quarta-feira, 4 de julho de 2012

Lygia Bojunga Nunes (Corda Bamba) Parte 2


Aspectos temáticos

 As diferenças sociais é o primeiro tema abordado em Corda Bamba, pois é esse tema que desencadeia a trama. De um lado, temos o pessoal simples do circo cuja vida é difícil, arriscada e com muitas dificuldades financeiras e em contraste a este temos Dona Maria Cecília, para quem o dinheiro compra tudo, objetos e até pessoas. Assim, tenta comprar Marcelo, o namorado de Márcia, mãe de Maria, para dela afastá–lo.

 Esses dois mundos se encontram quando a mulher Barbuda e Foguinho levam a menina Maria para morar com a avó, pois os pais de Maria haviam morrido em um acidente no circo.

 O segundo tema abordado são as questões trabalhistas. A luta concreta por um ofício digno e protegido por leis de segurança do trabalho é explicitado, quando um colega de circo, Foguinho, tenta convencer Marcelo e Márcia para que não andem na corda bamba sem a rede embaixo.

 Esses dois temas encontram-se como que entrelaçados entre si, em Corda Bamba, pois um deles nos remete ao outro. É a atitude da mãe de Márcia (tentar separar Márcia e Marcelo) que empurra eles para a vida de circo, e são as dificuldades financeiras, a exploração da classe menos favorecida, neste caso os artistas de circo, que fazem com que as personagens Marcelo e Márcia deixem de lado as questões de segurança no trabalho e trilhem para o caminho da morte.

Corda bamba tematiza a dominação exercida por uma classe privilegiada, de forma agressiva. A avó de Maria é representante dessa classe, exercendo seu autoritarismo, achando-se no direito de comprar tudo e todos. O que Lygia Bojunga Nunes deseja é explicitar, em um nível possível de ser compreendido pelo leitor criança, as contradições do momento histórico em que se vive.

 Analisando a relação criança versus adulto, a narrativa de Lygia Bojunga Nunes lida com o problema da autoridade, deslocando-o para a perspectiva da criança. A família e a escola são agentes privilegiados da opressão institucionalizada que o adulto exerce sobre a criança, sob o disfarce da proteção, e isso transparece nas obras de Lygia Bojunga Nunes.

 Em Corda bamba, nota-se que Dona Cecília exerce sua autoridade, sem respeitar o próximo. Na relação familiar de Dona Maria Cecília com Márcia e Maria, observa-se a assimetria em que a avó de Maria impõe a sua autoridade e poder.

 Foguinho e Barbuda, como Márcia e Marcelo, representam o casal em que o respeito mútuo predomina, constituindo exemplos de uma relação familiar ideal. A hegemonia do adulto se dá ainda e com igual ou maior ênfase na escola, o principal aparato ideológico do Estado. Em Corda bamba, isso transparece nas aulas particulares de Maria, em que o medo por não saber matemática é simbolizado pelo cachorro da professora que fica embaixo da mesa e ameaça Maria a todo instante, impedindo-a de prestar atenção.

 A obra tematiza a dominação exercida por uma classe privilegiada, de forma contundente. A avó de Maria, a protagonista, é uma senhora da mais alta sociedade, está habituada a comprar objetos e pessoas. Assim tenta comprar Marcelo, o namorado de Márcia, mãe de Maria, para dela afastá-lo. A luta concreta por um ofício digno e protegido por leis de segurança do trabalho é explicitada quando um colega de circo tenta convencer Marcelo e Márcia para que não andem na corda bamba sem a rede embaixo. "Cada um que topa trabalhar do jeito que vocês estão topando, puxa para trás todo o mundo que está trabalhando também". E ainda a idéia do coletivo da classe trabalhadora formada pela luta de cada indivíduo.

 Em Corda bamba, Maria vai em busca de sua identidade por meio da corda bamba, um elemento circense. A atividade artística é vista como forma de o indivíduo liberar suas tensões, a fim de melhor integrar-se ao grupo social, livre dos conflitos existenciais.

 O uso do elemento simbólico para revelar os problemas existenciais da criança é original em suas obras, possibilitando ao leitor identificar-se com as situações apresentadas, ajudando-o a elaborar seus próprios conflitos.

 Embora se possa verificar uma postura engajada de Lygia Bojunga Nunes no que se refere às questões políticas, sociais, demonstrando uma opção ideológica de esquerda em Corda bamba, percebe-se que a escritora trata dessas questões em sua obra com sutileza, por meio das ações dos personagens, dos relatos dos acontecimentos, recorrendo a imagens simbólicas e alegóricas, sem usar discurso moralizante, panfletário. Lygia Bojunga escapa do panfleto porque ela não dá recado nem faz mensagem. Ela narra com seu olhar e deixa a formulação crítica por conta do leitor. Sua literatura é critica e engajada, utilizando-se da fantasia e da paródia, transfigurando o real, fazendo arte poética.

