domingo, 12 de janeiro de 2014

Natércia Campos (Almofala)

Para meu filho Zé,
cuja sombra foi levada no redemoinho
enfeitiçado de um rio e hoje vive
encantada em mim.

Em Almofala o vento errante era inexorável no seu eterno movimento a levantar os infinitos grãos de areia. Ele os espargia formando dunas e, em uma lentidão exasperante, as fazia caminhar ao seu sabor. O vento possuía magias ao impelir, invisível, as nuvens, tornando-as esfiapadas e etéreas, ao filtrar os raios de sol, e densas com formas grotescas de rostos e rebanhos, pesadas de chuvas, que as ensombravam. Os ventos chegavam ali de muito longe, das pradarias, vales, cordilheiras e oceanos, mas dependendo de sua natureza, podiam descer céleres, irados, dos espaços, causando vendavais e tormentas. Por vezes, vinham serenos, como brisa, roçando de leve o mar, ondulando as águas e as velas das embarcações. Eram constantes, dia e noite, e nada lhes barrava os caminhos. Com manha e paciência, eles conseguiam aplainar os obstáculos e desviar destinos. No ano em que os gêmeos nasceram, a igreja tornara-se um estranho mausoléu, soterrada pela areia. Emergia daquela singular elevação a torre com seu campanário ainda descoberto, a salvo, como um bizarro marco de sepultura. A menina veio à luz ao meio-dia, quando de repente os sinos repicaram magicamente, tocados pelas rajadas de areia fustigadas pela ventania. O menino só nasceu quando os ventos amainaram e ondularam suavemente, como um bafejo, a vegetação rasteira e os longos e agrestes caniços.

A mãe havia tido outros filhos homens que debandaram cedo, mundo afora, sem apegos, assim ela os criara. Os gêmeos nasceram temporãos, estranhas sementes trazidas pelo ar. A mulher percebeu nos filhos uma leve e contínua oscilação, como se o sopro do vento os envolvesse, a desabrochá-los. Com o tempo ela surpreendeu-se pela afeição extrema que dedicava àquela filha. Os gêmeos cresciam iguais, refletindo um a imagem do outro. Brincavam alheados no seu contínuo e brando vaivém. A menina, mais irrequieta, lembrava o vento de verão, desencadeado e solto a provocar os redemoinhos inesperados de areia. O menino, cada vez mais sereno, igual à aragem que antecede as monções camuflando tempestades. Juntos, pareciam duas correntes de ar a se completarem, e eram de grande valia à mãe. Esta procurava dar as tarefas mais pesadas ao filho, mas a menina jamais se distanciava do irmão nesses momentos.

Eram vistos cedo, ao levantar do sol, indo atalhar a cabra no bebedouro de água doce. Traziam-na docemente, puxando-a pela corda com seu chocalho soando como sinos e a mãe tirava o leite grosso e amarelado que os meninos bebiam no seu constante movimento de pêndulo, quando a areia se amontoava na soleira da casa, a mulher mandava que o menino a retirasse com a longa pá. A menina postava-se ao seu lado, tentando ajudá-lo, enchia com uma lata o balaio forrado de talas de palmeira, que os dois despejavam longe contra o vento. O menino acordava cedo e alvoroçado nos dias em que a mãe lavava roupa no córrego. A menina ia sempre adiante pulando a banhar-se na areia, agarrada à sua desconjuntada bruxa de pano. Ele levava as bacias, o sabão, emparelhado aos passos da mãe, que seguia calada com as trouxas e os vasilhames de comida. A mulher lavava os hábitos e panos das freiras e noviças do distante internato. A menina logo entrava na parte mais alta do arroio, molhando-se a gritar com algazarra. O menino auxiliava a mãe, cavando um grande buraco, para onde desviava a água corrente, deixando ali de molho as roupas, antes de começarem, juntos, o infindável esfregar. A mulher falava com ele ensinando-lhe, dando-lhe ordens, a que o filho obedecia, irmanado totalmente à voz e à figura da mãe. Era o grito da irmã, chamando-o, que o tirava daquele açodamento, e a contragosto sujeitava-se à vontade da mãe, que o mandava ir brincar com a menina. Ficava, no entanto, alerta ao primeiro chamado da mulher para vir ajudá-la a tirar a roupa do coradouro. Mais tarde, famintos, comiam o que a mãe esquentava na velha trempe deixada ali, à sombra das barreiras. À tardinha, recolhiam a roupa branca, que parecia cintilar, dobravam-na, e o cheiro gostoso de sol e sabão daquelas peças entravam-lhes pelo corpo. A mulher enfiava tudo em sacos, e regressavam, já a barra do final do dia surgindo no horizonte. À noite, a mãe sentava a filha no colo e passava óleo de coco nos seus cabelos, fazendo, com desvelo, duas longas tranças. O menino, da rede, olhava-as, sentindo-se apartado e infeliz. Percebia que conversavam baixinho e depois, juntas, rezavam. A mãe então embalava a filha, que, por fim, adormecia, ele continuava de olhos abertos, fitando a luz trêmula da lamparina, que parecia ampliar sua solidão.

