terça-feira, 15 de novembro de 2011

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Sítio do Picapau Amarelo XI – A Rainha


Enquanto isso se passava no capoeirão dos Tucanos Vermelhos, lá no palácio das Abelhas a menina dizia ao ouvido da boneca:

— Já reparou, Emília, como é bem arrumado este reino? Uma verdadeira maravilha de ordem, economia e inteligência! Estive no quarto das crianças. Que gracinha! Cada qual no seu berço de cera, com pernas e braços cruzados, todas tão alvas, dormindo aquele sono gostoso... O que admiro é como as abelhas sabem aproveitar tudo de modo que a colméia funcione como se fosse um relógio. Ah, se no nosso reino também fosse assim... Aqui não há pobres nem ricos. Não se vê um aleijado, um cego, um tuberculoso. Todos trabalham, felizes e contentes.

— Isso não! — contestou a boneca. — O besouro é aleijado e pede esmolas.

— Besouro não é abelha, boba. Estou falando das abelhas.

— E quem manda aqui? Quem é o delegado? – perguntou Emília.

— Ninguém manda — e é isso o mais curioso. — Ninguém manda e todos obedecem.

— Não pode ser! — exclamou a boneca. — Quem manda há de ser a rainha. Vou perguntar. e chamou uma abelha que ia passando.

— Faça o favor, senhora abelhinha, de nos dar uma informação. Quem é, afinal de contas, que manda neste reino? A rainha?”

— Não senhora! — respondeu a abelha. — Nós não temos governo, porque não precisamos de governo. Cada qual nasce com o governo dentro de si, sabendo perfeitamente o que deve e o que não deve fazer. Nesse ponto somos perfeitas.

Narizinho ficou admirada daquelas idéias, e viu que era assim mesmo. “Que pena que também não seja assim na humanidade!”

— De manhã saímos todas — continuou a abelha — cada uma para o seu lado, a fim de recolher o mel das flores e o pólen. É disso que nos alimentamos. Depois guardamos o mel nos favos. Se há consertos a fazer, qualquer uma de nós os faz sem que seja preciso ordem. Se a menina passasse uns tempos aqui havia de gostar tanto que depois não mais se ajeitaria no reino dos homens.

— Mas a rainha? — perguntou a menina. — Estou cansada de esperar pela hora de conhecer essa grande dama. Deve ser linda, linda!...

A abelha continuou:

— Pensa que a nossa rainha é alguma dama emproada como as rainhas dos homens? Nada disso. Nem rainha é! Os homens é que lhe chamam assim. Para nós não passa de mãe. Todas somos filhinhas dela — todas, todas! E rodeamo-la de comodidades e carinhos, sem nunca lhe darmos o menor desgosto. Olhe, menina, lá no reino dos homens costumam falar muito em felicidade, mas fique certa de que felicidade só aqui. Cada uma de nós é feliz porque todas somos felizes. Lá não sei como pode alguém ser feliz sabendo que há tantos infelizes em redor de si!

Narizinho e Emília ficaram tristes. Que pena serem gente e não poderem transformar-se em abelhas para morar numa colméia daquelas, toda a vida ocupadas num trabalhão tão lindo como esse de recolher o mel e o pólen das flores...

— Mas a rainha, a rainha! — insistiu a menina. — Quero ser apresentada à rainha!

— Pois vamos lá — respondeu a abelha. — Sigam-me.

Foram. Depois de atravessarem vários compartimentos, chegaram aos cômodos reais. Lá estava Sua Majestade num trono de cera, conversando com vários zangões emproados e orgulhosos (pelo menos assim pareceu à menina).

— Bem-vinda seja! — saudou a rainha numa doce voz maternal. — Tem gostado da nossa colméia?

— Muito, Majestade! É o reino mais bem arrumadinho de quantos vi até agora. Estou positivamente encantada!

— O meu reino é assim — explicou a rainha — porque não é reino nenhum, mas uma grande família onde a boa mãe geral vive rodeada de todos os seus filhos. Já percorreu a colméia inteira?

