Mário Pontes (Nova Russas, 1932), autodidata, fez-se tipógrafo e depois jornalista, em Fortaleza. Mudou-se para o Rio de Janeiro, onde foi, por décadas, editor de cadernos de cultura do Jornal do Brasil. Além de centenas de artigos sobre livros e autores, publicou Milagre na Salina, 1977 (traduzido para o russo); Ninguém ama os náufragos; Andante com morte, 1999, Canta, violão, novela para leitores jovens; Doce como diabo, ensaios sobre poesia popular, e, em 2003, Um Homem Chamado Noel. Sua peça para adolescentes, As minas do Rei Aurino, permaneceu seis meses em cartaz no Teatro Cacilda Becker, Rio. Mario Pontes já traduziu 25 livros de ficção de autores como Camilo José Cela (Prêmio Nobel); Júlio Cortázar e Isabel Allende; e obras filosóficas, como O saber grego (66 autores europeus); Voltaire e os intelectuais, de Pierre le Pape e A razão no século XX, de Bertrand Saint-Sernin, professor da Sorbonne.
Seus contos estão publicados em dois volumes: Milagre na Salina e Um Homem Chamado Noel. O primeiro lembra a estrutura de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e de Jorge Medauar Conta Estórias de Água Preta. Os capítulos do romance podem ser lidos como pequenas histórias. Já as “estórias” de Medauar constituiriam romance, na opinião de Fernando Góes, porque os episódios narrados estão centrados na cidade de Água Preta. Também as composições de Mario se localizam em um só ambiente, Salina. No entanto, ambos são mesmo coleções de contos. Na segunda obra Salina é deixada para trás ou, pelo menos, não é mencionada. Aliás, em nenhuma narrativa a ação se desenvolve na mesma localidade, à exceção das duas primeiras, quando Lucas ainda é criança. O protagonista está sempre em viagem pelo Brasil afora. As únicas cidades mencionadas são Leonardópolis e Brasília.
Em Milagre na Salina é perfeita a pintura do ambiente, dos personagens e das ações. Salina é a parte mais pobre de qualquer cidadezinha do Nordeste brasileiro. Teofânio, Antonio Profeta, Chico Pé-de-Valsa, Francalino, Situba, delegado Ermírio, dona Toinha, Manoel de Rosa, Zacarias, Cardoso, Campeão, Xandu, Mino e outros são nordestinos sob todos os aspectos. Os crimes, as safadezas, as intrigas praticadas pelos seres fictícios parecem relatadas por cantadores de feiras. Tudo é como se estivesse o leitor vivendo aquela bruta vidinha da cidade miúda da terra de secas e enchentes.
O espaço geográfico em que se movimentam os seres fictícios é o mesmo. Vez por outra, protagonistas de um capítulo surgem às escondidas em outros. É o caso de Teofânio, o dono da bodega aonde quotidianamente os bêbados da Salina vão se embriagar e contar as novidades. E nem mesmo ele consegue sobrelevar-se à categoria de primeiro personagem, apesar de quase todos os contos serem narrados em sua bodega.
Em Um Homem Chamado Noel a armação da estrutura do livro é semelhante à de Milagre na Salina: um personagem, Lucas (nas três primeiras narrativas aparece com o nome de Mino, apelido de infância), amarra uma peça a outra, ora como narrador, ora protagonista e, às vezes, testemunha ou deuteragonista. O drama se desenrola em diversas localidades ou cidades ou por onde anda Lucas. Os demais seres fictícios atuam uma só vez, isto é, não reaparecem em outras células dramáticas. Assim, Noel, personagem principal da obra que dá título ao livro, não é encontrado nas demais. Por isto, o melhor título para a coleção talvez fosse outro, como Ícaro. Pois o herói grego é o próprio Mino ou Lucas em sua luta pela sobrevivência, em seus voos ao longo da vida, em suas buscas de liberdade. Ou A Morte Vermelha, pela presença constante da “indesejada das gentes” em todos os episódios.
O grande ser fictício do livro é Mino ou Lucas. Se se tratasse de novela ou romance, seria o protagonista. As histórias se sucedem ao longo de sua vida. Em “Ícaro”, “mal acabava de completar nove anos”. Em “A Morte Vermelha”, mestre Aldo, seu pai, recrimina mulher que não parava de falar de tragédias: “Olhe meu filho, é quase uma criança!”. Nos demais contos Lucas é adulto: em “Não olhe para trás” realiza o sonho de sair de casa, fugir para longe, aventurar-se pelo mundo, viver a própria vida (e a dos outros).