Os gêmeos tinham por obrigação entrar na mata certos dias, a fim de apanharem gravetos e lenha, para a mãe acender o fogão de barro.

O menino levava com ele uma lata, e, antes de começar a tirar a madeira, procurava, sob as folhas peludas e grossas do muricizeiro, as frutinhas miúdas e amarelas que sua mãe apreciava. Os meninos haviam aprendido com ela a quebrar nos joelhos as forquilhas e pequenos pedaços de pau, enfeixando-os depois com um cipó. A menina ajudava o irmão a equilibrar na cabeça a rodilha de pano encimada pelo feixe das achas secas de lenha. Ele, ao chegar em casa, estendia para a mãe a lata com o murici, e á noite ela fazia para eles cambica com açúcar e farinha de mandioca. Os gêmeos às vezes eram chamados pelos homens dos roçados distantes. O menino então preparava contrito, enrolando em espiral, estreitas tiras de haste de buriti, que a menina, acocorada, atava com embira-do-mangue. Com este assobio de folha o menino chamava o vento, que descia manso, ajudando os homens na debulha das vagens de feijão e dos caroços de mamona. Quando era preciso o vento descer violento para as grandes queimadas de roçado e capoeiras, a menina o auxiliava, assobiando demorado e longamente. Recebiam, em troca, caça e frutas, que levava, para casa, onde a mãe já os esperava no alto da barreira de veios azinhavrados, parecendo minar ferrugem devido à maresia.

A mulher descera ao encontro deles e agarrara a filha com alegria, carregando-a nos braços. Nem chegou a perceber que ele trouxera um escuro ninho de abelha irapuá. O menino o encontrara no cerrado dependurado no cajueiro. Fizera de palha um facho em que ateou fogo e afugentara as abelhas. Desprendera da árvore o ninho cheio de mel e, amarrando-o na camisa, andara pelos caminhos com extremo cuidado para entregá-lo à mãe, pois sabia de sua preferência pelo mel dessa abelha.

Nessa noite, a lua cheia não o deixou dormir. Através da fresta da porta vira iluminadas a irmã e a mãe, rindo e conversando. Arredio, achegou-se a elas, que, alheadas à sua presença, partiam os favos, enxotando ás vezes alguma solitária abelha, e bebiam o mel, lambuzando-se até ficarem enjoadas e sonolentas. A mãe então banhou a menina, vestiu-a e penteou-a. Ele, já deitado, custou a dormir, sentindo-se desgarrado, como que perdido.

Prendia a custo o choro, que teimava em sair como soluços.

Na época em que sopraram os ventos elísios, em pleno estio, o menino fez uma grande cruz de cana, cobrindo as varetas com papel fino e de cor. Ele a empinava contra o vento e a mantinha segura quase solta no ar. De longe, aquela armação presa a uma comprida e bifurcada cauda de panos assemelhava-se ao peixe arraia, como se ele houvesse subido aos céus provido de asas. A irmã correu para junto dele acompanhando-o. Subia e descia barrancos, atravessava correntes finas de água doce, parecendo também prestes a voar. Ao subir até o alto do platô, para altear o voo da longínqua e diminuta cruz, é que o menino notou a irmã à sua frente. Meio tonto e sem ar, deteve-se atrás dela. Foi tudo tão rápido que ele chegou a sentir quando a menina estranhamente voluteou, perdendo o equilíbrio. Ele assistiu a irmã despencar-se na grota da alta barreira. Deu-se conta do silêncio pesado que a tudo envolveu quando o corpo parou de cair, no fim daquelas paredes profundas e sombrias. Correu alucinado até a casa e contou à mãe, em espasmos, o que acontecera. Ele a guiou até o cimo da barreira, onde os dois estacaram, olhando a menina ainda mais miúda semelhando-se a sua desconjuntada bruxa de pano. Desceram mãe e filho pelas dunas, dando largas voltas, apoiados às lombadas cavadas pela erosão. A menina já estava quase toda revestida de areia, que a ventania levantava em miríades de fino pó. Ambos sabiam que se não a levassem dali o vento a enterraria durante a noite, aplainando aquela elevação.