— Já vi parte e tenho gostado de tudo, menos da cara desses senhores zangões, que me parecem emproados e orgulhosos...

— É que estão a me fazer a corte. Todos os anos escolho um dentre eles para marido, e os outros...

— Já sei! Os outros casam-se com as outras abelhas. A rainha sorriu.

— Não, menina! Os outros são condenados à morte e executados...

— Quê? — exclamou Narizinho horrorizada. — Acho que isso constitui uma crueldade, verdadeira mancha negra na organização das abelhas.

— Parece, menina. Mas é o jeito. Como não sabem trabalhar e a natureza os fez unicamente para serem esposos da rainha, as abelhas não têm a menor consideração com eles depois que a rainha elege um para esposo. Trucidam-nos e lançam os cadáveres para fora da colméia. Estas minhas filhas acham que o sentimentalismo não dá bom resultado em matéria de organização social.

Narizinho, cada vez mais admirada da inteligência da rainha, murmurou ao ouvido da boneca: “Vê, Emília? Isto é que é falar bem! Até parece aquele filósofo que vovó às vezes lê, o tal Rou... Rousseau, creio.”

Nisto um trrriin, trrriin, de esporas ressoou perto. Voltaram-se todos. Era Tom Mix que entrava. O cowboy correu os olhos pela sala. Logo que deu com a menina, dirigiu-se para ela.

— Recebi o recado, princesa, e aqui estou às vossas ordens!

— Que fim levou o marquês? — perguntou a menina com ansiedade, pois nada sabia do que se passara. — Está vivo ainda ou...

— Vivíssimo, senhora princesa! A estas horas já deve de estar atacando a segunda abóbora...

— Muito bem! — exclamou Narizinho, aliviada dum grande peso. — Quero agora, senhor Tom Mix, que me arranje uns burrinhos de carga para levar um pouco de mel e cera para vovó.

Tom Mix retirou-se para cumprir a ordem, enquanto a menina se dirigia de novo à rainha.

— Senhora rainha, poderá Vossa Majestade dar ordem à sua cozinheira para me oferecer um tostão de mel?

— Darei o mel e a cera que quiser — respondeu a rainha sorrindo; — quanto ao tostão, guarde-o para você, que aqui entre nós não tem o menor valor o dinheiro dos homens. Ali, naquela sala dos favos, é o depósito de mel. Vá lá e tire quanto quiser.

A menina agradeceu a gentileza e retirou-se para a tal sala com a boneca.

Tudo tão bem arrumado! Potinhos de cera cheios de mel em quantidade, todos iguais, com tampinhas também de cera.

— Querem mel? — perguntou logo uma abelha de avental muito limpa que tomava conta daquela repartição.

— Queremos, sim, senhora! Mel e cera.

— De que qualidade?

— Há de muitas qualidades?

— Temos aqui mel de flores de laranjeira, mel de flores de jabuticabeira lá do sítio de dona Benta e temos o mel mil-flores, colhido de todas as flores do campo.

— Dê-me de flores de jabuticabeira — resolveu logo Narizinho.

— E também um quilinho de cera bem branca, para tia Nastácia.

— Quem leva é aqui a sua criada? — perguntou a abelha indicando a boneca, enquanto fazia os pacotes.

Emília abespinhou-se toda, já vermelhinha de cólera. Mas a menina salvou a situação.

— Esta senhora não é minha criada e sim a Excelentíssima Senhora Condessa da Perna Vazia, futura Marquesa de Rabicó.

A abelhinha pediu mil desculpas, e ainda estava pedindo desculpas quando a entrada de Tom Mix à frente duma tropa de grilos arreados de cangalhas e ancorotes próprios para conduzir mel a interrompeu. Tom descarregou os ancorotes e esperou que a abelha meleira os enchesse. Depois os colocou de novo sobre as cangalhas e pediu instruções.

— Espere-me no portão do palácio com os cavalinhos prontos que também já vamos — ordenou-lhe a menina.
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Continua... A Volta

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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