sábado, 7 de julho de 2012

Mariana Portela (A Casa da Poesia)


“É triste explicar um poema. É inútil também. Um poema não se explica. É como um soco. E, se for perfeito, te alimenta para toda a vida. Um soco certamente te acorda e, se for em cheio, faz cair tua máscara, essa frívola, repugnante, empolada máscara que tentamos manter para atrair ou assustar. Se pelo menos um amante da poesia foi atingido e levantou de cara limpa depois de ler minhas esbraseadas evidências líricas, escreva, apenas isso: fui atingido. E aí sim vou beber, porque há de ser festa aquilo que na Terra me pareceu exílio: o ofício de Poeta.”
Hilda Hilst em Cascos & Carícias & Outras Crônicas

 Mais um gole de vinho, só mais um, e irei. Um único retoque na palavra difícil de pronunciar. Mais um cigarro, são apenas cinco minutos, no máximo, se eu estivesse calma. Por que me dilaceras assim, poesia maldita, no átomo iminente que divide o papel à minha própria voz?

 Este silêncio, inoportuno, que transita em meus lábios, glaciais. Ah, como o olhar dos outros parece destoar de nossa cândida comunhão! Serei capaz de dizer algo depois de presenciar este estrondoso espetáculo de erros?

 Palavras fazem, pois, cócegas dentro de mim. Invadem a corrente sanguínea até as maçãs da face. Irrompem os medos, taciturnos, exaustos da batalha. A língua percorre os versos, inauditos até então, como se eu fosse uma mera escrava, um instrumento juvenil pelo qual o lirismo pudesse habitar, sem fazer cerimônias.

 As mãos deduram o enervamento dos poros. Trêmulas. Infantes. Não se dão conta de que por detrás dos palcos existem palmas silenciosas, cobertas de coragem ontológica.

 São apenas dois, três, cinco minutos. É tempo bastante para se alcançar a nueza absoluta, não o mero subterfúgio da carne.

 Toda fragilidade é um modo de tocar o mundo, evitando dissolver-se pelos ares ― isso eu aprendi tarde demais. A entrega ao Cosmos nos faz saber quais são nossos verdadeiros contornos. Estamos todos vivenciando nossa intimidade em risco.

 Ainda bem.

 Seria a poética a nudez primeira das linguagens humanas?

 E o planeta um grande manicômio, à espera de médicos que transladem maneiras de apaziguar os incômodos existenciais, intraduzíveis?

 Saraus foram preparados para salvar-nos da lucidez.

Ah, se eu fosse capaz de remontá-los todos, em varais suspensos da memória. Quanta alegria me remetem essas centelhas galácticas de plenitude.

 Reencontrar o devaneio morto.

 Reacender as estranhezas.

 Doar-se ao inusitado.

 Compartilhar o amadorismo, tão mais próximo ao viver.

 Sem ensaios.

 Tudo alimenta e nada faz muito sentido. Uma reunião de pessoas absurdas, obtusas, vaidosas ou plácidas.

 Margens de encostas, avenidas possíveis, andares dispersos. Atalhos inviáveis. E tudo brilhando, vívido, sem realeza alguma. Todos reis, em plena subserviência àquilo que é nítido.

 E a noite se aquieta para ouvir, estupefata, os versos hibernados de um sonhador incompreendido. E a noite se aquieta para projetar os lamentos da menina que sorri, ao confessar o amor que perdeu. E a noite se aquieta para dominar a timidez hesitante do arrogante de plateias.

 As madrugadas apagam os clichês que temes em te pautar, amada poesia.

 Nestes serões, concebidos para ti, nada resta senão a doçura dos gestos, desanuviar das âncoras.

 Plana por estas tardes, germinando o cerne das paixões.

 Enclausura os pavores que sombreiam a reciprocidade.

 Deixa o seio farto de canções inéditas.

 Abençoa minha íris para atender ao insólito.

 Dê a todos os expatriados de quimeras céus excessivamente azuis, como em Lisboa.

 A arte é uma casa que resiste às tempestades da vida ordinária.

 E por isso, imploro a ti: põe raízes nos meus sonhos, para que eu possa vê-los florescer.

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