O tempo vivido pelo protagonista pode ser apreendido aos poucos: no início o pai fumava cigarro Colomy e vestia paletó de caroá; o padre misturava latim (Dominus vobiscum) ao português, nos sermões. Num segundo momento, havia estrada de ferro, trens de passageiros, e ainda não se falava em rodoviária e ônibus. Na terceira peça, há uma estação ferroviária e uma tipografia onde se imprimia um jornalzinho. Em “O Dia de Tudo” há um velho major da antiga e extinta Guarda Nacional, a dar vivas ao Estado Novo. Em “O Rapto de Sabina” Lucas diz haver nascido pela mão de uma parteira. Em “Um Homem Chamado Noel” a ação decorre em 1949, como se pode ver em trecho da narração em que Noel aciona “isqueiro em casca de bala de metralhadora: uma das modas criadas pela guerra já velha de quatro anos”. O episódio derradeiro da última narrativa do volume se desenvolve depois de 1964, numa Brasília ainda calma, “calma demais, rígida como se a houvessem nocauteado”.
As dez histórias da obra são todas longas para os padrões de hoje, ocupando a mais curta oito páginas, e a mais longa, vinte. Sete delas têm narrador em terceira pessoa e as demais em primeira pessoa, Mino ou Lucas. Na última, o leitor não encontrará referência ao nome do narrador, mas logo no início lerá: “Ia encontrar meu pai carpinteiro” (...). Na primeira peça o pai de Mino é mestre Aldo, marceneiro, e contracena com o protagonista. No segundo também tem papel fundamental e a sua profissão é mostrada com orgulho pelo garoto, embora os ricos da cidade não admitissem que um carpinteiro residisse na Praça da Matriz, “quadrilátero” nobre, onde moravam “o prefeito, o juiz, o delegado de polícia, o primeiro tabelião e alguns dos mais abastados comerciantes da cidade”. Nos demais contos Aldo desaparece.
O ponto de vista às vezes passa da terceira pessoa para a primeira, mas de maneira sensata, premeditada, como em “Os Loucos de Jamal”. Os personagens são de duas categorias: uma narradora e um interlocutor, de um lado ou no presente, e o sírio Jamal, seus amigos espíritas, os loucos, o oficial de justiça Adel e outros de menor importância, no passado ou como personagens de Helu. Ou seja, há dois narradores: um onisciente, não-personagem, e outro também onisciente, mas personagem. O segundo inicia a narrativa: “Naquele tempo a cidade era uma rua e uma praça”. É interrompido pelo primeiro (por travessões): “– Helu contou a Lucas, exagerando a beleza de sua voz, não menor que a de seu rosto –”. Este, na verdade, só se manifesta para passar a voz da narradora para o interlocutor e fazer comentários à beleza da jovem, a quem chama de “fada narradora”.
As histórias de Mario Pontes são realistas, embora de um realismo mais próximo do exotismo. Uma das mais belas, “A morte vermelha”, é envolta pela atmosfera da narrativa macabra, como num desfile funéreo, numa dança da morte, a arrastar os vivos. Também “Os loucos de Jamal”, uma das mais estranhas do volume, na qual se mesclam espiritismo, loucura, intolerância, violência. O desfecho é de uma crueza digna dos mestres do conto de horror, a lembrar Edgar Poe. Estranha é ainda “Felismende, ourives”, de enredo intocável. “O dia de tudo” chega a ser burlesca ou bufa. O burlesco também se apresenta em “Revelações noturnas”. Já “O Rapto de Sabina” é outra história exótica, numa mistura de aventura com crime. A composição que dá título ao livro pode também ser posta nesse rol, pela singularidade do protagonista, misterioso em seus atos e sua fala. “Sancho e a Rainha” segue a mesma linha de mistério, aventura, crime, como nas boas obras do gênero policial.
As peças de Mario Pontes têm a estrutura do conto dito tradicional, com começo, meio e fim, embora aqui e ali utilize o flashback, como em “Felismende, ourives”, “O rapto de Sabina” e, sobretudo, em “Sancho e a Rainha”. A narrações minuciosas se sucedem diálogos alongados. As descrições não chegam a enfadar o leitor e até engalanam a prosa: “um poste de ferro, fundido e floreado”; “um sujeito muito magro, levemente recurvo”; “rosto estreito como um machado, terminando em um nariz fino, uma lâmina” (“Não olhe para trás”).
São raros os contos de flagrante; quase todos têm suas tramas desdobradas ao longo de meses e anos, com o surgimento e o desaparecimento de personagens. Num deles, Lucas caminha por longas horas, para se afastar da cidade onde vive; à noite chega “a um pequeno povoado”; no dia seguinte alcança uma cidade maior; passa-se uma semana; “ao cabo de seis meses” decide retomar a estrada...
