segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Edy Soares (Fragata da Poesia) 59: Vivendo e aprendendo

 

Dicas de escrita (O Conto de Fadas)


O conto de fadas passou por uma evolução significativa ao longo dos séculos, refletindo mudanças culturais, sociais e literárias. Aqui estão alguns dos principais aspectos dessa evolução:

Começaram como histórias orais, transmitidas de geração em geração. Essas narrativas muitas vezes continham ensinamentos morais e eram utilizadas para entreter e educar.

No século XVII e XVIII, com a escrita, autores como Charles Perrault e os irmãos Grimm começaram a coletar e formalizar essas histórias. Perrault, em particular, adaptou contos como "Cinderela" e "Chapeuzinho Vermelho", acrescentando uma moral explícita.

Nos primeiros contos de fadas escritos, a moralidade era um aspecto central. As histórias frequentemente traziam lições sobre virtudes e comportamentos desejáveis.

No século XIX, durante o Romantismo, os contos de fadas passaram a explorar temas mais profundos, como a psicologia dos personagens e a luta interna entre o bem e o mal. Autores como Hans Christian Andersen introduziram elementos mais sombrios e complexos.

Nos séculos XX e XXI, com o advento do cinema e da televisão, os contos de fadas foram reinterpretados em novas mídias. Disney, por exemplo, transformou muitos contos clássicos em animações, suavizando temas sombrios e enfatizando finais felizes.

Nos últimos anos, muitos autores têm reimaginado contos de fadas, subvertendo suas narrativas tradicionais. Obras como "Ferro e Sangue" de Philip Pullman e "A Rainha Vermelha" de Victoria Aveyard oferecem novas perspectivas e críticas sociais.

Contos de fadas de diversas culturas começaram a ganhar destaque, mostrando a riqueza e a diversidade das narrativas ao redor do mundo. Isso levou à inclusão de novas vozes e experiências na tradição dos contos de fadas.

A análise feminista trouxe uma nova luz aos contos de fadas, questionando as representações de gênero e propondo versões que empoderam as personagens femininas, como em "As Crônicas de Nárnia" de C.S. Lewis.

A evolução dos contos de fadas reflete não apenas as mudanças nas expectativas e valores sociais, mas também a adaptação dos contos às novas realidades e à diversidade cultural. Essa forma literária continua a se reinventar, mantendo sua relevância ao longo do tempo.

São profundamente influenciados por elementos culturais específicos de diferentes regiões do mundo. Aqui estão alguns dos principais fatores que moldam essas narrativas:

1. Tradições e Mitos Locais
Contos de fadas frequentemente incorporam mitos e lendas locais. Por exemplo, os "Contos de 1001 Noites" refletem a rica tradição oral do Oriente Médio.

2. Valores e Moralidades
Os valores culturais, como respeito à família, honra e coragem, são frequentemente refletidos nas lições morais dos contos. Na cultura africana, muitos contos enfatizam a sabedoria dos anciãos.

3. Religião e Espiritualidade
Elementos de crenças religiosas podem aparecer, como em contos europeus que incluem figuras como fadas ou demônios, muitas vezes simbolizando o bem e o mal.

4. Estruturas Sociais e Hierarquias
A representação de classes sociais e papéis de gênero varia amplamente. Em muitos contos ocidentais, princesas são frequentemente salvas por príncipes, enquanto contos de outras culturas podem apresentar heroínas mais ativas.

5. Clima e Ambiente Natural
O ambiente natural também influencia o desenvolvimento das histórias. Contos nórdicos, por exemplo, frequentemente incluem elementos da natureza rigorosa, como florestas densas e invernos rigorosos.

6. História e Política
Eventos históricos, como guerras ou colonizações, muitas vezes moldam as narrativas. Contos de fadas da Europa medieval refletem as tensões sociais e políticas da época.

7. Interação Cultural
A globalização e a troca cultural levaram à adaptação de contos de fadas. Por exemplo, versões ocidentais de contos orientais podem incorporar elementos de diferentes tradições.

8. Estilo e Forma Literária
Diferentes regiões têm estilos únicos de contar histórias. A oralidade é mais prevalente em algumas culturas, enquanto outras possuem uma rica tradição escrita.

9. Simbolismo e Arquétipos
Certos símbolos, como a maçã em "Branca de Neve", podem ter significados variados em símbolos, como a maçã em "Branca de Neve", podem ter significados variados em diferentes culturas, refletindo crenças e valores locais.

Esses elementos culturais não apenas enriquecem os contos de fadas, mas também ajudam a transmitir a identidade e a moral das sociedades em que essas histórias são contadas. A diversidade dos contos de fadas ao redor do mundo é um testemunho da criatividade humana e da complexidade das experiências culturais.

Escritores que abordam os Contos de Fadas

Charles Perrault (1628-1703)
Introduziu a forma escrita dos contos de fadas. Suas histórias, como "Cinderela" e "Chapeuzinho Vermelho", são conhecidas por suas lições morais e finais didáticos.

Irmãos Grimm (1786-1859, 1789-1863)
Coletaram e adaptaram contos populares da tradição oral alemã. Suas versões, como "Branca de Neve" e "Rapunzel", frequentemente contém elementos sombrios e moralidades complexas.

Hans Christian Andersen (1805-1875)
Conhecido por suas histórias poéticas e emocionais, como "A Pequena Sereia" e "A Rainha da Neve". Seus contos muitas vezes exploram temas de amor, sacrifício e transformação.

Oscar Wilde (1854-1900)
Escreveu "O Príncipe Feliz" e outros contos que misturam humor e crítica social, apresentando personagens trágicos e reflexões sobre a natureza humana.

Monteiro Lobato (1882-1948)
Criou contos de fadas adaptados ao contexto brasileiro, como "A Menina do Narizinho Arrebitado". Suas histórias combinam elementos da cultura popular com críticas sociais.

Ana Maria Machado (1941-)
Autora contemporânea que escreveu contos de fadas modernos, como "O Mágico de Oz" adaptado. Suas narrativas muitas vezes incorporam temas de empoderamento e diversidade.

Ruth Rocha (1931-)
Escreveu contos que misturam fantasia e realidade, como "A História de Páscoa". Seus textos são acessíveis e educativos, com foco em valores como amizade e solidariedade.