Enlaçados e, passo a passo, seus vultos, carregando a menina, projetavam-se em esquisitas sombras pelas dunas que se moviam caladas e inexoráveis. Na estrada das Almas, no alto do céu, o carreiro de Santiago atravessava o firmamento. Cansados, viram aflorar da areia a cumeeira da casa em vigília. Ela escutou, nas horas tardias da noite, o bimbalhar longínquo de sinos, choros e gemidos tangidos pelo vento, que até a madrugada se lançou em rajadas bruscas sobre a casa. Pela manhã, o menino não conseguiu abrir a pequena janela, algo fortemente a escorava. Saiu pela porta da frente notando que a casa parecia desequilibrada, estranhamente diminuída. Todo o lado de trás fora calçado pela areia, que se amontoara. De longe, lembrava-lhe um barco à deriva.

Sentiu que a mãe o fitava por cima de sua cabeça em um ponto muito além. Abraçou-se a ela, chorando desnorteado. Muito depois, quando suas lágrimas secaram, notou que o seu contínuo movimento de pêndulo cessara por completo. Dias depois a mãe costurara uma bata comprida, ajudando o filho, submisso, a vesti-la pela cabeça, como um saco. Desde então ele usou aquela veste, que o fazia ainda mais parecido com a irmã. Por onde o menino passava com aquele sambenito cheio de remendos e cerzidos, recordava a todos um pobre penitente nos autos-de-fé. Ele vivia cada vez mais ao redor da mãe, cheio de aflição, e seu olhar surpreso continha uma muda indagação.

A mulher nunca mudou os hábitos, continuou a dividir tudo em três porções, e mandava o filho ir chamar a irmã de volta para a casa. Ele obedecia, retornava em silêncio, esgueirando-se para perto do fogão, mas nunca se sentava no lugar que era o dela. Aos poucos, ele se confundia, tinha às vezes a vaga impressão da presença da menina. Ouvia a mãe conversar baixinho com a irmã, pedindo-lhe sempre para não sair de casa sem antes avisá-la. À noite armava as redes, cheirando lençóis, roupas da filha e abençoando-a. O menino há muito acostumara-se a dormir embalado pelo choro dorido da mãe. Certa noite de inverno escutou ao passar perto do mangue gritos que o assombraram. Ouviu vozes de animais, ruídos de pescador, caçador e alguém quebrava lenha colhendo mel das abelhas. Correu desesperado, contando à mãe sobre a visagem. Ela persignou-se falando: é o guajara que vive encantado no pântano.

A irmã encheu o tempo e a vida dele, devagarinho como o vento, presente e invisível. Notava já sua chegada, ao ouvir cicios de vozes e sussurros na aragem noturna, zumbido nas folhagens. Nas manhãs em que acompanhava a mãe ao córrego, olhava-se na água transparente como vidro e via refletida a sua imagem, tão clara, que mergulhava sôfrego ao seu encalço. Ele, enquanto viveu, foi sempre a sombra da irmã. Compartilhou sentimentos de amarguras, esperanças, sonhos e pesadelos. Só a mãe os separou, até o final dos seus dias. Foi ainda a irmã a última imagem que seus olhos viram ao apagarem-se. Estava ela à sua espera, ainda tão pequena, afogueada da subida ao platô, quando ele em um movimento brusco, igual a um traiçoeiro golpe de ar repentino e frio, empurrou-lhe as costas rumo ao abismo.

 (Natércia Campos, Iluminuras)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

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