 É possível observar, em Corda bamba, uma preocupação com assuntos ligados à sociedade, como a luta pela igualdade social e questões como a situação de exploração em que vivem as pessoas menos privilegiadas economicamente, trazidas ao texto de modo especial. É o caso de Marcelo, símbolo do homem explorado, humilhado, engolido pelo sistema. Por necessitar sobreviver na “corda bamba” da vida, arrisca-se para ter uma existência mais digna, como pode ser constatado pelo relato de sua história a Márcia, em que trata das dificuldades por que passava, da miséria de sua infância, feita de “uma porção de nada”, e do seu trabalho no circo, quando ainda era solteiro. No circo, sujeita-se à exploração do dono, fazendo o número da corda sem rede de proteção, com o objetivo de conseguir mais público.

 Aceita o desafio a fim de ganhar fama e melhorar o salário. No entanto, não consegue realizar o número, pois o medo o domina, e ele é despedido. O sonho de um trabalho digno, que atenda às normas de segurança, com seguro de vida e defesa contra acidentes, além de um salário condizente, torna-se distante. Esse fato traumatiza-o e ele não consegue emprego em outro circo, visto que foi humilhado. Assim, é obrigado a procurar outro tipo de serviço, resolvendo ser pintor de parede de prédio.

 Devido ao desrespeito às necessidades dos outros, os pais de Maria acabam morrendo depois de terem sido obrigados a realizar o espetáculo sem rede de proteção para liquidarem as dívidas contraídas na busca da filha que fora raptada pela avó. As circunstâncias da vida fazem com que não cumpram a promessa feita de nunca trabalhar sem a rede de proteção.

 Sem utilizar-se do tom moralista, comum da literatura infanto-juvenil, a autora vai registrando o esquema vigente nas sociedades capitalistas, em que o individualismo se tornou mola propulsora do progresso econômico.

 Já Dona Maria Cecília poderia ser vista, alegoricamente, como uma réplica do poder constituído que, principalmente na década de 70, excedeu-se em suas prerrogativas de dono absoluto do poder. Ela, por ter dinheiro, acha-se no direito de mandar e desmandar nas pessoas, como fez com sua filha Márcia, controlando-a desde pequena, escolhendo suas roupas, colégios, amigas e até seu namorado. Quando Márcia se apaixona por Marcelo, pintor de paredes e artista de circo, opõe-se ao namoro pelo fato de o rapaz ser pobre e lhe oferece um cheque de alto valor, para que desistisse de se casar com sua filha. Para não se tornar apenas mais um “bem consumível” da sogra, o rapaz rasga o documento e vai-se embora, seguido de Márcia. Os dois a abandonam, para não se deixarem envolver por princípios valorativos baseados no dinheiro.

 Dona Maria Cecília não consegue “comprar” Marcelo com seu dinheiro, mas “compra” seus três primeiros maridos, mostrando o alcance de seu poder econômico. São pessoas pertencentes à classe média da população.

 Por comodismo, esses maridos se deixaram cooptar pela atração por postos que lhes garantissem melhores condições de vida, para poderem dedicar-se ao prazer do seu trabalho, sem se preocuparem com o sustento. No entanto, apesar de, aparentemente, se venderem ao poder econômico, simbolizado pela Dona Maria Cecília, não se deixaram subjugar aos desmandos da autoridade.

 O quarto marido de Dona Maria Cecília, seu Pedro, é símbolo de uma visão humanista do mundo, opondo-se aos três primeiros. Seu Pedro não se deixa comprar e nem pretende impor-se pela autoridade, sabe respeitar o próximo: “nem eu mando em você, nem você manda em mim”.

 No entanto, o ápice do poder, do autoritarismo, da opressão, do desrespeito pelo ser humano por parte de Dona Maria Cecília Mendonça de Melo é mostrado quando ela “compra”, utilizando seu prestígio econômico, uma velha contadora de história, um ser humano, apenas para dar um presente diferente à neta.

 Há a denúncia da miséria em que vivem as pessoas, que precisam se vender para poderem sobreviver. A Velha da História simboliza o povo humilde, sofredor, faminto, os sem-teto, os descamisados, os miseráveis deste planeta que necessitam de se vender a troco de comida. Não possuem o mínimo necessário para sua sobrevivência e se submetem a qualquer humilhação, além de viverem em situações subumanas. Lygia Bojunga Nunes trabalha isso de forma humorística, para enfatizar a ironia da vida dessas pessoas, pois quem passou fome a vida inteira acaba morrendo de tanto se fartar com o que mais desejava – comida.