Lia Zatz (1944-)
Conhecida por suas adaptações e criações originais de contos de fadas que abordam questões sociais e emocionais, trazendo uma perspectiva contemporânea para a narrativa.

Como escrever um conto de fadas

Escrever um conto de fadas envolve a combinação de elementos clássicos com criatividade e originalidade. Aqui estão algumas etapas, exemplos e dicas para ajudar nesse processo:

1. Escolha um Tema Central
Exemplo: O amor verdadeiro, a coragem, ou a luta entre o bem e o mal.

Dica: Defina a mensagem ou moral que você deseja transmitir. Por exemplo, um conto sobre coragem pode contar a história de um personagem que enfrenta seus medos.

2. Crie Personagens Arquetípicos
Príncipe, princesa, vilão, ajudante mágico.

Dica: Utilize arquétipos clássicos, mas adicione profundidade. Por exemplo, crie uma princesa que não espera ser salva, mas que luta por seu próprio destino.

3. Estabeleça um Mundo Mágico
Florestas encantadas, castelos, reinos distantes.

Dica: Descreva o ambiente de forma vívida. Um reino pode ser cercado por uma névoa mágica que esconde perigos e maravilhas.

4. Introduza um Conflito
Um vilão que ameaça o reino ou um encantamento que precisa ser quebrado.

Dica: O conflito deve ser claro e motivar a jornada do protagonista. Por exemplo, uma bruxa que sequestra a irmã do herói.

5. Desenvolva a Jornada do Herói
 O herói deve superar desafios e aprender lições ao longo do caminho.

Dica: Inclua ajudantes e testes. Por exemplo, o herói pode encontrar um animal falante que lhe dá conselhos ou um objeto mágico que o ajuda em sua missão.

6. Inclua Elementos Mágicos
Feitiços, objetos encantados, criaturas mágicas.

Dica: Use a magia para avançar a trama e criar surpresas. Um espelho mágico que mostra o futuro pode ser um ótimo recurso.

7. Conclua com uma Resolução Clara
O bem triunfa sobre o mal, ou o herói aprende uma importante lição.

Dica: A conclusão deve oferecer satisfação e reforçar a moral da história. Por exemplo, a princesa se torna rainha e governa com justiça após derrotar a bruxa.

Dicas Finais

Use uma linguagem simples e poética: Contos de fadas muitas vezes têm um ritmo lírico.

Incorpore repetição: Frases repetidas podem criar um efeito encantador.

Seja criativo com a moral: Evite lições óbvias; busque nuances que convidem à reflexão.

Seguindo essas etapas e dicas, você pode criar um conto de fadas envolvente e significativo que ressoe com leitores de todas as idades.
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EXEMPLO DA ESTRUTURA DO CONTO ABAIXO:

Título: A camundonga corajosa

Tema: Coragem e autoafirmação.

Personagens:
Camundonga Matilda (protagonista)
Bruxa Maligna Clotilde (vilã)
Corvo Tomás (sábio)

Mundo: Um reino cercado por uma floresta mágica e misteriosa.

Conflito: A Bruxa Maligna lança um feitiço que transforma os animais em pedra.

Jornada: Matilda decide enfrentar a bruxa. Na floresta, ela encontra o corvo Toby, que lhe dá um conselho. Ela enfrenta desafios, criados pela bruxa.

Resolução: Com coragem, Matilda derrota a bruxa. Ela aprende que a verdadeira força vem de dentro,.

Fonte: José Feldman. Dissecando a magia dos textos: Contos e Crônicas. Maringá/PR: IA Poe.  Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.

José Feldman (Conto de Fadas) A Camundonga corajosa



Nota: Veja a estrutura do Conto de Fadas no texto acima.
Era uma vez...
Em um reino distante, havia uma pequena aldeia cercada por uma floresta mágica e misteriosa. Nessa aldeia, vivia uma camundonga chamada Matilda. Embora fosse pequena e frequentemente ignorada, Matilda tinha um coração valente e sonhava em fazer grandes coisas.

O Problema
Certa manhã, os habitantes da aldeia acordaram assustados. Uma bruxa malvada chamada Clotilde havia lançado um feitiço, transformando todos os animais da floresta em pedras. Ela estava furiosa porque os animais não a acatavam e decidiu punir a aldeia por sua desobediência.

Matilda, percebendo que seus amigos, como o sábio corvo Tomás e a gentil raposa Flora, estavam petrificados, decidiu que era hora de agir. Com coragem, ela se aproximou do ancião da aldeia e perguntou como poderia ajudar.

A Jornada
O ancião contou que a única maneira de quebrar o feitiço era encontrar o Cristal da Coragem, escondido na montanha mais alta do reino. Matilda sabia que a jornada seria perigosa, mas não podia deixar seus amigos assim.

Com um pequeno manto feito de folhas e um pedaço de queijo na mochila, Matilda partiu em direção à montanha. No caminho, encontrou Tomás, que, mesmo petrificado, ainda podia falar.

"Se você deseja quebrar o feitiço, não se esqueça de ser corajosa e gentil", aconselhou o corvo. Matilda prometeu que não se deixaria abalar, e continuou sua jornada.

O Encontro com a Bruxa
Ao chegar à montanha, ela encontrou a entrada de uma caverna escura. Com o coração acelerado, ela entrou e se deparou com Clotilde, que estava guardando o Cristal da Coragem.

"Quem ousa entrar em meu domínio?" gritou a bruxa, com um olhar maligno.

"Eu sou Matilda, e vim quebrar o feitiço que você lançou sobre os animais", respondeu a camundonga, tremendo, mas determinada.

Clotilde riu. "Você, uma simples camundonga? O que pode fazer contra um feitiço poderoso?"

Matilda respirou fundo e, em vez de medo, falou com firmeza: "Eu posso mostrar que a verdadeira coragem vem do coração, não do tamanho."

O Desfecho
A bruxa, intrigada pela bravura de Matilda, decidiu testá-la. "Se você realmente tiver coragem, enfrente três desafios, e então eu considerarei libertar os animais."

Os desafios eram perigosos: atravessar um rio cheio de crocodilos, resolver um enigma mágico e, por fim, encontrar uma flor rara que crescia em uma montanha íngreme.

Com a ajuda de sua astúcia e a coragem que brotava de seu coração, Matilda superou cada desafio. Ela usou seu pequeno corpo para se esgueirar entre os crocodilos, pensou cuidadosamente para resolver o enigma e, com determinação, escalou a montanha até encontrar a flor.

