domingo, 4 de fevereiro de 2024

Chico Anysio (Injeção de adrenalina)

Pisando macio, girou a chave na porta e se levou para o quarto sem acender as luzes. Evitava que o velho Tomás percebesse de que só agora chegava. O velho o acreditava dormindo desde nove e meia.

De short e sem camisa, tentava espantar o calor e chamar o sono, ao mesmo tempo em que buscava uma solução para o seu problema financeiro.

Foi quando escutou o grito.

— Depressa, a Adrenalina!

A voz do velho Tomás mais uma vez ecoava rouca pelos corredores, chamando Raulzinho no seu quarto.

— Estou morrendo!

Sucedia pelo menos duas vezes cada mês. Raulzinho levantava com a lepidez costumeira, tomava da seringa, previamente fervida, serrava a ampola e, em sessenta segundos, fazia o líquido penetrar na veia do velho Tomás, seu rico tio, salvando-o da morte.

Nessa noite teve a ideia.

— Raulzinho! — insistiu o velho, com a mão apertando o peito.

— Tou indo!

O velho respirava com dificuldade, mas agora com a tranquilidade a lhe chegar, por saber do sobrinho a caminho.

O velho Tomás, pequenino e simpático como um velhinho de cartoon, testa aumentada pelo constante cair dos brancos cabelos sempre despenteados, não tinha filhos porque a mulher, falecida há alguns anos, não lhe dera nenhum. Criara Raulzinho, todavia, como se dela tivesse nascido.

Isto explicava o enorme cuidado do rapaz pela saúde do velho — magistrado aposentado — verdadeiramente tio, porém bem mais pai do que o pai o fora.

— Um segundinho, um segundinho! — avisava Raulzinho, arrastando os chinelos pelo corredor de tábua corrida, Adrenalina já posta na seringa, pensamento ruim a lhe mexer na cabeça.

— Dez minutos. Se eu tivesse demorado mais um pouco...

O velho já o aguardava com a manga do pijama levantada, veia à espera do medicamento.

— Depressa, meu filho... — implorava o velho, num lamento que já não o comovia, pelo tanto que se repetia.

— Prontinho...

O velho fechava os olhos. Incomodava-o, sempre, o enfiar da agulha.

— Puxa. Esta semana foi a segunda vez.

— Hem?

— Duas vezes, esta semana. — repetiu Raulzinho, menos filho do que o habitual.

— É. Está piorando. Se não fosse você...

— Por mim você não morre nunca. Eu praticamente não durmo, de ouvido atento, pai.

Chamou-o "pai", como sempre fazia, mas desta vez de uma maneira acintosa. Já tinha retirado a seringa da veia que se dobrava a espremer o algodão. Deu um jeito melhor nos lisos cabelos do velho, fê-lo ficar mais confortável no travesseiro, acertou-lhe o lençol, beijou-lhe a testa de muitas rugas.

— Eu devia dormir aqui no quarto com você.

— Não precisa. — falou o velho, num fio de voz, cara relaxada pela descontração que a Adrenalina provocara.

Raulzinho abriu a veneziana, fechou melhor a cortina marrom, novamente beijou o velho e voltou à cama, pensando em dinheiro. Trinta dinheiros era o que pensava.

A ideia, já tivera. Como realizá-la, o dicionário explicou: embolia. O livro policial que lera há pouco garantia a dificuldade do diagnóstico da injeção de ar na veia. Os sintomas eram os da morte por colapso. O coração do velho Tomás, com o progresso dos ataques — os vizinhos eram testemunhas — ao parar, não poderia trazer acusações a ele, santo filho, sempre atento para a aplicação da injeção salvadora.

Na mesma noite o velho Tomás sentiu o aperto no peito.

— Depressa, Raulzinho!

Não teve pressa. Gritou que já ia e tomou da seringa com um suor de mão que procurava enxugar na perna do short.

— Depressa! — repetiu o velho, mais rouco e mais tenso.

A seringa foi levada como se fosse uma arma. A diferença é que nela não havia líquido, apenas os centímetros de ar suficientes para lhe dar a herança.

— Já tou indo! — gritou, enquanto derramava na privada a Adrenalina tirada da ampola, cuidando de dar a descarga.

Dissimulava a excitação o melhor possível.

— Estou aqui, pai — disse, como sempre, olhando a seringa contra a luz pequena que o abajur produzia.

— Não, Raulzinho. Não preciso de injeção. É que eu estive pensando numa coisa. Eu estou velho, no fim da vida. Pra que eu quero dinheiro? Amanhã vamos ao tabelião e eu vou passar tudo o que tenho para o seu nome. Você não necessitará mais ser empregado de ninguém, pode abrir um negocinho, sei lá...

Pensou em atirar a seringa contra a parede e, ajoelhado aos pés do velho Tomás, pedir perdão pelo que se dispunha a fazer. Não pôde, faltou-lhe chão aos pés. Os olhos, anuviados, não o deixaram ver nada além de sombras que se desmanchavam muito depressa.

Caiu, com a mão no peito. A seringa rolou para o canto da parede.

O velho Tomás levantou da cama com rapidez juvenil e, muito preocupado com o desmaio do filho, nele aplicou a injeção que Raulzinho trazia para salvar a vida do "pai".

Fonte: Chico Anysio. O Enterro do Anão. Publicado em 1973.

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