 Lygia tece a narrativa fundada em dois planos: o inconsciente e o consciente. No plano do inconsciente, verifica-se o interior de Maria, sua situação interna. No plano do consciente, observa-se a criança incompreendida, privada de quaisquer direitos, submetida a uma relação de dependência absoluta. Assim, a vida de Maria é relatada de forma que sua biografia vai fragmentariamente sendo compreendida, à medida que a menina vai recuperando a memória, desvelando o seu passado e recriando a sua história.

 O aprendizado de Maria no circo, as instruções que a mãe lhe proporciona não são valorizados pelas demais personagens. Segundo a avó e a própria escola, a menina está atrasada em conhecimentos e precisa igualar-se às demais crianças, por isso freqüenta aulas particulares com Dona Eunice. A professora é um protótipo de tirania, um falso educador, ministrando lições mas dando muito pouco de si, incentivando a submissão e menosprezando o medo que Maria sentia do cachorro.

 A escola descrita em Corda bamba ensina valores e modos de comportamentos da classe dominante, ignorando a bagagem de conhecimentos e experiências que a menina já traz consigo. A realidade escolar com que Maria se defronta, com conteúdos desconexos e desvinculados do conhecimento, nada acrescenta à interioridade da personagem.

Corda bamba exemplifica o realismo humanista, por focalizar o assunto da angústia e da crise existencial do homem do nosso tempo, esmagado pela opressão social.

 Tanto Maria como os protagonistas de outras obras de Lygia Bojunga Nunes buscam o auto-conhecimento na integração dos vários planos da consciência à realidade de um mundo exterior percebido sob diferentes ângulos e nas suas diversas faces.

 A personagem não é fixada de modo rígido, quer nos traços psíquicos, quer nos físicos. A personagem Maria é registrada de forma indireta, pelo seu tipo miúdo, sua idade e seu temperamento reprimido. Sua figura, embora apresentada como centro do processo diegético, interessa sobretudo no plano discursivo, como instrumento de veiculação de valores e de idéias.

Corda bamba apresenta uma visão pequeno-burguesa do mundo, estruturada de modo a realçar o fenômeno da reificação, visão essa dominada pelos efeitos do poder do capital sobre a vida de cada pessoa, sendo, portanto, contraposta a uma visão humanista do homem.

 Verifica-se na personagem Maria o desequilíbrio da personagem ocorre a partir do motivo gerador da sua amnésia (a visão da morte dos pais). Após lembrar-se das experiências passadas, reestrutura-as na tentativa de buscar o equilíbrio da sua vida presente. Esse equilíbrio é atingido ao final da diegese, porém, por um discurso aberto, sugerindo o não fechamento da história de vida da personagem.

 Lygia enfatiza o aspecto social em suas narrativas e, por meio de uma linguagem simples, inocente no seu plano expressivo, emprega os símbolos e as alegorias, dados que são, no plano criativo, expressões curiosas do estado das idéias nas décadas de 60 e 70, de um Brasil sofredor das conseqüências de uma política repressora.

 Em relação à linguagem descritiva, Corda bamba enriquece-se de detalhes aparentemente supérfluos, por exemplo, a respeito da professora particular que dá aulas a Maria (o braço cheio de pulseiras, as unhas grandes e esmaltadas etc.), pois tais elementos são fundamentais para a caracterização do realismo humanista da autora. Segundo a estudiosa, a descrição não tem a função de inventariar exaustivamente pormenores do objeto, mas sim uma função mais elevada de embasar o universo simbólico da ficção.

 No processo de recuperação da memória de Maria, Lygia Bojunga Nunes faz uso de um vasto campo de símbolos, como portas, cores, compartimentos fechados, flores, sonhos, corredor, corda, arco, mar, água, barco.

 A perda da memória de Maria ante a morte dos pais e todo o processo de sua recuperação tornam-se significativos quando transposto para o plano do real, visto que a anistia tem como característica intrínseca o esquecimento. A perda da memória de Maria pode-se relacionar com a perda de memória do povo brasileiro, assim como a necessidade de Maria recuperar a memória, com a própria necessidade de a sociedade brasileira não se deixar impregnar pelo esquecimento e lutar pelo reavivamento do passado. Com a trajetória de Maria, que não se conforma com a perda da memória e empreende um retorno ao passado, desvendando paulatinamente os mistérios das portas coloridas que lhe desvelam a história de sua vida e de sua família, o que lhe cria condições para inserir-se no presente e projetar o seu futuro, Lygia Bojunga Nunes aponta a mesma trajetória para a sociedade brasileira.

