segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Júlia Lopes de Almeida (Predestinação! )


Quantos e quantos dias se passaram depois daquele em que a mão divina de Shakespeare escreveu no seu imorredouro Hamlet:

"There are things in heaven and hearth, Horatio,
Than are dreamt of in your philosophy."

E ainda hoje, como talvez daqui a um longuíssimo amanhã, se continua a sentir o mesmo que o príncipe da Dinamarca afirmava ao amigo que há coisas no céu e na terra que não são suspeitadas pela filosofia...

Por mais que as ciências vitoriosas dêem ao homem moderno uma idéia positiva da vida, ele sente-se acorrentado por um doce fantasma ao mundo invisível que abre a sua imaginação inquieta perspectivas infinitas. O mais independente e, quiçá mais feliz, que tudo nega, lá encontra um dia no seu caminho uma interrogação a que não sabe responder e que o obriga a levantar os olhos com espanto.

Uma crença que nasce, uma visão que passa, um pressentimento, um aceno do nada, um sopro, bastam para ligar muita vez, mesmo que momentaneamente, o espírito mais livre ao singular encanto do mistério. De resto, não há quem não conte, ainda que vagamente, com o auxílio da sorte, o que é ainda acreditar nas determinações do desconhecido, certos como estamos que nem tudo dependerá nunca de nós mesmos. O — "se Deus quiser", — que é para os deistas uma fórmula sem contestação, não deixa de ter na boca dos ateus uma significação, inexplicável, mas sincera.

Toda a gente conta com uma força superior que vai regendo os destinos humanos, impassivelmente, através dos séculos, e de que se emana todo o bem — e todo o mal da nossa alma.

Haverá quem viva na terra só pela terra, sem outra preocupação que a da hora porque está passando e o trabalho sobre que está curvado? Não conhecendo o embalamento da esperança amiga, a mais perceptível das criações sonhadas, como poderá esse ente arquitetar os castelos em que nos abrigamos nos momentos de susto ou de enfado? Sem o mundo irreal, já não me lembro quem perguntou, não seria insuportável o mundo visível? E para que nos cansarmos procurando em vão, sempre em vão, adivinhar o que nos parece apenas pressentir?

Para esta fome da alma, nunca satisfeita, nunca apaziguada, nasceram as religiões, que se transformam, mas não acabam, e que ainda assim não bastam, visto que mesmo os homens mais religiosos não são alheios à superstição.

Fatalidade! Eis a palavra que sem explicar nada tudo explica, e é como que um grande manto de demência atirado sobre todos os cumes e todas as obsessões.

Um dia entrou-me em casa um cavalheiro de cabelos brancos e mãos trêmulas, causadas do trabalho bendito de apontar às crianças as letras do A B C.

Deve ser conhecido aí pela cidade; tem setenta anos, ainda moureja, e passou toda sua vida clareando o espírito dos analfabetos. Aí está um trabalho!

Quando o vi entrar, por ele ser velhinho dei-lhe a melhor cadeira, e como sou da raça dos que amam ouvir histórias, prestei-me a ouvir a sua.

Têm reparado? Para os velhos não há prazer comparável ao de contar a sua vida. Relembrando as horas rapidíssimas do prazer, ou as lentas da agonia, luzem-lhes nas pupilas, através da névoa da velhice, que com mais acerto se deveria chamar — nevoeiro da saudade — uma claridade branda, de primavera.

É uma ternura, um rejuvenescimento da alma, que atestam, mais que tudo, como a vida é boa e amada. O carinho com que são lembrados os dias da mocidade, tão passageira, tão fugitiva!

"Sou um predestinado, dizia-me ele; não acredita na predestinação? Sete vezes o fogo reduziu a cinzas os meus haveres e me deixou nu, quase a pedir esmolas! Nasci para reagir..."

Na primeira vez, contou-me, ele ainda era moço quando um incêndio lhe devorou o negócio. Forte e sereno, levantou os ombros e disse — Paciência!

No dia imediato ao do desastre recomeçou a trabalhar para reconstruir o que as labaredas tinham desfeito. Pouco a pouco, com economia e ambição de fortuna, angariou alguns contos de réis. Casou então, teve um filho, e quando maior número de promessas lhe fazia o futuro, veio outro incêndio que lhe levou até o berço do filhinho.

Mas ele ainda era moço e tinha confiança em si — Paciência! — murmurou ainda, e recomeçou na canseira.

Não me lembram as minúcias do drama em que esse novo Job cavou e perdeu sucessivamente sete fortunazinhas, duramente adquiridas. O que me impressionou não foi isso; à força de ler e de ouvir misérias vai a gente ficando preparada para as mais dolorosas confidências. O que me deu uma sensação de novidade foi este desfecho, contado com simplicidade e tristeza:

"Depois do sétimo incêndio, fiquei sem ter que vestir. A mulher tinha morrido, o filho estava fora. Um vizinho, condoído, deu-me umas roupas e dinheiro para um par de botinas, visto que eu nunca me acostumara a andar descalço e as que trazia estavam em mísero estado. Fui ao meu velho sapateiro, único homem que sabia ajeitar o couro nos meus pés doloridos; fiz-lhe a encomenda, paguei-lha e voltei resignado para o canto de empréstimo em que eu descansava os ossos magoadíssimos.

Estava cansado, mas não desanimado; mais uns dias de repouso, embora poucos, e eu voltaria para o cepo a recomeçar a vida pela oitava vez!

Uma manhã, apelando para toda a minha energia de homem, desci à cidade a trabalhar para o último filho que me restava. Havia ainda alguém que precisava da minha coragem e da minha força, e esse alguém seria servido.

Para apresentar-me no emprego era mister que eu fosse antes calçar as botinas novas; dirigi-me para a sapataria e encontrei-a transformada em um montão de cinzas: ardera toda na véspera; só havia de pé uns restos de paredes e umbrais carbonizados! Minha surpresa foi tamanha, que não cria nos meus olhos; e eu, que já sete vezes tinha visto destruída pelo fogo a minha propriedade, ganha com tanto esforço e tanto sacrifício; eu, que por causa de incêndios passara por humilhações e trabalhos sem conta, sempre com uma resignação que nem sei de onde me vinha, por amor daquele par de botinas sucumbi e, pela primeira vez, chorei como uma criança!

Percebi então claramente que em vão lutaria contra o meu destino. Agora, já serenado, espero o oitavo incêndio, que consumirá os meus ossos e purificará a minha carne."

Assim falou o velho de barbas brancas e mãos trêmulas, que tão vivamente me trazia à lembrança o experimentado varão da terra de Hus. Job, tosquiando a cabeça e rasgando os vestidos, sentou-se num monturo a raspar com um caco de telha a imundice do corpo, em servidão espontânea aos mandados de Deus. Este novo Job, conquanto certo de uma perseguição misteriosa que o há de vencer, luta, trabalha com pertinácia, e ainda se chega para onde ouve falar em criancinhas, com o sentido de ensiná-las a ler!

"Enquanto se vive trabalha-se" resumiu ele ao despedir-se de mim. Sim; agora, como nos tempos antigos, há coisas no céu e na terra que não são nem sequer sonhadas pela filosofia; mas a verdade é que a maneira de gozar ou de sofrer a influência dessas coisas impenetráveis, é hoje, ainda bem para nós todos, muito diferente da dos dias de Job!

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Livro das Donas e Donzelas. Belém/PA: Núcleo de Educação a Distancia da Universidade da Amazonia (UNAMA).

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