Impressionada, Clotilde finalmente entregou o Cristal da Coragem a Matilda. Com um gesto gentil, a camundonga quebrou o feitiço, e todos os animais voltaram à vida.

Matilda voltou à aldeia como uma heroína, e Clotilde, ao ver a bondade e coragem da pequena camundonga, decidiu mudar seu comportamento. Ela não mais usou magia para causar medo, mas sim para ajudar a aldeia.

E assim, a aldeia aprendeu que a verdadeira coragem não é medida pelo tamanho, mas pela força do coração.

Moral: 
A coragem e a bondade podem superar até mesmo os maiores desafios.

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2024.

Recordando Velhas Canções (Meu sonho é você )

(samba, 1951) 

Compositores: Altamiro Carrilho e Átila Nunes

Quando eu passo
Pela rua onde mora
Aquela que eu perdi
Numa noite de verão
Ainda hoje, eu sei que ela chora
Ao recordar com saudade
Aquela amizade
Que o tempo levou, levou 

Meu desejo, era ser bem feliz
Mas o destino não quis
Vivo sofrendo afinal
Meu sonho é você
Que é todo o meu mal
Tudo terminou
De um modo banal
Tudo terminou
De um modo banal

A Melancolia de um Amor Perdido em 'Meu Sonho É Você'
A música 'Meu Sonho É Você', é uma balada melancólica que explora a dor de um amor perdido. A letra começa com o eu lírico passando pela rua onde mora a pessoa amada, que ele perdeu em uma noite de verão. Esse cenário evoca uma sensação de nostalgia e tristeza, sugerindo que o término foi abrupto e inesperado. A menção de que a pessoa amada ainda chora relembrando a amizade que o vento levou reforça a ideia de que ambos ainda estão presos ao passado e às memórias do relacionamento.

O eu lírico expressa seu desejo de ser feliz, mas lamenta que o destino não quis assim. Essa linha sugere uma resignação à fatalidade, como se o amor deles estivesse condenado desde o início. A repetição da ideia de sofrimento e a declaração de que seu sonho é a pessoa amada, que também é a causa de todo o seu mal, cria um paradoxo emocional. O amor, que deveria ser fonte de alegria, se torna uma fonte de dor insuportável. A conclusão de que tudo terminou de um modo banal adiciona uma camada de frustração, indicando que o fim do relacionamento foi trivial e sem sentido, o que torna a dor ainda mais aguda.

Dick Farney, conhecido por sua voz suave e interpretação emotiva, consegue transmitir a profundidade dessa tristeza através de sua performance. A música, com sua melodia suave e letra introspectiva, é um exemplo clássico do estilo romântico e melancólico que marcou a carreira do artista. A combinação de melodia e letra cria uma atmosfera de saudade e arrependimento, convidando o ouvinte a refletir sobre seus próprios amores perdidos e as voltas que a vida dá.

domingo, 29 de setembro de 2024

Newton Sampaio (Espetáculo)

Damião desce correndo aquele pedaço de rua.

— A campainha já parou de tocar. Vai começar a coisa.

Cruza com o Durvalino. Vai pras bandas da Amelinha, com certeza.

— Que pressa é essa, menino?

Nem responde. Estuga mais o passo.

— Tomara que ainda não tenha começado.

Atravessa a porta grande. Estranha o velho Gregório ainda na bilheteria.

— Pronto, padrinho. Ele mandou dizer que sim.

Entra no salão, com o pulso alterado.

Não. A função não começara ainda.

— Que sorte!

Ninguém quase. No reservado da direita, o Doutor Paiva, soleníssimo. Na terceira fila o seu Pernambuco, mais a família, gozando a delícia da permanente. Um pouco para trás, uma dúzia de espectadores. Lá em cima, como sempre, o negro Fabiano com a molecada. E bem na frente, rente à boca do palco, o Joca, afinando o instrumento.

— Coisa engraçada! Por que será que o pessoal não veio?

Juquita não compreende que o povo deixe de comparecer ao espetáculo do mágico.

— Ah! Quem sabe foi por causa da morte do Amâncio?

Acha que a razão é muito besta.

— Meu Deus! Morre um homem e agora ninguém mais se diverte?

Pela cabeça do Damião passa, de atropelo, um punhadão de pensamentos. Tem ímpeto de sair à rua e gritar:

— Pessoal! Ô, pessoal! Venha assistir ao espetáculo. Eu sei que o homem faz mágicas. Umas mágicas bonitas, eu sei.

E logo sente desejo de xingar o povo com os nomes mais feios do mundo. Detesta colossalmente, nesse momento, a gentalha da cidadezinha.

— Éguas! Bobalhões! Filhos da mãe!

Primeiro sinal. Música.

Segundo sinal. Silêncio.

Terceiro sinal. Aparece a cena, que é simples. Duas cadeiras. Uma mesa, com dois copos em cima. A caixa de papelão encardida. Vem o artista, desenxabido, vestindo uma roupa de gala muito surrada. A mulher é deselegante. Mais gorda ainda que dona Vitória. 

O homem parlenga dois minutos. Damião não entende bem. Só sabe que, a cada passo, ele solta:

— Cavalheiros... Damas...

As mágicas são bem bobas.

Umas coisas mais sem efeito, gastas, repetidas. O relógio que passa, invisivelmente, do bolso do espectador para a caixa de papelão. 

Um lenço branco que fica vermelho. O chapéu que vira passarinho.

No fim do espetáculo vêm aplausos tímidos, sem vontade. O homem se curva uma, duas vezes. A mulher agradece também.

Damião quer mais é derrubar o barracão, à custa de palmas. Só pra alegrar o mágico, que tem uns olhos muito tristes.

Diante da gaveta semiaberta, o velho Gregório, levantando a gola do casaco preto, aceita o fiasco com a resignação de sempre. E ainda troça, conferindo a aritmética da noitada:

— Está vendo? 25 pessoas. O delegado, o promotor, o Fabiano, os cinco moleques, o Pernambuco mais a família. Ao todo, treze pessoas que não pagaram. Doze entradas vendidas a 1$500 somam 18$000.

Conta redonda.

E articula, pausadamente:

— Dezoito mil réis.

O ilusionista foi ter com o empresário, no dia seguinte.