 Em Corda bamba há características reveladoras do sistema autoritário e opressivo da sociedade. Dona Maria Cecília Mendonça de Melo é representante desse sistema, visto que nela se encontra a junção do autoritarismo com a corrupção, exercidos por meio do poder do dinheiro. Essas características podem ser percebidas nas suas relações interpessoais, que são exclusivamente monetárias. Quando Dona Maria Cecília se apaixonou, não soube conquistar os maridos, foram todos comprados. Para separar a filha de seu namorado, ela usou do dinheiro para afastá-lo. Para agradar a neta, ela comprou um ser humano.

 A avó de Maria poderia ser vista, alegoricamente, como uma réplica do poder constituído que, principalmente na década de 70, se excedeu em suas prerrogativas de dono absoluto do poder.

 Como vimos, Lygia Bojunga Nunes dá atenção especial à escola, que é vista como uma extensão do poder central, pois reflete o mesmo sistema hierárquico daquele, em que um detém o poder e os outros se submetem a ele. A pesquisadora observa que a valorização do ensino como um bem necessário para a formação integral do indivíduo e a crítica à forma como esse ensino se processa caminham paralelamente nas obras da escritora. Portanto, para ela, a importância do saber e a descrença na transmissão desse saber coexistem nas obras de Lygia Bojunga Nunes, refletindo o pensamento crítico daqueles que, analisando o Brasil das últimas décadas, constatam a crescente degradação do ensino.

 Além disso, faz referência à miséria, à instabilidade no emprego, à sujeição do indivíduo aos perigos de uma profissão que põe em risco a vida e à falta de união da classe em busca de melhores condições de emprego.

 Em Corda bamba é possível observar um processo de renovação. Maria, ao perder a memória, necessita reconstituir a vida, pois se encontra sem identidade. Para resgatá-la, ela realiza um processo de regressão de forma simbólica. Assim, é apresentado ao leitor o resgate da identidade da garota, ao mesmo tempo em que se vai desvendando o cotidiano monótono da vida burguesa que a avó quer oferecer-lhe como opção. Sem memória, Maria encontra-se entre o mundo fantástico do circo, porém perdido, e o mundo de privilégios que o dinheiro da avó pode proporcionar-lhe. Isto permite à narradora cruzar dois níveis narrativos, mostrando a tensão constante que se estabelece entre o mundo interior, entre ser e parecer. Maria, se pudesse, gostaria de escolher a vida circense, para viver com os amigos Barbuda e Foguinho. Porém, por ser criança e ter a avó como a única pessoa da família, precisa ficar com ela. A convivência com a avó dá-se de forma negativa. Maria não consegue ultrapassar a barreira existente entre a avó e ela. Dona Maria Cecília, por ser extremamente autoritária, desumana, sem sentimentos, dificulta o relacionamento com a neta, pois a relação com ela é só material.

 Sendo assim, Maria refugia-se em seu mundo interior, porém esquecido, que precisa ser resgatado a todo custo, como elemento de resistência. Ao fazer esse percurso interno de busca do seu passado, configurado por meio de cortes na narrativa, misturando vários tempos, dando ao texto caráter fragmentário, é acompanhada pelo leitor. Dessa maneira, são apresentados ao leitor pedaços de discurso que se juntam para, no final, possibilitar a restauração da identidade de Maria. Cabe ao leitor recolher os fragmentos e reconstituir a história. Assim, somente com a participação ativa do leitor, o significado se compõe. O discurso de Corda bamba requer um leitor participante, capaz de compor os dados lançados pelo narrador. Esse recurso funciona como elemento que aponta para a ‘artificialidade’ da criação, oferecendo uma zona de distanciamento que alerta para o processo de produção da linguagem. O texto mostra-se, desta forma, como criação, ilusão.

 A história de Maria pode ser percebida como “real”; porém, pela maneira como ela está estruturada, solicitando a intervenção do leitor, verifica-se que é ficção.

 Na narração do resgate da identidade de Maria, há um convite implícito ao leitor para que faça também esse retrocesso em sua vida, embora não se pretenda que esta adesão seja automática. Ao acompanhar a restauração do passado de Maria, o leitor poderá igualmente passar por um processo de regressão e questionar o seu passado, a sua vida, abrindo as portas fechadas, buscando, do mesmo modo que Maria, a sua identidade.

