quarta-feira, 4 de julho de 2012

Nilto Maciel (Gilmar de Carvalho: Singular e Plural)


Dos personagens que constituem a geração literária surgida por volta de 1970 no Ceará é Gilmar de Carvalho um dos mais singulares. Não participa de grupos. Não está à frente de movimentos. Não promove encontros, reuniões, com vista a levantar a poeira. Não corre atrás de figurões da intelectualidade, a pedir votos, apoio, indicações. Não imita este ou aquele escritor da moda, como não imita os antigos. Por tudo isso, dizem-no avesso a greis, clãs e famílias literárias. Ovelha negra. Pastores de todos os matizes o veem passar e apenas coçam a barba. Porque Gilmar nem escuta a zoada da mutuca. Prefere a pesquisa à pescaria de peixes ornamentais. Contraditoriamente, é um erudito voltado para a cultura popular. Além disso, é compositor de cantos e não mero contista, contador de histórias, embora ame os contadores de histórias do sertão e das periferias de Fortaleza, cantadores, cordelistas, violeiros, Patativa do Assaré.  

Perguntam-me: “Você se dá bem com Gilmar? Parece tão difícil, tão arredio.” De difícil acesso, querem dizer. Poucos contatos mantive com ele; conversamos apenas o necessário. Faltaram oportunidades. Primeiro porque somos de pouca conversa. Segundo porque me mantive longe do Ceará por muitos anos. No entanto, muito me falaram dele: genial, talentoso, arrogante, besta, orgulhoso... Os melhores e os piores adjetivos acompanham sua biografia. Ou seu perfil. Traços tortos em mesas de bar, dos maledicentes, dos invejosos, dos que nada fazem ou escrevem. 

A primeira composição dele a me chegar aos olhos (antes de publicada, antes de incluída em livro) terá sido “Pluralia tantum”. Duas folhas de papel. Li-a com estranheza (admiração e susto). Que diabo era aquilo? Todos os plurais clássicos. Apenas isto. Mas me agradaram. Pela novidade, pela pesquisa, pela singularidade, pela ousadia. Nada de enredo, começo, meio e fim, protagonista, foco narrativo. Nada de usual da forma do conto. Muitos anos depois, conheci o livro Pluralia Tantum. E senti novo impacto. Mais forte, porque não mais um “texto” curto diferente de tudo, mas diversos “cantos” (não contos, não narrativas, não histórias como as que eu costumava ler) em linguagem renovada. E não só isso: a Bíblia, a mitologia grega, as lendas indígenas e da cultura negra brasileira, o candomblé, os orixás, as danças, a cultura de massas. 

Com Pluralia tantum, Gilmar se tornaria conhecido no microuniverso dos intelectuais (usava-se muito este termo) cearenses. Conhecido e admirado. Mais adiante, encontrei-o, por acaso, na Praça do Ferreira. Mostrou-me as provas de novo livro. Demonstrava euforia (nem tanto, porque não é de euforias), porque sabia da importância de sua obra. Pois, para espanto de todos, logo viria a lume o mais singular romance da segunda metade do século XX brasileiro: Parabélum. 

Gilmar se sabe homem de difícil trato. Reconhece: “Não devo ser dos mais fáceis. Faço análise, com interrupções, há 40 anos”. Vontade de mudar, de ser diferente do que é? “Talvez tenha pouca paciência com pessoas que tenham projetos diferentes dos meus. Não compreendo como o projeto de um escritor seja fazer parte de uma instituição anacrônica (como as academias de letras) fundada no século XIX. Não tenho paciência para Clube do Bode”. É verdade, as rodinhas literárias de Fortaleza estão repletas de pequenos escritores cujos sonhos maiores não são escrever obras fundamentais ou, pelo menos, de algum valor literário, mas ingressar na Academia Cearense de Letras. Ou aparecer nas páginas (colunas sociais) dos jornais da província.

Comigo o trato tem sido fácil. Conversamos como civilizados: índios do Cariri e da Serra de Baturité, negros, cafuzos, curibocas. Mas como podem julgá-lo de “difícil trato”, se não fala de ninguém, se não faz crítica literária? “Não tenho tempo para falar mal dos outros. O meu tempo é voltado para a pesquisa e a produção. Inclusive finais de semana”. Por isso, suas opiniões a respeito da literatura cearense não se tornam públicas. Prefere silenciar, embora tenha lá os seus ídolos. Gosta de Moreira Campos, Juarez Barroso e Gerardo Mello Mourão. E não esconde essa predileção. Mas quem não gosta deles? “Dos vivos, gosto muito de Marly Vasconcelos. Mas é difícil falar dos vivos”, confessou-me.

Dia desses fiz-lhe um pedido. Teria como me presentear o Parabélum e o Pluralia tantum? Não os encontramos mais nas livrarias e ambos me foram surrupiados de casa, por algum visitante inescrupuloso?

Gosto de ler Gilmar de Carvalho. Mas também de ouvir sua fala inteligente, plural. Gostaria de vê-lo mais. Entretanto, eu o tenho visto muito mais na televisão, a falar de cultura popular, em debates e homenagens, do que pessoalmente.  

            Fortaleza, janeiro de 2010.

Fonte:
http://www.niltomaciel.net.br/node/209

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