— O senhor ontem foi um pouco infeliz, não? — diz o velho.

— É. Não tive sorte, quase.

Faz um gesto de desalento:

— Já me aconteceu coisa parecida mais de dez vezes. Mas não faz mal.

— Paciência, amigo. A morte do Amâncio estragou a frequência. O senhor sabe. Povo do interior é assim. É muito respeitador.

O homem das mágicas tinha no rosto uma sombra de amargura infinita.

— Parece que não dá nem pra pagar o aluguel do teatro, não, seu Gregório?

Gregório levanta os ombros.

— Não importa. Perdoo o aluguel.

E fica pensando na coragem do homem em chamar aquilo de “teatro”.

Damião, no ângulo da saleta, espia com piedade a figura miserável do ilusionista. Tenta justificar consigo mesmo.

— Ele sabe fazer mágica. Sabe mesmo. O desastre foi a falta de assistência. Povo besta!

O artista solta um suspiro longo.

— Muito obrigado, seu Gregório, por sua boa vontade.

— Não há de quê. Disponha.

Já na porta, o homem volta-se. Fala, com brandura, humilde:

— Quando fui à sua casa, vi lá, num canto, uma pequena mala desocupada. O senhor não poderia fazer presente dela?

— Pois não. Pode ir buscar.

— É só carregar as bugigangas. A minha está tão velha...

Fica atrapalhado. Não sabe como explicar.

— Desculpe, senhor. Desculpe.

Damião aproxima-se discretamente do velho. E cochicha.

— Padrinho. Dê vinte mil réis ao coitado. Dê.

Gregório atende o menino. O artista ambulante agradece comovidíssimo. E abala rua acima.

No trem das quatro, Damião vai à estação.

Lá estão, no carro de segunda classe, quietinhos, o mágico e a mulher.

Damião se despede.

— Felicidades, amigo.

— Obrigado, menino.

O trem apita. Arranca, devagar. E logo desaparece, soltando fumaça, do lado do paredão.

Fonte:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.  (Publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 17/12/1936)

Dicas de escrita (Tipos de contos)

Os contos são uma forma literária rica e diversificada, e podem ser classificados em várias categorias.

1. Conto Fantástico
Apresenta elementos sobrenaturais, instigando o leitor a questionar a lógica da narrativa.

Jorge Luís Borges — seus contos frequentemente exploram temas de labirintos e realidades alternativas, como em "A Biblioteca de Babel".

2. Conto de Horror
Foca em provocar medo ou angústia, frequentemente envolvendo o sobrenatural ou o grotesco.

Edgar Allan Poe — conhecido por contos como "O Corvo" e "O Gato Preto", que exploram a psicologia do terror.

3. Conto Realista
Foca na representação fiel da vida cotidiana e das experiências humanas.

Anton Tchekhov — seus contos, como "A Dama do Cachorrinho", retratam a vida comum com profundidade emocional.

4. Conto de Fadas
Inclui elementos mágicos e geralmente possui uma moral ou lição.

Hans Christian Andersen — conhecido por contos como "A Pequena Sereia", aborda temas de amor, sacrifício e transformação.

5. Conto Policial
Narrativas que giram em torno de um crime ou mistério, com a resolução sendo um elemento central.

Agatha Christie — seus contos e romances, como "O Assassinato de Roger Ackroyd", são famosos por suas intrincadas tramas de mistério.

6. Conto de Amor
Foca nas relações amorosas, suas complexidades e nuances, geralmente com um desfecho emocional.

Guy de Maupassant — seus contos, como "Bola de Sebo", exploram a natureza do amor e do desejo.

Carolina Maria de Jesus – "Quarto de Despejo", narra experiências de amor e desamor em um contexto de pobreza.

7. Conto de Humor
Busca provocar riso e divertimento, muitas vezes através de situações absurdas ou personagens caricatos.

Mark Twain — contos como "As Aventuras de Tom Sawyer", combinam humor com crítica social.

8. Conto Social
Aborda questões sociais, políticas ou culturais, muitas vezes com um viés crítico.

Machado de Assis — contos como "A Cartomante" refletem as tensões sociais e morais do Brasil do século XIX.

9. Conto Surrealista
Apresenta imagens e situações que desafiam a lógica e a razão, muitas vezes explorando o inconsciente.

Franz Kafka - contos como "A Metamorfose" exploram realidades absurdas e a alienação humana.

Julio Cortázar — em "A Casa Tomada", utiliza uma narrativa não linear e surrealista.

10. Conto de Aprendizado 
Foca no crescimento e desenvolvimento do protagonista.

J.D. Salinger — "O Apanhador no Campo de Centeio" é um exemplo de crescimento emocional e autodescoberta.

11. Conto de Viagem
Envolve aventuras em locais exóticos, refletindo sobre cultura e experiência.

Jack Kerouac — "On the Road" (embora um romance, tem elementos de conto de viagem) captura o espírito da exploração.

12. Microconto
 Narrativa extremamente curta, onde cada palavra conta.

Augusto Monterroso — "Quando acordei, o dinossauro ainda estava lá." é um exemplo famoso de microconto.

13. Conto histórico
Ambientado em um período histórico específico, explorando eventos, figuras ou contextos do passado.

José Saramago - contos que, embora não sejam sempre históricos, frequentemente refletem em suas narrativas as questões do tempo e da memória.
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Na continuação, explanaremos mais profundamente sobre cada um dos tipos de contos e seus expoentes.

Fonte: José Feldman. Dissecando a magia dos textos: Contos e Crônicas. Maringá/PR: IA Open.  Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.

Jaqueline Machado (“Nascimento e morte da dona de casa”, de Paola Masino)

 
“Nascimento e morte da dona de casa” é um livro do século XX, escrito pela escritora italiana Paola Masino. 

Conta a história de uma menina que não se encaixava em seu ambiente familiar. A menina estava sempre empoeirada. E a mãe fazia chantagem emocional dizendo-lhe que ia morrer de desgosto. E a criança, sentindo-se culpada, procurava encontrar nos jornais, casos de gente, que por ventura, teria morrido de desgosto. Não queria ser a causadora da morte da própria mãe, mas não encontrou nenhum caso parecido.

