segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Sérgio Telles (Mergulhador de Acapulco)

De longe: Os bicos dos sapatos, meio arredondados, saem fora do caixão. A sola mostra ter andado por muitos caminhos antes de enveredar por este agora para o qual está destinado.

Já mais próximo: O leito de flores. A mão inchada de tantos tubos e agulhas. A face em placidez séria e cérea. O terno azul-claro, combinando com a meia e a gravata, com a camisa de listrinha azul, tudo como ele fazia antes.

 Encostado no caixão: Vertigem, tontura, sensação de desmaio. Como se – de uma altura enorme – fosse cair dentro do caixão. À beira de um penhasco. Mas logo me firmo e, mergulhador de Acapulco, pulo em salto mortífero, riscando o vazio num voo limpo e preciso, o corpo em movimentos gráceis e poderosos, um canivete que se abre e fecha, uma seta certeira fazendo o arco completo até afundar no azul do mar. Subo à tona, estou vivo e me vanglorio de ter conseguido mais uma vez. A beleza da vida, o sol, a ousadia, o criar desafios gratuitos e desnecessários, pelo simples prazer de vencê-los da forma mais bela e justa.

Saindo de perto do caixão: Uma vontade de espancar o morto, de esmurrá-lo, de derrubar o caixão no chão, espalhar flores e velas. Espancá-lo para acordá-lo, trazê-lo de volta, para que venha para cá, para que não nos deixe. Ou ainda, para quebrar a ilusão de que ele apenas dorme, para que caindo no chão o corpo hirto assuma posições grotescas e impossíveis, casca abandonada, inútil. Para que, impossibilitado de acordá-lo, acorde as outras pessoas que ali estão e que agem como se nada de grave estivesse acontecendo, que se recusam a ver o terror nu que ali se expõe cruamente, que – em suave rumor de conversas civilizadas – bebericam café e água em pequenos copos de plástico.

 (Sérgio Telles, Mergulhador de Acapulco)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

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