(trecho do livro O Aprendiz de Tiradentes)
Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto, 1782
Ainda não eram sete horas da manhã e a rua já estava movimentada. Havia chovido a noite anterior e, por isso, a cerração que descia dos montes íngremes e do pontiagudo Itacolomi, que rodeavam a cidade de Vila Rica, enchia o ar de uma umidade fria, que estremecia a pele mal coberta do rapazinho.
Como fazia há três dias, ele colocou uma pedra grande que achara ali mesmo, na calçada, abaixo da janela e, subindo na pedra, deixou-se ficar espiando o trabalho do cirurgião. Só o cabelo claro, a testa e os olhos miúdos se alinhavam por cima da janela e, mesmo assim, porque se esforçava para equilibrar-se nas pontas dos pés. Saía dali somente quando as pernas ficavam dormentes ou quando as costas exigiam um descanso.
Às vezes, o garoto notava que o tira-dentes olhava em direção à janela; então, ele escondia-se rapidamente. Porém, naquele dia, olhava desavisado para os detalhes da sala que servia de consultório e demorou a perceber que o homem o encarava com feição dura. Desceu de seu pedestal improvisado e resolveu ir embora.
Quando estava passando à frente da porta do cirurgião, onde algumas pessoas esperavam por falta de espaço dentro da casa, um homem negro, que possuía o lado direito do rosto deformado, o segurou pelo braço. O rapaz já o havia visto antes, mas isso não impediu que levasse um enorme susto. Pensou que o tal homem fosse lhe dar uma bronca ou lhe bater por ordem do cirurgião. Tentou soltar o braço da mão grande e pesada que, sem nenhum esforço, o mantinha preso. O jovem começava a ficar apavorado, ensaiava já pedir ajuda, quando o escravo abriu um sorriso torto, afrouxou um pouco o braço magro e perguntou:
— Você conhece meu patrão?
— O cirurgião?
— Sim, ele mesmo – disse o homem, com toda pompa, enchendo o ar com sua voz forte.
— Escute, eu só vim aqui porque gosto de ver seu patrão trabalhar. Não estava fazendo nada de errado.
Como se o homem não tivesse ouvido o que o garoto dissera, falou, com ar compenetrado, quase encostando o rosto cheio de marcas horríveis perto do dele:
— Você quer que eu conte uma história? Eu gosto de contar histórias.
Já que o escravo não o libertava, o rapazinho soube que a resposta tinha que ser "sim".
"Meu patrão, quando mais jovem, era tropeiro, vivia por essas terras, vendendo mercadorias. Em uma de suas viagens, enquanto atravessava a cidade de Minas Novas, viu um mercador castigando um de seus escravos. O homem era ruim como o demônio: já havia matado muitas pessoas...
O tropeiro não tinha nada a ver com aquilo, porque, segundo a lei, escravo não é gente, mas nem quis saber se teria problemas: parou a cavalgada, desmontou com esperteza, num pulo, e foi para cima do malvado que pisava sem dó a cara do infeliz. Socou a cara do mercador, o deixou prostrado no chão e mandou que não fizesse mais aquilo. Depois foi acudir o ferido. A cara do patrão, quando viu o estado da cara do homem, virou um pavor. Foi até o cavalo, pegou uma água curativa e, com uns trapinhos limpos que levava, começou a cuidar das feridas abertas, arreganhadas. Falou que precisavam costurar aquilo.
O mercador, que tinha o coração duro, conseguiu se levantar e chicoteou as costas do patrão. Eles começaram uma briga de socos. Era capaz de um matar o outro, se os militares não tivessem chegado. O tropeiro, abatido, olhou para o escravo, cheio de piedade, e pediu desculpas por não poder fazer a costura. Patrão não sabia que nessa vida, muitas vezes, não se faz o bem sem se pagar por isso: além de ficar uns dias preso, perdeu os cavalos e as mercadorias, um pouco por causa dos furtos, outro tanto para pagar sua liberdade. Por causa disso, moço, ele ficou falido e teve que se alistar na tropa paga.
Um dia, estava andando pela feira da cidade de Mariana, quando ouviu: "Tropeiro da água santa, tropeiro da água santa!" Mesmo vestido com a roupa de alferes, não foi difícil para o homem saber que estavam chamando por ele, porque a fama de fazedor de remédios milagrosos já havia se espalhado por esse pedaço de Minas. Quando foi procurar quem o chamava, viu um escravo amarrado a muitos outros e reconheceu, pela cara horrível, aquele que ele ajudara meses antes. O prisioneiro não podia conversar com os passantes, mas conseguiu, com esforço, dar um sorriso todo errado, e dizer, com os olhos cheios de lágrima: "obrigado".
O alferes não deu sinal nenhum de importar-se com ele. Indiferente, saiu dali caminhando mais rápido, como se quisesse fugir da figura ridícula. O cativo ficou triste, mas compreendia o homem e compreendia também, àquela altura da vida, que viver arrastado pelo mercador, entre os intervalos de tortura, seria seu destino, porque, com aquela cara e com uma perna manca, não ia conseguir mesmo ser vendido.
Mais tarde, quase na hora do sol se pôr, aparece um frei com sua roupa preta puída e começa a olhar um escravo aqui e outro acolá. Faz o mercador abrir a boca deles para mostrar os dentes, pergunta o preço de vários e acha todos muito caros. Finalmente, vê o homem deformado, aponta para ele e pergunta o preço.
O mercador teria lucro se deixasse o coitado ser levado de graça, pois pouparia a pouca comida que dava para ele. Mas a sede de dinheiro era nele uma doença: pediu uma quantia absurda. Quando viu que o padre ia embora, foi andando atrás dele, abaixando o preço, abaixando mais, até que o religioso fez uma oferta e abriu a mão com as poucas moedas que tinha. Ofereceu também orações pela alma do mercador.
Com muito esforço, o pobre conseguiu seguir o padre que andava rápido e reclamava do atraso para a missa. Quando chegaram à igreja, foram direto a um cômodo que ficava ao lado da sacristia. O lugar, uma espécie de biblioteca, era abafado e mal cheiroso, mas possuía tantas estantes e tantos livros acomodados nelas, que o cativo começou a esquecer sua situação e ficou admirando aquilo. Só depois de um tempo reparou que um homem, sentado perto da porta, esperava por eles. Era o tropeiro da água santa.
— Não sei o que pretende fazer com isso – disse o padre – mas aqui está ele, e você me deve cinco moedas.
O patrão andou até o escravo, tocou os ombros dele, sorriu e disse:
— Seu rosto não precisava ter ficado tão ruim. Dos nossos prejuízos, você ficou com a pior parte.
E virando-se para o padre:
— Cônego Vieira, traga pão e vinho para esse filho de Deus. Deixa este faminto fazer a
comunhão.
— Sacrílego!
E o padre saiu reclamando, mas foi buscar a comida.
O rapazinho, envolvido pela história e pela maneira simpática como o homem de feições medonhas a contava, não havia percebido que seu braço estava livre.
— O escravo da história é você?
— Sim, e aquele lá dentro é o homem que me salvou.
O jovem ficou calado. Tímido e ainda com medo, apesar de estar curioso para saber mais sobre o cirurgião, esperou que o escravo se distraísse e correu para longe dali.
Fonte:
Simone Athayde. O Aprendiz de Tiradentes. Disponível em http://www.simoneathayde.com.br/contemas.asp
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