Deitada num armário que tinha função de cristaleira, cama, mesa e quarto cheio de retalhos, farelos de pão, livros e detritos de funerais, como flores, pregos, véus de viúvas, pó que caía do teto...  Cobria-se com um cobertor mofado, ligava a lâmpada, lia, ou ficava a refletir sobre assuntos de morte.

Ela era diferente, tinha um estilo meio gótico e filosófico de ser. E por este motivo, era negligenciada pela mãe, que não lhe dava carinho. 

Tinha um sonho recorrente, em que teias de aranha ao redor e sobre ela a enredavam como se ela fosse a presa de uma aranha. Depois dormia encolhida e trêmula. Mas gostava de ficar dentro do baú. Ali, a menina podia ser ela mesma.

Com a cozinheira, ia ao supermercado, mas não prestava atenção nas prateleiras. Olhava para o chão, para os saltos das mulheres pisando nas frutas estragadas. E pensava nas antigas dinastias que ainda viviam ali embaixo.             

Observava os ventres dos bois pendurados em ganchos de ferro nas vigas dos açougues, com seus órgãos esvaziados, cravados nos metais que foram arrancados do ventre da terra. Ela via a violência do ser humano até no modo de alimentação.

A garota era uma filósofa nata, e devaneava sobre a natureza e a morte. - O céu e a terra também vivem e morrem. - Pensou na primeira vez que viu o próprio sangue (menstruação). Era um momento vermelho e dolorido. E o comparou ao pôr do sol, que também era vermelho e devia ser sofrido a cada encerramento de dia.

O tempo passou. E ela vendo o incessante desgosto da mãe, resolveu mudar, tomar banho, se vestir melhor, se comportar igual as outras jovens de sua idade, arranjar um noivo e casar. A mãe, feliz, foi em busca de pretendentes. Mas, por ser muito exótica, ninguém queria casar com ela. Até que alguém aceitou. E ela se tornou uma dona de casa. E em seu lar, seguindo todas as normas exigidas pela sociedade, viveu e morreu sem poder ser quem ela de fato era. 
Fonte: Texto enviado pela autora

Recordando Velhas Canções (Asa branca)


(toada, 1947) 

Compositor: Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga

Quando olhei a terra ardendo
Qual fogueira de São João
Eu perguntei a Deus do céu: Ai
Por que tamanha judiação?

Que braseiro, que fornalha
Nem um pé de plantação
Por falta d'água, perdi meu gado
Morreu de sede meu alazão
Por falta d'água, perdi meu gado
Morreu de sede meu alazão

Inté mesmo a asa branca
Bateu asas do sertão
Entonce eu disse: Adeus, Rosinha
Guarda contigo meu coração
Entonce eu disse: Adeus, Rosinha
Guarda contigo meu coração

Hoje longe, muitas légua
Numa triste solidão
Espero a chuva cair de novo
Pra mim voltar pro meu sertão
Espero a chuva cair de novo
Pra mim voltar pro meu sertão

Quando o verde dos teus óios
Se espalhá na prantação
Eu te asseguro, não chore não, viu?
Que eu voltarei, viu, meu coração?
Eu te asseguro, não chore não, viu?
Que eu voltarei, viu, meu coração?
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Asa Branca: Um Hino de Esperança e Saudade do Sertão
A música 'Asa Branca', composta por Luiz Gonzaga, o 'Rei do Baião', e seu parceiro Humberto Teixeira, é uma das mais emblemáticas canções da música brasileira, retratando a dura realidade do sertanejo diante da seca no Nordeste. A letra descreve a terra ardente, comparada a uma fogueira de São João, uma festa tradicional nordestina, e questiona a razão de tanto sofrimento. A imagem da terra queimada e a perda do gado e do alazão, por falta de água, são representações poderosas da devastação causada pela seca.

A 'asa branca' mencionada no título é uma referência à ave que migra quando o sertão se torna inóspito, simbolizando o próprio sertanejo que se vê forçado a deixar sua terra natal em busca de melhores condições de vida. A despedida de Rosinha, que pode ser interpretada como uma pessoa amada ou a própria terra, carrega um tom de promessa e esperança de retorno. A solidão do migrante é palpável, e a espera pela chuva é a espera pelo momento de voltar ao lar.

A canção transcende a narrativa de uma pessoa específica e se torna um símbolo da resiliência do povo nordestino. A esperança de dias melhores, quando o verde voltará a cobrir o sertão e os olhos de quem espera não precisarão mais chorar, é um tema universal de perseverança e fé no futuro. 'Asa Branca' é mais do que uma música, é um hino que expressa a saudade de casa e a força de um povo que não desiste diante das adversidades.

Um tema folclórico muito antigo é a origem da toada "Asa Branca" (espécie de pomba brava que foge do sertão ao pressentir sinais de seca). Luiz Gonzaga o conhecia desde a infância, através da sanfona do pai, mas achava-o simples demais para transformá-lo numa canção.

Assim, foi só para atender ao pedido de uma comadre que se dispôs a gravá-lo, levando-o antes para Humberto Teixeira dar-lhe uma "ajeitada" na letra. Então, Teixeira ajeitou-lhe também a melodia, acrescentou-lhe versos inspirados ("Quando o verde dos teus óios se espaiá na prantação") e tornou "Asa Branca" uma obra-prima.

Reconhecida e gravada internacionalmente, a canção inspirou nos anos setenta a retomada da música nordestina, em geral, e o culto a Luiz Gonzaga, em particular, por iniciativa dos baianos Caetano e Gil. Sua construção, possibilitando boas oportunidades de explorações harmônicas, tem-lhe proporcionado o aproveitamento como peça de concerto.

