quinta-feira, 5 de julho de 2012

Lygia Bojunga Nunes (Corda Bamba) Parte 3– final


Maria, a personagem

 Maria, por ser apresentada como equilibrista de circo, por ter a característica de artista, pode suplantar a condição de criança, não ficando circunscrita apenas ao âmbito de sua faixa etária, podendo agir como profissional e vivenciar um problema de estado existencial.

 Desta forma, apresentando Maria com amnésia, devido ao choque sofrido quando presencia a morte dos pais no acidente no circo, o livro aborda o tratamento dado ao conflito da criança no interior da família. Do ângulo externo, a narrativa mostra os primeiros momentos da nova vida de Maria: a chegada à casa da avó, o aniversário de Quico, a conversa com Barbuda pelo orelhão, as aulas particulares, o relacionamento com os avós. Do ângulo interno, é apresentado o processo regressivo que a menina faz ao seu passado, antes mesmo da fase uterina, desvendando seus mistérios. O momento mais doloroso para Maria é a aceitação da morte dos pais, pois isso ocasiona um sentimento de culpa nela.

 Ao recuperar a memória, Maria liberta-se da culpa, pois percebe quem verdadeiramente ocasionara as dívidas contraídas pelos seus pais: sua avó. Assim, liberta-se também da influência dos pais, visto que, ao assumir a morte deles, livra-se simultaneamente do poder repressivo da avó e da lembrança opressiva ocasionada pela perda dos pais. Simbolicamente, trata-se da ruptura do cordão umbilical, representada pela corda bamba que leva Maria ao passado.

 Deste modo, Maria desprende-se do passado, pois consegue reconquistá-lo e planejar seu futuro, para vivê-lo autonomamente, buscando a emancipação perante os condicionamentos que os adultos lhe impõem e constituindo-se, portanto, num exemplo desse modelo emancipatório de representação familiar.

 Na obra, Maria defronta-se com vários modelos de família, por meio de diversos pais. Há seus pais verdadeiros, Márcia e Marcelo, representantes de uma família ideal que não exercem papéis de pais autoritários, cerceando a criança, mas a tratam com igualdade e respeito.

 Esse respeito também se percebe entre o casal Márcia e Marcelo. Eles formam o oposto da família em que um dos membros quer ser superior ao outro.

 Em contrapartida, após a morte dos pais, Maria passa a morar com sua avó, Dona Maria Cecília, mulher autoritária e repressora, e com Pedro, quarto marido de sua avó. O autoritarismo da avó já é percebido na relação entre mãe e filha, quando é narrado que Dona Maria Cecília manda e desmanda em Márcia, sem meias palavras, exercendo o papel de adulto autoritário, até o dia em que Márcia se apaixona por Marcelo e resolve seguir o seu caminho, segundo as suas concepções.

 Em relação à Maria, sua neta, Dona Maria Cecília também sempre usou de seu autoritarismo e de meios corruptos para tentar conquistá-la, como quando a raptou de seus pais.

 Separada dos pais, morando com a avó, é submetida a regime de clausura e vigilância, sendo suprida apenas com bens materiais.

 Não se observa durante determinadas passagens da narrativa em que Maria morou com a avó momento de carinho ou de compreensão, visto que Dona Maria Cecília reifica, monetariza a relação. O único desejo da menina é ir embora dali, fugir, se pudesse, conforme se pode perceber pelo pedido que ela faz, antes de apagar as velinhas do aniversário.

 Quando vem morar novamente com a avó, depois que os pais falecem, sente-se novamente solitária e enclausurada, e a relação entre ambas é conflituosa.

 A avó tenta desvincular Maria de suas raízes, de seu passado, do mundo circense. Tenta adaptá-la a uma nova vida, com outros valores, matriculando-a na escola, colocando na aula particular para igualá-la as outras crianças de sua idade. No entanto, embora esteja passando por um processo de amnésia, sem passado, sem identidade, Maria não deixa que os valores da avó se sobreponham aos seus.

 Assim, desde o primeiro momento em que chegou à sua casa, timidamente, vai desobedecendo sua avó, não permitindo que seus valores sejam anulados. Mesmo contrariando a avó, anda na corda bamba no meio da sala de seu apartamento e, além disso, resgata, por meios circenses, a sua identidade, libertando-se da prepotência da avó.

 Há ainda os pais substitutivos, Foguinho e Barbuda, pessoas amigas que, durante a ausência de Márcia e Marcelo, fizeram papel de seus pais e, na solidão de Maria, confortaram-na. Barbuda mostra-se amiga, compreensiva, tentando ajudá-la a resolver os problemas, como em relação à aula particular e ao cachorro, durante a conversa de orelhão. A relação do casal é também a de uma família ideal, ninguém querendo suplantar o outro, predominando o respeito mútuo entre as pessoas.

