domingo, 3 de dezembro de 2023

Carolina Ramos (E os meus cavalos?) parte 3

Voltando aos cavalos - já que o capítulo lhes pertence. A fazer jus à simpatia que a autora tem por eles, mais três episódios vêm à tona, tendo-os como principais atores.

Campos do Jordão - Dois desses episódios vieram à luz nessa linda região paulista, alvo principal de férias anuais, em minha juventude.

Um daqueles deliciosos janeiros, guardião das férias, aconteceu quando minha adolescência cursava ainda o ginásio, lá pelos idos de 1938.

A adolescência, todos sabemos, é fase bastante importante para os jovens, a incluir urgência de firmação da personalidade e, também, uma certa audácia, como se a vida fosse a cada passo nova conquista. Um tremendo desafio a ser enfrentado com desassombro e ausência total de medos.

O preâmbulo faz-se necessário. Para um adolescente, ter medo é símbolo de derrota. Algo constrangedor e inadmissível. Caso esse medo não seja dominado, e se agravado pela timidez, atrapalhará seus passos por toda vida.

Precisamente, isto é o que se constata após franca e corajosa autoanálise. E é preciso lembrar que era precisamente esse, o período enfrentado nos episódios que ora serão rememorados.

A Pensão de dona Eulah, em Campos do Jordão, depois da Vila de Capivari, encostava-se ao morro que fecha a estrada, tendo, à direita de quem ia, o desvio que leva à Lagoinha.

Geralmente, essa pensão, bastante familiar, cômoda e simples, recebia os mesmos hóspedes a cada janeiro, na maioria ingleses, como a proprietária, ou, alemães, como seu marido. E, também, alguns brasileiros - minha mãe e eu entre eles.

Vez ou outra, aparecia também por lá gente nova. O que aconteceu, no ano em foco. E quem chegou daquela vez, dentre outros, foi um rapazote de nariz empinado que - com base no que dizia, considerava-se superior aos demais que não tinham a sua nacionalidade. Gabava-se, entre outras coisas, de ser um bom cavaleiro.

Não raro, seus apartes irônicos chegavam a ser constrangedores, a ponto de Dona Eulah, certa vez, ter-lhe dado, veladamente, um chega pra lá, em plena mesa do café matinal - o que, na surdina, deliciou muita gente.

Mas... por que, acontece este comentário desairoso, fora dos moldes de quem narra? - Simplesmente, porque, como diz o povo - "o castigo vem a cavalo!" - E foi exatamente isso que aconteceu:

Numa daquelas manhãs campesinas, frescas, apesar de douradas de sol, a turma jovem dos hóspedes de Dona Eulah resolveu programar um passeio a cavalo. Claro, que eu fazia parte dessa turma... E também, o tal jovem petulante.

E lá fomos nós, jovialmente, passear pelas bandas daquele recanto belo, já citado, que estende a exuberância do seu paisagismo através de amplos gramados adornados, aqui e ali, por tufos de digitalis - campânulas bastante decorativas, cor lilás, dispostas entre espelhos d'água, a justificar o nome- Lagoinha. 

E foi, justamente, dentro da placidez daquele passeio matutino, que tudo aconteceu:

Cavalgávamos em grupo. Éramos seis... (com permissão da nossa romancista Leandro Dupré), dois rapazes e quatro moças. E eu, a mais jovem delas.

Tudo calmo, até que um pássaro qualquer, pousado à margem esquerda do caminho, espantou-se com o vozerio chegado, que quebrava a placidez ambiental. E, num voo súbito e rasteiro, cortou a frente da pequena tropa. Fato mais do que suficiente para que se descubra se um cavalo é "passarinheiro", ou não.

Para quem desconheça o termo "passarinheiro", que se diga ser ele atribuído àquele cavalo assustadiço, que estranha e reage a qualquer movimento brusco que lhe perturbe os passos. Fato que poderá colocar em situação de risco a quem, incauto, ou menos destro, o cavalgue - candidato a beijar o chão, a qualquer momento, ao menor descuido.

Aquele episódio provou que o Balão era um desses cavalos "passarinheiros", por excelência. E, quem o montava? Justamente aquele jovem de narizinho empinado que se dizia um ótimo cavaleiro - logo, nada a temer.

Mas... o que terá acontecido? 

- Um flash da cena:

Subitamente, aquele pássaro saído da beira da estrada, voou, quase a raspar os cascos do Balão. Este, assustado, desviou o corpo e ergueu-se nas patas traseiras, enquanto o nosso vaidoso herói, atirado ao chão, foi, humildemente provar o gosto que tem a abençoada terra brasileira!

Graças a Deus, tudo não passou de valente susto, sem maiores consequências.

Perplexidade geral! Embora a figura do cavaleiro, irado, a sacudir as roupas e a injuriar a montaria, logo acabasse por provocar reação contrária.

Os risos discretos não tardaram, embora disfarçados em nome da boa educação. Logo depois, quase incontidos, quando cavaleiro frustrado resolveu, quixotescamente, rejeitar "aquele cavalo desastrado!", decidindo-se a voltar para casa a pé, puxando a montaria pelas rédeas - muito embora todos lembrassem termos hora marcada para o almoço - à exceção dele.

E foi aí que entrou a atitude solidária, (que hoje considero ingênua), daquela adolescente, (que era eu) e que, solícita, ofereceu ao jovem de orgulho abatido a possibilidade de ambos trocarem de montaria.

Quem leia este relato, poderá pensar que o dono daquele narizinho em pé, poderia ostensivamente recusar a oferta. Ou, até mesmo sentir-se humilhado com a proposta feita por aquela meninota, julgando-a irônica, embora ainda hoje eu possa garantir que jamais me ocorreria tal indignidade, já que, na maior inocência, pretendi, tão somente, ser útil tentando resolver o impasse.

Com certeza, eu jamais humilharia quem quer que fosse. E, muito menos, quem já deveria estar bastante humilhado pelas circunstâncias.

A surpresa, entretanto, foi o oposto. E deveu-se ao fato daquele cavaleiro vaidoso ter aceito, de pronto, e sem qualquer objeção, o que lhe fora proposto por aquela garota solícita. Muito embora, num rasgo de responsabilidade, ele fizesse questão de alertar: - "Mas... este cavalo é perigoso!" - Ao que a ingenuidade daquela garota prontamente retrucou, com base na "larga experiência" dos tempos da fazenda:

- Não é perigoso, não... Ele é apenas "passarinheiro"... É preciso estar sempre muito atento, ou ele derruba, de surpresa, quem o monte.

Afinal, tudo acabou bem. Trocamos de montaria e o grupo chegou de volta para o almoço, sem qualquer problema, nem atraso. 

E o Balão? Balão comportou-se de maneira impecável - um verdadeiro gentleman.

O melhor de tudo, entretanto, foi constatar que, a partir daquele incidente, não mais ouvimos à mesa, ou em lugar algum, as bravatas deselegantes e as depreciações constrangedoras, por parte daquele que, de repente, ao cair do pedestal, virou um simpático amigo. E o saldo foi ainda mais lucrativo - pois acabamos por ganhar um companheiro cordato, nada arrogante, o que tornou os passeios seguintes muito mais agradáveis e proveitosos.

Fonte: Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.

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