quarta-feira, 3 de março de 2021

Gregório Duvivier (Saudades de sentir que estamos indo pro mesmo lugar né, minha filha)


Minha vida foi radicalmente transformada numa terça-feira, lá pelas cinco da tarde, do ano de 1996. Tinha dez anos e um pavor social disfarçado de desinteresse pela humanidade. Morria de medo de tudo e sabia que ninguém nunca iria me compreender —e nem valia muito a pena tentar, porque eu não pensava mesmo nada que prestasse.

Tivesse nascido um pouco depois, teriam me chamado de emo. Não existindo ainda o termo, me considerava um jovem Werther, mesmo sem nunca ter lido o livro. Bastava-me o texto da contracapa. A contracapa era o Wikipédia da época. “Um jovem que inspirou muitos jovens de sua época a cometerem suicídio.” Pronto. Entrava no bate-papo do UOL como “Jovem Werther”. Sim, era eu.

Meu avô Carlos, analista junguiano, sugeriu que me botassem no teatro e no futebol —“atividades socializantes”. Entrei pro Gavea Gol, o futsal do Corpo de Bombeiros da Major Rubens Vaz, onde quase apanhava dos colegas de time —o pereba se destaca dos demais jogadores por gerar mais ódio nos colegas que nos adversários.

No teatro, tudo indicava que seria pior. Subi no palco do Tablado, pela primeira vez, numa aula da professora Aracy Mourthé. As pernas tremiam. Quando disse meu nome em voz alta, todos riram, ao mesmo tempo. Não entendi se riam da minha voz de criança, ou do meu nome de velho, ou do cabelo de cuia, ou da união de todas as coisas. Mas eu passei a vida tentando repetir aquilo.

Existe algo de mágico em fazer pessoas que nunca se viram antes rirem da mesma coisa, no mesmo momento, sem combinar —mesmo que essa coisa da qual estejam rindo seja você. Nunca me recuperei da sensação de provocar esse laço imediato entre pessoas que não se conhecem. Toda amizade começa com uma piada interna. Fazer rir é fazer amigos, percebi. E nunca mais quis outra coisa.

Sei que muita gente encontrou sentido, como eu, na comoção. Aliás, que palavra bonita, essa, comover mover, coletivamente. O teatro funciona, quando funciona, como um ônibus, que desloca um grupo de pessoas de um lugar pro outro. Quando não funciona, é como o trem do Alckmin pro aeroporto, que não vai até o aeroporto.

Sei também que o teatro não vai voltar tão cedo. E sei que tem que ser assim. Mas que pena. Como nos faria bem essa sensação de que estamos todos indo, pelo menos por alguns minutos, pro mesmo lugar.

Fonte:
Folha de São Paulo. Seção Colunas. 9 junho 2020.

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