 Maria, estando em contato com vários modelos de família, após a morte dos pais consangüíneos, fica dividida entre o padrão de família autoritária e o de família democrática, solidária. Dona Maria Cecília é tanto representante da camada burguesa como símbolo de uma visão reificada do mundo. Barbuda e Foguinho são tanto representação da camada operária como símbolos de uma visão humanista do mundo. Desta forma, Maria acaba criando instrumentos para uma existência autônoma, decorrente de sua maturidade interior, emancipando-se dos valores ideológicos do adulto.

 Percebe-se, portanto, que Bojunga opta pelo modelo familiar emancipatório em Corda bamba. Escolhendo este modelo, a autora dá ênfase à emancipação do ser humano, reforçando a luta pela liberdade. Dessa forma, nota-se que o texto não assume postura pedagógica, mas promove o questionamento dos valores transmitidos, cabendo ao leitor fazer a escolha e com isso atenuando-se bastante a assimetria adulto/criança.

 Maria é apresentada vivendo na “corda bamba”, em tensão entre consciência e subconsciência. A corda esticada simboliza essa tensão.

 Inicialmente, aparece como menina tímida, insegura, com medo de enfrentar a realidade, pois se sente culpada pela morte dos seus pais. No seu entender, ela é a causadora da morte dos pais, conforme já foi comentado. Entretanto, no decorrer da narrativa, percebe-se a sua capacidade de superar o medo, para vencer os obstáculos, para recuperar a identidade perdida, mesmo inconscientemente.

 Ela não é uma personagem com perfil plano, acabado. Os seus traços pertinentes vão sendo esboçados no decorrer da ação, as suas transformações, registradas aos poucos.

 Essa busca da identidade perdida materializa-se pela idéia da invenção, por meio da criação, pela fantasia. No caso de Corda bamba, isso ocorre por intermédio dos sonhos, da imaginação. O sono é o remédio para o tratamento da amnésia de Maria, pois o sonho funciona como processo terapêutico natural de cura, visto que Maria supera os traumas por meio do sonho. Desta forma o esquecimento será substituído pela recordação por intermédio do mesmo remédio: o sono.

 O primeiro acontecimento que faz Maria recordar o passado é o voltar a andar na corda bamba, no apartamento de sua avó, durante o aniversário de Quico.

 O fato de voltar à corda bamba na casa da avó, permite à Maria um mergulho no seu subconsciente para trazer à tona, a memória perdida do que se passou.

 Verifica-se, nas produções de Lygia Bojunga Nunes, que a arte é apontada como uma atividade capaz de proporcionar a realização do ser humano, como uma atividade prospectiva que auxiliará na solução dos conflitos, promovendo novas significações e trazendo à tona forças antigas. Em Corda bamba, o circo adquire essa função: a de liberar as tensões de Maria, para fazê-la integrar-se ao grupo social, livre dos conflitos existenciais, visto que, utilizando-se de instrumentos circenses, Maria inicia uma volta ao passado, para resgatar a memória perdida.

 Para poder libertar-se da culpa, necessita reviver o passado, resgatá-lo e dar sentido à vida. Para consegui-lo, Maria entra em um processo de regressão, que a leva além da vida intra-uterina e, por meio da linha do tempo, revisita fatos marcantes de seu passado. A trajetória dessa caminhada, a história do seu passado, os acontecimentos vividos por ela e por seus pais são revelados a Maria e ao leitor de forma altamente simbólica e narrados no plano do imaginário, no mundo interior de Maria, no seu subconsciente.

 O processo de recordação do passado de Maria acontece em estado de letargia, por meio dos sonhos, como se ela estivesse hipnotizada, e pela linha do tempo, simbolizada pela corda, Maria começa sua regressão. No entanto, os primeiros indícios de que Maria entrará em processo de recuperação de sua memória acontecem logo após ela ter andado na corda a pedido das crianças, pois quando sua avó a leva para mostrar o quarto em que ficará, o que chama a sua atenção é a janela, sua vista de fora e a altura. Era como se o fato de ter andado na corda, a sensação de altura, olhando a paisagem de fora do apartamento, tivesse desencadeado lembranças esquecidas do passado.

 Nos dias que se seguem, o lugar preferido de Maria no apartamento da avó é a janela do seu quarto. Passava a maior parte do tempo debruçada nela, olhando um pátio interno. A visão que tinha era da área interna dos edifícios vizinhos, não era uma vista bonita, e nada de extraordinário havia; porém, algo chama a sua atenção: é uma janela diferente, com um andaime pendurado em sua frente, arredondada em cima como um arco, que ficava aberta dia e noite e sempre vazia.

 A insistência nessa visão pode ser interpretada como tentativas de rememorar fatos obscuros em sua mente. A janela em forma de arco na parte superior faz com que ela a associe ao arco de flor, à altura, ao trapézio, elementos circenses que os pais, trapezistas de circo, utilizavam ao realizar o espetáculo. Contudo, em estado de vigília, Maria não consegue relembrar os fatos pretéritos; é necessário entrar em estado onírico. Assim, o primeiro processo de recuperação de sua memória inicia-se por meio de Quico, que sonha o desejo de Maria. Ela conta ao seu primo que gostaria de, um dia, ver de perto a janela diferente do prédio vizinho, com forma de arco em cima. Desse modo, Quico, em sonho, vê Maria pegar a corda que ganhou de seu Pedro e laçar a antena de televisão do prédio bem em frente, no intuito de fixá-la, e principiar seu “passeio”.

