Gerôncio escapou da morte. Ficou vítima da vida. Não morreu. Chegou aos cem anos e foi festejado pela idade. Todos lhe prestaram honras. Mas depois a morte não veio e as pessoas não gostaram muito disso, nem o próprio Gerôncio. É tanto que ele se recolheu como um eremita num socavão de serra para esperar a morte na placidez da velhice. Mas a morte não veio.
Pensou em suicidar-se, mas a religião que ganhara se seus pais dizia que só Deus que dá, pode tirar a vida, ninguém mais. E ali estava ele abandonado por Deus. Como seria feliz se tivesse morrido mais aos vinte e cinco anos. Mas não, perdera a quantia dos anos e como castigo estava ali, verdadeira sucata que até o tempo corrosivo acabara por esquecer. Não tinha mais com quem conversar, todos morreram. Até seus netos se foram. Seus bisnetos estavam velhinhos e não o reconheciam mais como gente e sim como um dejeto do diabo, uma excrescência divina. Naquele pé de serra, os pássaros eram outros. Rolinhas, canários, azulões, todos desapareceram. Agora só havia pardais nas árvores, num barulho infernal, e em vez de urubus, carcarás e gaviões, os céus estavam cheios de aviões, verdadeiros demônios ensurdecedores sobre sua cabeça e perturbadores do seu sono naquele fim de mundo. Mas fim para ele, era coisa que não existia. Era um esquecido de Deus. Se ia pescar no açude, não havia mais traíras, nem piaus, nem corrós, tudo era tilápia, o diabo de um peixe feio que não era de seu tempo.
Se ia tirar mel para saciar sua fome, não havia mais jati, mandassaia, jandaíra, cupira, capuxu, cafimfim, tudo era abelha italiana, com seus ferrões dourados.
Era um mundo novo e ele ali, velho, ficando para semente. Mas o que mais doía era não ter com quem conversar. As pessoas não falavam mais. Apenas ouviam rádios, televisões, aparelhos de nomes estrangeiros. E ele só, resto imortal, pronto para morrer e a morte se escondendo dele de forma tão absurda.
Até as jararacas e os cascavéis corriam com medo dele quando deveriam picá-lo para ver a queda. Isso era sofrimento demais. Ter que aturar a vida todas as manhãs. Levantar-se e sentir-se um esquecido da natureza, um postergado do cão, uma peça de museu para Deus e seus anjos. De tanto durar, resolveu arranjar novos amigos ali mesmo entre as pedras, as árvores mais velhas e uma ponta de serra escravada. Descobriu que podia conversar com aqueles entes mudos e repartir com eles a sua angústia.
Foi conversando com esses seus companheiros que constatou serem todos marcados pelo sofrimento. Todos esquecidos e condenados em sobreviver, todos com dramas iguais aos seus. Aí Gerôncio foi muito feliz. De tanto ouvir histórias e principalmente de contar histórias foi emagrecendo até não precisar mais comer e ficar se alimentando só das histórias que contava e das que ouvia. Tanto emagreceu que ficou transparente, que ficou só sua voz impressa nas pedras e suas histórias soltas pelo mundo afora.
(Batista de Lima, Janeiro É Um Mês Que Não Sossega)
Fontes: - MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008. Enviado por Nilto Maciel.
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