segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Sítio do Picapau Amarelo V – Pedrinho


V Pedrinho

Chegou afinal o grande dia. Na véspera viera para dona Benta uma carta de Pedrinho que começava assim:

“Sigo para aí no dia 6. Mande à estação o cavalo pangaré e não se esqueça do chicotinho de cabo de prata que deixei pendurado atrás da porta do quarto de hóspedes. Narizinho sabe.

Quero que Narizinho me espere na porteira do pasto, com a Emília no seu vestido novo e Rabicó de laço de fita na cauda. E tia Nastácia que apronte um daqueles cafés com bolinhos de frigideira que só ela sabe fazer.”

Em vista disso Narizinho levantou-se muito cedo para preparar a recepção de acordo com as instruções da carta. Enfiou em Emília o vestido novo de chita cor-de-rosa com pintinhas e enfeitou Rabicó de duas fitas — uma ao pescoço e outra na ponta da cauda.

Pac, pac, pac... Pedrinho apareceu na porteira, trotando no pangaré, corado do sol e alegre como um passarinho.

— Viva! — gritou a menina, correndo a lhe segurar a rédea. — Apeie depressa, senhor doutor, que temos mil coisas a conversar!

Pedrinho apeou-se, abraçou-a e não resistiu à tentação de ali mesmo abrir o pacote dos presentes para tirar o dela.

— Adivinhe o que trouxe para você! — disse, escondendo atrás das costas um embrulho volumoso.

— Já sei — respondeu a menina incontinenti. — Uma boneca que chora e abre e fecha os olhos.

Pedrinho ficou desapontado, porque era justamente o que havia trazido.

— Como adivinhou, Narizinho?

A menina deu uma risada gostosa.

— Grande coisa! Adivinhei porque conheço você. Fique sabendo, seu bobo, que as meninas são muito mais espertas que os meninos...

— Mas não têm mais muque! — replicou ele com orgulho, fazendo-a apalpar a dureza do seu bíceps que a ginástica escolar havia desenvolvido. E concluiu: — Com este muque e a sua esperteza, Narizinho, quero ver quem pode com a nossa vida!

Os presentes dos demais foram também distribuídos ali mesmo. Rabicó teve uma fita nova, de seda — e os restos do farnel que Pedrinho trouxera (e foi isso o que ele mais apreciou). Emília recebeu um serviço de cozinha completo — fogãozinho de lata, panelas, e até um rolo de folhear massa de pastel.

— E para vovó que é que trouxe? — perguntou Narizinho.

— Adivinhe, já que é tão adivinhadeira — disse ele.

— Eu só adivinho quando é você mesmo quem escolhe os presentes. Mas o presente de vovó aposto que não foi você quem escolheu, foi tia Antonica...

Pela segunda vez Pedrinho abriu a boca. Aquela prima, apesar de viver na roça, estava se tornando mais esperta do que todas as meninas da cidade.

— Tem razão. É isso mesmo. O presente de vovó quem o escolheu e comprou foi mamãe. Você precisa me ensinar o segredo de adivinhar as coisas, Narizinho...

Nesse momento dona Benta apareceu na varanda e Pedrinho correu a abraçá-la.

Dali a pouco estavam todos reunidos na sala de jantar, ouvindo notícias e histórias da cidade. Tia Nastácia trouxe da cozinha a gamela de massa, para não perder uma só palavra ao mesmo tempo que ia enrolando os bolinhos. Súbito, uma brisa soprou mais forte e um ringido se fez ouvir — nhem, nhim...

Pedrinho interrompeu a conversa, de ouvido atento.

— O mastro de São João!... — murmurou enlevado. – Quantas vezes no colégio me iludi com os ringidos das portas, imaginando que era a bandeira do nosso mastro!... Como vai ele?

— Já desbotado pelas chuvas e com um rasgão na bandeira bem em cima da cabeça do carneirinho — respondeu a menina.

O dia de São João era o grande dia de festa no Sítio do Pica-pau Amarelo. Reuniam-se lá todas as crianças dos arredores, para soltar bombinhas e pistolões e dançar em torno da fogueira. Pedrinho jamais faltou a essa festa anual, como jamais deixou de queimar o dedo.

Um ano em que não queimou o dedo ficou muito admirado.

Nos últimos tempos era Pedrinho quem pintava o mastro, caprichando em formar arabescos de todas as cores, cada ano dum estilo diferente. Também era ele quem fornecia a bandeira com o retrato de São João menino, de cruz ao ombro e cordeiro no braço.

Trazia-a da cidade, depois de percorrer todas as casas de negócio a fim de comprar a mais bonita.

— Está bem — disse dona Benta logo que soube das principais novidades. — Pode ir brincar com Narizinho, que tem um mundo de coisas a contar.

Os dois primos dirigiram-se ao pomar aos pinotes. Era lá, debaixo das velhas árvores que trocavam confidências e planejavam as grandes aventuras pelo mundo das maravilhas.

O assunto do dia foi o extraordinário caso da boneca.

— Parece incrível! — dizia Pedrinho. — Quando recebi sua carta contando que Emília falava, não quis acreditar. Mas hoje vejo que fala e fala muito bem. É espantoso !

— No começo — explicou Narizinho — Emília falava muito atrapalhado e sem propósito. Agora já está melhor, mas, mesmo assim, quando dá para falar asneiras ou teimar, ninguém pode com a vidinha dela. Sabe que já é condessa?

— Sim? Condessa de quê?

— De Três Estrelinhas, nome que ela mesma escolheu. Mas estou com vontade de mudar. Condessa é pouco. Emília merece ser marquesa.

— Marquesa de Santos?

— Não. Marquesa de Rabicó.

— É verdade!... Podemos fazer de Rabicó um marquês e casar Emília com ele!

— Isso mesmo. Tenho pensado muito nesse arranjo e até já o propus à Emília.

— E ela aceitou?

— Emília é muito vaidosa e cheia de si. Mas eu sei lidar com ela. Quando chegar a ocasião darei um jeito.

Terminado o assunto Emília, começou o assunto Reino das Águas Claras. Narizinho contou a série inteira daquelas maravilhosas aventuras, despertando em Pedrinho um desejo louco de também conhecer o príncipe-rei. De nada se admirou, conforme o seu costume. Tanto ele como Narizinho achavam tudo tão natural! Só estranhou que o Pequeno Polegar tivesse fugido da sua historinha.

— Isso, sim, não deixa de me intrigar — disse ele. — Se Polegar fugiu é que a história está embolorada. Se a história está embolorada, temos de botá-la fora e compor outra. Há muito tempo que ando com esta idéia — fazer todos os personagens fugirem das velhas histórias para virem aqui combinar conosco outras aventuras. Que lindo, não?

— Nem fale, Pedrinho! — exclamou a menina pensativa. — O que eu não daria para brincar neste sítio com a menina da Capinha Vermelha ou Branca de Neve...

— Eu só queria pilhar cá o Aladino da lâmpada maravilhosa, para tirar a prosa dele! — ajuntou Pedrinho que voltara da cidade com fumaças de valentia.

— E eu só queria Capinha. Tenho tanta simpatia por essa menina... Aqueles bolos que ela costumava levar para a vovó que o lobo comeu — que vontade de comer um daqueles bolos...

Uma voz conhecida veio interrompê-los:

— Narizinho! Pedrinho! O café está na mesa.

— Duvido que fossem melhores que os de tia Nastácia! — disse o menino erguendo-se.

E dispararam para casa.
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Continua... A Viagem

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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