 O relato de como Maria faz suas viagens ao passado gera ambigüidade entre o real e o imaginário, que se mantém durante toda narrativa, reforçando a qualidade estética da obra. Essa imprecisão é acentuada na narrativa, visto que os outros passeios de Maria acontecem logo após o seu despertar. Além disso, essas incursões ao passado são intercaladas com o tempo presente da diegese. No sonho, Maria se “vê”, ao mesmo tempo, como sujeito e objeto. Maria (sujeito), ao reviver a sua história, entra dentro do sonho e se “vê” no tempo passado, com sua idade atual, e avista outra menina (objeto) que é ela mesma, na fase que está rememorando: no ato do nascimento, aos 4, aos 7 e aos 10 anos, quando se “encontra”.

 Esticar a corda até o prédio vizinho significa “fazer a volta ao passado”, ao seu interior, pois é por meio da corda que Maria volta à sua vida pretérita para rememorar fases dela e libertar-se de seus traumas, edificando a sua vida. A corda representa o vínculo entre o presente e o passado e também entre o presente e o futuro, pois ata as pontas de sua vida (presente / passado / futuro), além de ligar o real e o imaginário, dando-lhe unidade e equilíbrio para solucionar seu conflito.

 Além da corda, há também outro instrumento de trabalho de Maria que a ajudará no processo de recuperação da memória: o arco. Este representa o instrumento que permite o equilíbrio na corda e a mobilidade a Maria e possui sentido de ligação devido à sua natureza circular, simbolizando a condição de a heroína manter-se sobre seus próprios pés. Maria, para atar os três momentos de existência e alcançar a plenitude de sua vida, faz dois movimentos circulares, revelando o percurso existencial da mesma: um do presente para o passado, durante o processo de recordação do período esquecido; outro, do presente para o futuro, quando então o pretérito, esquecido, já está incorporado à sua consciência, para projetar o seu destino Assim, retrocedendo na linha do tempo, Maria vai em direção à janela que chama sua atenção. Essa janela carrega toda uma simbologia, é como se fosse uma luz no fundo do túnel, para conduzi-la ao início de sua caminhada no inconsciente.

 Na sua viagem ao inconsciente, a primeira revelação ocorre no andaime. Nesse lugar, ela vê seus pais e vem a saber como eles se conheceram e começaram a namorar, além de se informar das diferenças sociais e econômicas dos dois. Como a corda leva Maria à fase anterior à vida intra-uterina, ela simboliza também o cordão umbilical, e o andaime, o útero, visto que é o local onde tudo se inicia, o começo da vida de Maria. Além disso, a partir do andaime, adentrando pela janela, Maria será levada a um corredor comprido ladeado por seis portas fechadas, uma de cada cor. O corredor comprido tem toda simbologia da viagem que Maria fará em seu interior, no seu inconsciente, e as portas coloridas, cada fase de sua vida, os diferentes momentos de sua existência.

 Portanto, analisando o percurso que Maria realiza, pode-se concluir que ela, ao passar pela janela, inicia sua incursão ao mundo desconhecido do inconsciente em que, ao rever as imagens do passado, adquire o conhecimento pleno de si mesma. A sua travessia pela janela constitui um ritual de iniciação, possibilitando o trânsito para o conhecimento do seu passado e a recuperação de sua memória, ao contemplar as cenas esquecidas que são exibidas nos quartos do prédio visitado.

Linguagem

 A linguagem utilizada por Bojunga em Corda bamba é predominantemente simbólica, fala por imagens e consegue comunicar as idéias abstratas. Por meio da análise dos elementos simbólicos vistos, percebe-se que a utilização dos símbolos é medular na obra. Tem o objetivo de ilustrar o elemento psicológico por meio do significado nele contido, visto que a trama principal da narrativa acontece na mente da protagonista, cenário de representação dos seus conflitos.

 Assim, desde a forma como o texto está estruturado até os pequenos objetos presentes na narrativa, tudo tem significação simbólica no texto, como ocorre nos contos de fadas. A estruturação fragmentada simboliza a própria vida conflitante de Maria, que se encontrava em pedaços após a morte dos pais. Ela se vê sem passado e sem futuro e, a partir do momento presente, reconstrói a vida passada para poder construir o futuro. Esse reconstruir e construir é realizado na sua mente, no espaço psicológico, recorrendo-se às imagens, à linguagem figurada, ao símbolo.

 Fonte: 
Alice Atsuko Matsuda Pauli - Dissertação de Mestrado - Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. Disponível em Passeiweb 

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