Mario Pontes é escritor vocacionado para a novela e o romance. Entretanto, isto não menospreza as suas composições, que não podem ser vistas como rascunhos de obras de maior envergadura. A sua vocação é a de criador de personagens ricos e enredos substanciosos, de manipulador de tempos e espaços amplificados e de apóstolo de um realismo exótico.
Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.
Seus contos estão publicados em dois volumes: Milagre na Salina e Um Homem Chamado Noel. O primeiro lembra a estrutura de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e de Jorge Medauar Conta Estórias de Água Preta. Os capítulos do romance podem ser lidos como pequenas histórias. Já as “estórias” de Medauar constituiriam romance, na opinião de Fernando Góes, porque os episódios narrados estão centrados na cidade de Água Preta. Também as composições de Mario se localizam em um só ambiente, Salina. No entanto, ambos são mesmo coleções de contos. Na segunda obra Salina é deixada para trás ou, pelo menos, não é mencionada. Aliás, em nenhuma narrativa a ação se desenvolve na mesma localidade, à exceção das duas primeiras, quando Lucas ainda é criança. O protagonista está sempre em viagem pelo Brasil afora. As únicas cidades mencionadas são Leonardópolis e Brasília.
Em Milagre na Salina é perfeita a pintura do ambiente, dos personagens e das ações. Salina é a parte mais pobre de qualquer cidadezinha do Nordeste brasileiro. Teofânio, Antonio Profeta, Chico Pé-de-Valsa, Francalino, Situba, delegado Ermírio, dona Toinha, Manoel de Rosa, Zacarias, Cardoso, Campeão, Xandu, Mino e outros são nordestinos sob todos os aspectos. Os crimes, as safadezas, as intrigas praticadas pelos seres fictícios parecem relatadas por cantadores de feiras. Tudo é como se estivesse o leitor vivendo aquela bruta vidinha da cidade miúda da terra de secas e enchentes.
O espaço geográfico em que se movimentam os seres fictícios é o mesmo. Vez por outra, protagonistas de um capítulo surgem às escondidas em outros. É o caso de Teofânio, o dono da bodega aonde quotidianamente os bêbados da Salina vão se embriagar e contar as novidades. E nem mesmo ele consegue sobrelevar-se à categoria de primeiro personagem, apesar de quase todos os contos serem narrados em sua bodega.
Em Um Homem Chamado Noel a armação da estrutura do livro é semelhante à de Milagre na Salina: um personagem, Lucas (nas três primeiras narrativas aparece com o nome de Mino, apelido de infância), amarra uma peça a outra, ora como narrador, ora protagonista e, às vezes, testemunha ou deuteragonista. O drama se desenrola em diversas localidades ou cidades ou por onde anda Lucas. Os demais seres fictícios atuam uma só vez, isto é, não reaparecem em outras células dramáticas. Assim, Noel, personagem principal da obra que dá título ao livro, não é encontrado nas demais. Por isto, o melhor título para a coleção talvez fosse outro, como Ícaro. Pois o herói grego é o próprio Mino ou Lucas em sua luta pela sobrevivência, em seus voos ao longo da vida, em suas buscas de liberdade. Ou A Morte Vermelha, pela presença constante da “indesejada das gentes” em todos os episódios.
O grande ser fictício do livro é Mino ou Lucas. Se se tratasse de novela ou romance, seria o protagonista. As histórias se sucedem ao longo de sua vida. Em “Ícaro”, “mal acabava de completar nove anos”. Em “A Morte Vermelha”, mestre Aldo, seu pai, recrimina mulher que não parava de falar de tragédias: “Olhe meu filho, é quase uma criança!”. Nos demais contos Lucas é adulto: em “Não olhe para trás” realiza o sonho de sair de casa, fugir para longe, aventurar-se pelo mundo, viver a própria vida (e a dos outros).
O tempo vivido pelo protagonista pode ser apreendido aos poucos: no início o pai fumava cigarro Colomy e vestia paletó de caroá; o padre misturava latim (Dominus vobiscum) ao português, nos sermões. Num segundo momento, havia estrada de ferro, trens de passageiros, e ainda não se falava em rodoviária e ônibus. Na terceira peça, há uma estação ferroviária e uma tipografia onde se imprimia um jornalzinho. Em “O Dia de Tudo” há um velho major da antiga e extinta Guarda Nacional, a dar vivas ao Estado Novo. Em “O Rapto de Sabina” Lucas diz haver nascido pela mão de uma parteira. Em “Um Homem Chamado Noel” a ação decorre em 1949, como se pode ver em trecho da narração em que Noel aciona “isqueiro em casca de bala de metralhadora: uma das modas criadas pela guerra já velha de quatro anos”. O episódio derradeiro da última narrativa do volume se desenvolve depois de 1964, numa Brasília ainda calma, “calma demais, rígida como se a houvessem nocauteado”.