Fontes: 
https://www.letras.mus.br/luiz-gonzaga/47081/
– Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello. A Canção no Tempo. Vol. 1. Editora 34, 1997.

sábado, 28 de setembro de 2024

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 26

 

Julimar Andrade Vieira (Trovas em Preto &Branco)


1
A inteligência encerra
tudo quanto a força faz…
Da força resulta a guerra;
da inteligência, a paz.
2
À sombra do anonimato
somente os covardes agem.
Nunca, um cidadão sensato.
Nunca, um homem de coragem.
3
Cumpre bem a sua norma
em prol da sociedade
o jornalista que informa
sem distorcer a verdade.
4
De grandeza, desconfio
ser este o sonho da fonte:
ser, um dia, um grande rio,
todo coberto de ponte.
5
Dura, suada e sofrida
quase sempre é a trajetória
de quem consegue, na vida,
a tão sonhada vitória.
6
É na surdina, eu suponho,
juntinho à mulher querida,
que a vida se torna sonho
e o sonho se torna vida.
7
Há muito cego sabido
que nada de cego tem.
Se o vento sobe um vestido,
como o ceguinho vê bem!
8
Minha mãe, analfabeta,
sozinha aprendeu a ler,
mas fez seu filho, poeta,
muitas lições aprender.
9
Nada expressa mais tristeza,
nem há vida mais tristonha,
que a de quem sofre a pobreza,
sem realizar o que sonha…
10
Nem sempre faço o que penso,
para evitar embaraço,
mas, por questão de bom senso,
penso sempre no que faço.
11
O rancor não engrandece
o passado de ninguém.
A gente prospera e cresce
amando e fazendo o bem.
12
Quem muito a si mesmo cobra
ou de si mesmo é juiz,
no pouco tempo que sobra
não dá para ser feliz.

AS TROVAS UMA A UMA

As trovas de Julimar apresentam uma ampla variedade de temáticas, reflexões e conceitos, que envolvem desde questões sociais e comportamentais até aspectos da vida cotidiana. A seguir, uma análise aprofundada de cada uma das doze trovas apresentadas.

Trova 1. A inteligência encerra
Aqui, Julimar opõe a força à inteligência, destacando que a guerra (que resulta da força) é intrinsecamente negativa, enquanto a paz, oriunda da inteligência, é desejável. Essa dualidade sugere uma crítica à luta pela dominação e promove a valorização do raciocínio e do diálogo como meios de resolução de conflitos. A mensagem é clara: a sabedoria deve prevalecer sobre a brutalidade.

Trova 2. À sombra do anonimato
Esta trova explora a coragem e a covardia. Julimar sugere que a verdadeira coragem é visível e não se esconde no anonimato; covardes agem nas sombras, como forma de evitar a responsabilização. Ele preconiza que cidadãos sensatos e corajosos não têm medo da exposição e da luta por suas convicções, promovendo a ideia de integridade e a necessidade de assumir posições.

Trova 3. Cumpre bem a sua norma
Aqui, o trovador enaltece a função do jornalista, enfatizando a importância da verdade na informação. Isso pode ser visto como uma crítica à manipulação e à desinformação, que muitas vezes dominam a mídia. Valoriza a ética no jornalismo, reconhecendo que a veracidade é um pilar fundamental para a construção de uma sociedade justa.

Trova 4. De grandeza, desconfio
Nesta trova, há uma reflexão sobre ambição e as suas consequências. Julimar sugere que a busca por grandeza muitas vezes é superficial e está ligada a uma necessidade de validação externa. O uso da metáfora do "grande rio" coberto de pontes pode ser interpretado como uma crítica à busca por reconhecimento material em detrimento de valores que realmente importam.

Trova 5. Dura, suada e sofrida
Julimar aborda a luta pela conquista das vitórias na vida, reconhecendo que o sucesso muitas vezes vem acompanhado de sacrifícios e dificuldades. A ideia de que a trajetória é "quase sempre" desafiadora reforça a realidade de que o caminho para a realização é repleto de obstáculos, mas também é uma mensagem motivadora sobre a resiliência e a recompensa do esforço.

Trova 6. É na surdina, eu suponho
Com esta trova, o autor explora a conexão íntima entre amor e felicidade. A ideia de que a vida se torna um sonho na companhia da pessoa amada sugere que os relacionamentos significativos são essenciais para uma vida plena. Essa visão transcende a materialidade e sugere que a verdadeira realização se encontra nas pequenas coisas e na simplicidade.

Trova 7. Há muito cego sabido
O poeta utiliza um jogo de palavras para questionar a percepção do conhecimento e da sabedoria. A figura do "cego sabido" reflete a hipocrisia de quem se julga informado, mas na realidade não possui uma visão completa da vida. A observação do vento levantando um vestido sugere que, mesmo aqueles que se fazem de cegos, observam o que ocorre ao redor conforme o seu interesse.

Trova 8. Minha mãe, analfabeta
Nesta trova, há uma homenagem à figura materna, ressaltando a importância da aprendizagem e do exemplo. O fato de a mãe ter aprendido a ler por si mesma, embora analfabeta, ilustra o poder da auto-didática e a força da educação, que transcende a mera habilidade de ler e escrever, influenciando a formação do filho em um poeta.

Trova 9. Nada expressa mais tristeza
Julimar reflete sobre a pobreza e a frustração dos sonhos não realizados. O tom melancólico ressalta como a falta de recursos pode limitar a realização pessoal e causar sofrimento. A lamentação pela pobreza é um chamado à empatia, confrontando uma realidade social dura e muitas vezes invisível.

Trova 10. Nem sempre faço o que penso
Esse verso remete à consciência moral e ao pragmatismo que muitas vezes se fazem necessários nas interações sociais. A busca por evitar embaraços sugere uma pessoa que pondera suas ações, reconhecendo que o pensamento deve ser balanceado com as consequências das ações. O trovador defende a importância do equilíbrio entre reflexão e ação.

Trova 11. O rancor não engrandece
Enfatiza a ideia de que o ressentimento não traz benefícios. O crescimento pessoal é associado ao amor e às boas ações, chamando atenção para a necessidade de se libertar de emoções negativas para prosperar. É um convite à generosidade e à compreensão como formas de se transcender a dor do passado.

Trova 12. Quem muito a si mesmo cobra
A última trova toca na questão da auto-cobrança e da busca incessante por padrões pessoais. Julimar sugere que a autocrítica exacerbada pode gerar infelicidade, fazendo um apelo ao equilíbrio e à aceitação. A felicidade, nesta perspectiva, não está nas expectativas, mas na capacidade de aproveitar o momento presente.

TEMÁTICA DAS TROVAS DE JULIMAR E SUA RELAÇÃO COM POETAS BRASILEIROS E ESTRANGEIROS

As trovas de Julimar, abordam temas como amor, saudade, natureza e a efemeridade da vida. Comparemos a temática de suas trovas com poetas brasileiros e estrangeiros que também exploram esses temas.

