. Seja forte, lute pela vida, brigue, esperneie, mesmo que todo seu eu interior transpire solidão e agonia...

Todavia, agora, era tarde demais. Das palavras sábias do velho pai, só recordações distantes agonizando no peito despedaçado.

— Perdoe a mamãe, meu neném querido, seja você quem for. Não é certo o que pretendo fazer. Sei que não tenho o direito de decidir pela sua vida. Sei que você não vai entender esse gesto, mas... Será melhor... Será melhor que você não conheça esse lado mau e negro. Saiba que mamãe ama você... Mamãe ama você... Mamãe aaa...

O tiro ecoou forte. A bala viajou certeira em busca do alvo fácil. Num instante dolorido, o estampido se assemelhou a uma espécie de míssil teleguiado, ao explodir tremendamente perverso dentro do aposento parcamente iluminado. Pessoas danaram a gritar. “Maria Padilha” esmurrou a porta com vigor. Um cliente que chegava na hora berrou para que alguém acionasse a polícia.

Lá  dentro, dobrada sobre si mesma, deixando escapar desejos mal resolvidos e envolta numa enorme possa de sangue, Ana Angélica, a querida e desejada dama da noite, metida, agora, numa via de mão única e sem retorno, soltava o derradeiro e lancinante grito de estertor.
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(*) “Lembra-te de manter o ânimo justo nos momentos difíceis”.
Nota do autor


Fonte:
SOUZA, Aparecido Raimundo de. Havia uma ponte lá na fronteira. São Paulo: Ed. Sucesso, 2012.

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