As dez histórias da obra são todas longas para os padrões de hoje, ocupando a mais curta oito páginas, e a mais longa, vinte. Sete delas têm narrador em terceira pessoa e as demais em primeira pessoa, Mino ou Lucas. Na última, o leitor não encontrará referência ao nome do narrador, mas logo no início lerá: “Ia encontrar meu pai carpinteiro” (...). Na primeira peça o pai de Mino é mestre Aldo, marceneiro, e contracena com o protagonista. No segundo também tem papel fundamental e a sua profissão é mostrada com orgulho pelo garoto, embora os ricos da cidade não admitissem que um carpinteiro residisse na Praça da Matriz, “quadrilátero” nobre, onde moravam “o prefeito, o juiz, o delegado de polícia, o primeiro tabelião e alguns dos mais abastados comerciantes da cidade”. Nos demais contos Aldo desaparece.
O ponto de vista às vezes passa da terceira pessoa para a primeira, mas de maneira sensata, premeditada, como em “Os Loucos de Jamal”. Os personagens são de duas categorias: uma narradora e um interlocutor, de um lado ou no presente, e o sírio Jamal, seus amigos espíritas, os loucos, o oficial de justiça Adel e outros de menor importância, no passado ou como personagens de Helu. Ou seja, há dois narradores: um onisciente, não-personagem, e outro também onisciente, mas personagem. O segundo inicia a narrativa: “Naquele tempo a cidade era uma rua e uma praça”. É interrompido pelo primeiro (por travessões): “– Helu contou a Lucas, exagerando a beleza de sua voz, não menor que a de seu rosto –”. Este, na verdade, só se manifesta para passar a voz da narradora para o interlocutor e fazer comentários à beleza da jovem, a quem chama de “fada narradora”.
As histórias de Mario Pontes são realistas, embora de um realismo mais próximo do exotismo. Uma das mais belas, “A morte vermelha”, é envolta pela atmosfera da narrativa macabra, como num desfile funéreo, numa dança da morte, a arrastar os vivos. Também “Os loucos de Jamal”, uma das mais estranhas do volume, na qual se mesclam espiritismo, loucura, intolerância, violência. O desfecho é de uma crueza digna dos mestres do conto de horror, a lembrar Edgar Poe. Estranha é ainda “Felismende, ourives”, de enredo intocável. “O dia de tudo” chega a ser burlesca ou bufa. O burlesco também se apresenta em “Revelações noturnas”. Já “O Rapto de Sabina” é outra história exótica, numa mistura de aventura com crime. A composição que dá título ao livro pode também ser posta nesse rol, pela singularidade do protagonista, misterioso em seus atos e sua fala. “Sancho e a Rainha” segue a mesma linha de mistério, aventura, crime, como nas boas obras do gênero policial.
As peças de Mario Pontes têm a estrutura do conto dito tradicional, com começo, meio e fim, embora aqui e ali utilize o flashback, como em “Felismende, ourives”, “O rapto de Sabina” e, sobretudo, em “Sancho e a Rainha”. A narrações minuciosas se sucedem diálogos alongados. As descrições não chegam a enfadar o leitor e até engalanam a prosa: “um poste de ferro, fundido e floreado”; “um sujeito muito magro, levemente recurvo”; “rosto estreito como um machado, terminando em um nariz fino, uma lâmina” (“Não olhe para trás”).
São raros os contos de flagrante; quase todos têm suas tramas desdobradas ao longo de meses e anos, com o surgimento e o desaparecimento de personagens. Num deles, Lucas caminha por longas horas, para se afastar da cidade onde vive; à noite chega “a um pequeno povoado”; no dia seguinte alcança uma cidade maior; passa-se uma semana; “ao cabo de seis meses” decide retomar a estrada...
Mario Pontes é escritor vocacionado para a novela e o romance. Entretanto, isto não menospreza as suas composições, que não podem ser vistas como rascunhos de obras de maior envergadura. A sua vocação é a de criador de personagens ricos e enredos substanciosos, de manipulador de tempos e espaços amplificados e de apóstolo de um realismo exótico.
Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.
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