 O seu discurso não se quer verdade, objetivando passar valores morais e pedagógicos, doutrinando o leitor, ou uma receita de como superar um trauma, mas cria um espaço crítico entre a autora e o leitor, para ser preenchido por este, espaço para que o leitor tenha um papel ativo e reconstrua os fragmentos narrativos, dando sentido ao texto.

 Percebe-se, portanto, que, em Corda bamba, a ordenação metódica do mundo é rompida definitivamente, e propõe-se ao leitor viver na corda bamba, em oscilação, onde são incertos os limites entre o possível e o impossível, entre o ser e o parecer. O ser humano busca o equilíbrio, o equilíbrio interior, vivendo em tensão sobre dois pólos, para encontrar a síntese.

 A Velha da História contava histórias para enganar a fome dos filhos, num comportamento herdado de sua mãe, conforme a história de sua vida relatada a Maria.

 Esse episódio deixa Maria estupefata. Não conseguia entender como alguém pode comprar outro ser humano.

 Repetindo o ato de “comprar” pessoas, Dona Maria Cecília demonstra que continua a mesma pessoa egoísta, autoritária e sem sentimentos. Não consegue perceber que a tristeza de Maria decorre da saudade dos pais e do circo, tudo o que ela mais queria. A culpada era ela mesma, pois, por egoísmo, ao ser abandonada pelo quarto marido, resolve ter a neta perto de si. Para Dona Maria Cecília, o conforto e os bens materiais que oferecia à neta seriam suficientes para substituir o carinho, o amor que os pais lhe dispensavam.

 Essa atitude de Dona Maria Cecília demonstra o processo de reificação do ser humano: Maria é o objeto que ela mantém em troca de conforto e bens materiais e serve para substituir a perda do último marido, seu Pedro. A Velha Contadora de História passa a ser um objeto também, comprado por meio de bens alimentícios, com a função de distrair Maria. Nos dois casos, verifica-se que Dona Maria Cecília objetiva satisfazer seus próprios interesses: primeiro, agradar Maria, para que ela fique em sua companhia, desconsiderando as carências afetivas que a ausência dos pais lhe provoca. Segundo, comprar a Velha, para que se torne um objeto capaz de agradar sua neta, para fazê-la permanecer junto dela. O fato de Lygia Bojunga Nunes inserir os relatos da Velha Contadora de História e dos maridos de Dona Maria Cecília na história de Maria tem o objetivo de crítica ao comportamento da avó, reforçando a incapacidade de Dona Maria Cecília amar o próximo, e enfatizar que seu relacionamento é exclusivamente monetário.

 Lygia Bojunga Nunes vai desmascarando o artificialismo de muitas atitudes dos adultos, no decorrer da narrativa, e deixa transparecer a crítica à sociedade cujos valores estão adulterados. O exercício do poder corruptor do dinheiro é explícito ao comprar a Velha da História. Por ser rica, Dona Maria Cecília acha-se no direito de “comprar”, mandar e desmandar nas pessoas.

 Percebe-se também a crítica que faz aos preconceitos existentes nas relações humanas. De modo muito perspicaz, a autora vai combatendo-os, demonstrando que dependem do ponto de vista da pessoa. Como no caso de Márcia e Marcelo, apesar das diferenças sociais e econômicas, um completava o outro no amor.

 A consciência do indivíduo como parte integrante de um todo abrangente está intimamente relacionada com a valorização do trabalho como meio de realização do homem em suas obras.

 Em Corda bamba, pode-se perceber essa questão na fala de Foguinho tentando convencer Márcia e Marcelo a não fazerem o número da corda sem a proteção de rede.

 Foguinho e Barbuda demonstram possuir consciência de uma classe: “— Você tá deixando eles te explorarem, Marcelo!”. Enquanto que Márcia e Marcelo parecem não ter essa consciência de classe: “— Que outros?... — Que que tem, ué?”. A preocupação de Foguinho com todos os que trabalham na profissão de trapezistas expressa um ponto de vista coerente e unitário na realidade imaginada. A classe que ele simboliza e representa se opõe à classe representada pelo patrão, dono do circo. Essa personagem implícita representa a classe burguesa, é aquele que se apropria da mais-valia, na condição de explorador dos artistas Márcia e Marcelo. Estes se deixam explorar, arriscando a vida para aumentar a renda do patrão. Barbuda e Foguinho representam a consciência efetiva de uma classe, mediando os dois pólos, interessando-se não apenas pelos amigos, mas por todos da sua profissão, preocupando-se, portanto, com o ser humano em geral. Tem-se, assim, nesse episódio, a luta de classes expressando-se, acima de tudo, na luta ideológica.

Fonte: 
Alice Atsuko Matsuda Pauli - Dissertação de Mestrado - Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. Disponível em Passeiweb 

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