1. Amor
Muitas dessas trovas falam sobre o amor de forma suave e nostálgica, ressaltando a beleza e a dor que ele pode causar. O amor, para Julimar, não é apenas um ideal romântico; é uma experiência humana repleta de desafios e superações. Além disso, ele também aborda o amor sob a perspectiva da tradição e da cultura popular. Suas trovas muitas vezes dialogam com elementos do folclore, mostrando como as manifestações históricas e culturais influenciam a percepção do amor. Ele pode fazer referências a amores impossíveis, a rivalidades e ao papel do amor na vida comunitária, revelando a interconexão entre o amor individual e a coletividade. 

Outro ponto importante nas trovas de Julimar é a maneira como ele traz à tona a vulnerabilidade humana. O amor, em suas palavras, é um território onde a fragilidade está sempre presente, e a saudade e a tristeza são parte do processo de amar e ser amado. Essa visão mais realista e menos idealizada do amor permite que suas trovas se tornem um espaço de identificação e empatia para aqueles que passam por experiências semelhantes.

As imagens poéticas que Julimar utiliza são ricas e evocativas, capazes de despertar sentimentos profundos no leitor. Ele frequentemente evoca a natureza, as estações do ano e elementos do cotidiano para simbolizar diferentes aspectos do amor, criando uma atmosfera que é ao mesmo tempo nostálgica e esperançosa.

Em suma, o amor abordado nas trovas de Julimar é multifacetado, explorando tanto a sua beleza quanto a sua dor. Ao fazê-lo, ele capta a essência da experiência humana, tornando suas obras atemporais e universalmente ressonantes. As trovas servem não apenas como uma celebração do amor, mas também como um convite à reflexão sobre as muitas formas que esse sentimento pode assumir ao longo da vida.

Vinícius de Moraes: Em poemas como "Soneto de Separação", Vinícius aborda a intensidade do amor e a tristeza da perda. Assim como nas trovas acima, há uma melancolia que permeia a lembrança de momentos felizes, criando um diálogo entre o amor vivido e o amor perdido.

Pablo Neruda: Em "Soneto XVII", expressa uma paixão ardente e visceral, que se entrelaça com o amor idealizado. Ambas as vozes poéticas, a de Neruda e a de Julimar, transmitem a dualidade do amor - sua beleza e suas dores.

2. Saudade
A saudade é um tema constante, refletindo o apego a momentos e pessoas que passaram. Julimar fala sobre sentimentos profundos e cheios de nuances, especialmente a saudade, que é uma emoção muito presente na cultura brasileira. A saudade é frequentemente descrita como uma mistura de sentimentos de perda, nostalgia e amor. Em suas trovas, provavelmente explora esses temas de uma maneira que ressoa com a experiência humana, fazendo uma conexão com o passado e as memórias associadas a pessoas, lugares ou momentos.

A saudade nas trovas de Julimar pode ser abordada em diferentes dimensões. Primeiramente, pode refletir a dor da ausência de alguém querido, onde as lembranças ganham vida em cada verso, evocados por sensações olfativas, sonoras ou visuais que trazem à tona momentos significativos. Além disso, as trovas podem capturar a beleza da saudade, mostrando como esse sentimento, embora muitas vezes doloroso, também pode ser uma homenagem àquilo que foi especial.

Outro aspecto importante da saudade nas trovas de Julimar pode ser a forma como ele a relaciona com o cotidiano, utilizando elementos da cultura popular, tradições e vivências que conectam ouvintes de diferentes regiões do Brasil. Essa habilidade de tecer a saudade com o tecido cultural local pode provocar uma identificação nas pessoas que ouvem suas músicas, tornando a experiência ainda mais universal e visceral.

Por fim, as trovas dele podem ter um tom esperançoso ou de aceitação, onde a saudade não é apenas um lamento, mas uma celebração das memórias vividas. Em vez de se concentrar apenas na perda, ele pode enfatizar a importância de valorizar os momentos que foram importantes, transformando a saudade em algo que, embora melancólico, também é reconfortante.

A saudade nas trovas é uma expressão multifacetada que aborda a complexidade das emoções humanas, interligando memória, amor e a vivência cultural de forma profunda e tocante.

Cazuza: Em suas canções fala sobre a intensidade da saudade e a dificuldade de lidar com a perda. A relação entre suas letras e as trovas é clara: ambos expressam sentimentos profundos de saudade que ressoam na memória.

Emily Dickinson: Em muitos de seus poemas, Dickinson explora a ideia da saudade e da perda. A maneira como ela captura a essência da ausência e a busca pela conexão é similar à profundidade emocional que encontramos nas trovas de Julimar.

3. Natureza
Frequentemente incorpora a natureza em seus versos, refletindo a rica biodiversidade e a cultura do Brasil. As trovas de Julimar costumam capturar a beleza do meio ambiente, ressaltando elementos como flora, fauna, paisagens e fenômenos naturais.

Elementos da Natureza nas Trovas de Julimar

1. Representação da Flora: As plantas, árvores e flores são frequentemente mencionadas nas trovas, simbolizando não apenas a beleza estética, mas também atitudes de cuidado e reverência. O uso de imagens como “as flores do campo” ou “as folhas a dançar ao vento” pode evocar sentimentos de alegria e plenitude.

2. Inspiração na Fauna: Os animais também têm grande presença nas trovas. Ao descrever pássaros, mamíferos ou até insetos, muitas vezes traz lições de vida ou reflexões sobre a liberdade e a interação entre os seres vivos. As metáforas que utilizam animais muitas vezes destacam características subtis, refletindo sobre a condição humana.

3. Ciclos Naturais: As menções a estações do ano, o ciclo da chuva, e a passagem do tempo são comuns. Esses elementos enfatizam a impermanência e a continuidade da vida, servindo como uma alegoria para as experiências humanas. A observação da natureza pode induzir a pensamentos mais profundos sobre o lugar do ser humano no mundo.

4. Cenário Local: Muitas trovas refletem o cenário regional, enfatizando características geográficas que falam à identidade cultural. Seja uma praia, um vale ou uma montanha, as descrições muitas vezes conectam o leitor ao seu próprio espaço, criando um vínculo emocional com a terra.

5. Simbolismo e Metáforas: A natureza em Julimar não é apenas uma descrição, mas um veículo de simbolismo. Elementos naturais são usados como metáforas para sentimentos humanos — a tempestade pode representar conflitos internos, enquanto um rio calmo pode estar associado à paz e serenidade.

6. Conexão com a Espiritualidade: Muitas vezes, a natureza é abordada como um reflexo da espiritualidade. A relação do homem com a terra, os elementos e as forças da natureza pode significar um diálogo com o divino, um reconhecimento da interdependência entre todos os seres.

As trovas de Julimar, ao explorar a natureza, se tornam mais do que simples observações; elas são uma reflexão da experiência humana e uma celebração da vida em todas as suas formas. Ao entrelaçar temas de natureza com emoção e experiência vivida, suas trovas continuam a ressoar com os leitores, convidando-os a apreciar e refletir sobre o mundo natural ao seu redor. Assim, a natureza nas trovas se torna um espaço de inspiração, introspecção e uma ponte para a compreensão mais profunda da vida e do lugar do ser humano nela.

Manuel Bandeira: é conhecido por sua relação íntima com a natureza, especialmente em poemas que falam dos ciclos da vida e da morte, como em "Vou-me embora pra Pasárgada". A conexão com a natureza nas trovas de Julimar ressoa com a busca pela beleza e pelo significado na obra de Bandeira.

William Wordsworth: é um dos principais poetas do romantismo, que exalta a natureza como uma fonte de inspiração e contemplação. Assim como Julimar, ele encontra na natureza um reflexo das emoções humanas e uma forma de conexão com o transcendente.

4. Efemeridade da Vida
As trovas de Julimar, reconhecido por sua habilidade em explorar a natureza efêmera da vida, abordam a transitoriedade das experiências humanas com uma profundidade poética. Essa temática é frequentemente refletida em sua escrita através da utilização de metáforas, simbolismos e um tom melancólico que captura a fragilidade da existência.

Um dos aspectos centrais dessa efemeridade é a inevitabilidade da passagem do tempo. Julimar frequentemente utiliza imagens da natureza, como flores que murcham ou a luz do sol que se põe, para ilustrar a beleza passageira da vida. Essas imagens evocam um sentimento de nostalgia, convidando o leitor a refletir sobre momentos que foram preciosos, mas que já não existem mais. Ele nos lembra que, assim como as flores, as experiências e os momentos significativos também têm seu tempo limitado.

Além disso, a efemeridade em suas trovas pode ser vista como um convite à apreciação do presente. Em meio à angústia da transitoriedade, há um apelo para que se valorize cada instante vivido. Isso cria um paradoxo: a consciência da brevidade da vida pode levar a uma maior valorização das emoções e das relações humanas. As trovas frequentemente enfatizam a importância de amar e estar presente, mesmo diante da certeza da separação e da perda.

Outro ponto importante é como essa temática está ligada à reflexão sobre a morte. O poeta não a aborda de maneira macabra, mas sim como uma parte natural do ciclo da vida. Essa aceitação pode proporcionar um conforto ao leitor, sugerindo que a efemeridade não deve ser vista apenas com tristeza, mas como uma oportunidade para celebrar a vida enquanto temos a chance.

Enfim, as trovas de Julimar também podem ser interpretadas como um retrato da condição humana. A busca por significado em meio à transitoriedade é uma luta comum a todos nós. A fragilidade da vida, destacada em suas palavras, pode levar à introspecção e à busca por um propósito que transcenda a efemeridade.

As trovas mergulham na temática da efemeridade da vida, evocando reflexão sobre o tempo, a beleza passageira, a importância das relações e a inevitabilidade da morte. Sua poesia não apenas capta a tristeza inerente à transitoriedade, mas também a celebração da vida, convidando os leitores a viver de forma mais consciente e plena, mesmo que por um breve momento.

Adélia Prado: Em seus poemas, Adélia reflete sobre o cotidiano e a passagem do tempo, enfatizando a beleza nas pequenas coisas, semelhante à abordagem de Julimar sobre a efemeridade.

John Keats: em seus "Odes", aborda a beleza e a transitoriedade da vida. A maneira como ele celebra cada momento enquanto também reconhece sua fragilidade se alinha bem com os sentimentos expressos nas trovas.

Conclusão
As trovas de Julimar, capturam emoções universais que são ecos de obras de poetas tanto brasileiros quanto estrangeiros. A intersecção entre suas temáticas e as de poetas como Vinícius de Moraes, Pablo Neruda, Cazuza, Emily Dickinson, Manuel Bandeira e John Keats revela a riqueza da experiência humana por meio da poesia, ampliando o entendimento sobre amor, saudade, natureza e a efemeridade da vida.

As trovas são densas em significado e oferecem reflexões sobre ética, moral, sociedade e emoções humanas. Cada uma delas traz uma lição, um chamado à reflexão ou uma crítica social, recorrendo a metáforas simples, porém poderosas que convidam o leitor a ponderar sobre a vida e seus desafios. A capacidade do autor de sintetizar tais complexidades em rimas curtas é o que torna suas obras notáveis e instigantes.

Representam uma confluência rica de tradição poética e inovação contemporânea, destacando-se não apenas por sua habilidade técnica, mas também por sua capacidade de ressoar com temas universais e atemporais. Influenciado por uma variedade de tradições literárias, Julimar utiliza a leveza da trovada para abordar questões profundas da experiência humana, como amor, natureza, sociedade e identidade.

A importância delas reside na forma como ele consegue unir a simplicidade da linguagem com a profundidade do conteúdo, tornando suas trovas acessíveis a um público vasto, mas também instigantes para críticos e estudiosos da literatura. Sua escrita reflete uma sensibilidade aguda para as nuances da vida contemporânea, explorando as complexidades das relações humanas e os desafios do mundo moderno.

Em um cenário global onde a literatura muitas vezes se distancia das experiências cotidianas, Julimar resgata a poesia como uma forma de conexão e introspecção, reafirmando seu poder de provocar reflexão e diálogo. Desse modo, suas trovas não apenas contribuem para o enriquecimento da literatura brasileira, mas também estabelecem um elo importante com a cultura contemporânea, reafirmando a relevância da poesia em tempos de transformação social e econômica.

Finalmente, as trovas de Julimar transcendem as fronteiras do mero entretenimento literário; ela se firma como um legado significativo, inspirando novas gerações de escritores e leitores a se engajarem com a arte da palavra, cultivando a reflexão crítica e a valorização das pequenas belezas que permeiam a vida.

Fonte: José Feldman. 50 Trovadores e suas Trovas em preto e branco. IA Open. vol.1. Maringá/PR: Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.