Para a Margarida e para a Pilar, sem outro sentir que não o do bem-me-quer.
Toda a gente sabe, ou se não sabe devia saber, que os reinos das bruxas e das fadas existem bem perto de nós. Só quem tem coração de pedra é que os não vê.
Ora num desses reinos havia uma bruxinha que, desde muito pequena, se habituara a brincar ao esconde-esconde com uma pequena fada do reino vizinho.
Isto acontecia porque, claro está, nenhuma das famílias tinha conhecimento de tal facto insólito.
Encontravam-se as duas nos limites dos respectivos reinos, escondidas entre os carvalhos e os abetos que serviam de fronteira. Era um regalo vê-las juntas, como se este mundo fosse um só: a fada sempre vestida de cor-de-rosa, asas de tule a esvoaçar ao vento e uma varinha de condão que era a prova incontestável de que ela era realmente uma fada.
A bruxinha, essa vestia sempre de negro, uma túnica que quase lhe chegava aos pés e um chapéu de alto bico que, dada a sua tenra idade, lhe tombava para o lado, sem, porém, nunca lhe ter caído.
Cavalgava, não uma vassoura de piaçaba, mas um modelo mais recente, semi-a-jacto, que seus pais lhe haviam dado pelo seu último aniversário.
Saladina, a bruxa, e Gilda, a fada, voavam por entre as árvores sem lhes tocar, faziam piruetas de sobe-e-desce, e passavam tangentes às corujas e às andorinhas sem nunca, mas nunca, terem tido o menor acidente.
Quando, porém, chegou o dia de frequentarem as respectivas escolas, cada uma seguiu o seu caminho e o tempo para as brincadeiras acabou-se para tristeza de ambas. E nunca mais Saladina viu Gilda. E nunca mais Gilda viu Saladina.
Os anos foram passando, no calendário das bruxas e das fadas, que por acaso é o mesmo, até que um dia Saladina completou o décimo segundo ano e teve de escolher uma profissão: queria ser doutora, mas doutora-médica.
Os pais pasmaram com tamanha pretensão.
.Que bruxa és tu, minha filha! . dizia o pai.
.Querer ser médica? . interrogava-se a mãe.
.Mas, afinal, tu és uma bruxa ou uma fada? . questionavam ambos.
Saladina estremeceu. Será que alguém tinha descoberto o seu segredo de há tantos anos? Que seria feito de Gilda? Não, não era possível. Além de tudo isso ela tinha a certeza que era uma bruxa de pele e osso e ninguém conseguiria demovê-la de seus intentos.
E assim foi. Entre o choro da mãe e o olhar reprovador do pai, lá seguiu para a Grande Escola de Medicina que ficava no reino dos humanos, pois no país das bruxas só havia a Escola Superior de Feitiços e de Magia.
Para trás ficou a túnica negra, o chapéu alto e a vassoura semi-a-jacto. Ficou também a mágoa não só da família, mas de toda a comunidade, que estas notícias espalham-se depressa e ferem a honra. Sim, que as bruxas também têm honra!
Depressa acabou Saladina o seu curso. Aluna brilhante, nunca reprovou nenhum ano e quando se viu com o diploma na mão, não cabia em si de felicidade. Só havia um problema: que fazer agora? Como iriam seus pais recebê-la?
Quando bateu de mansinho à porta de sua casa, o nº 13 da Rua da Assombração, o seu coração de bruxa, pela primeira vez, fraquejou. E, apesar de a terem deixado entrar, logo sentiu que a sua atitude não fora perdoada.
.És a vergonha das bruxas! . disse-lhe o pai. . Mas és feitiço do meu feitiço. Podes ficar nesta casa, embora sejas pouco digna das teias de aranha que te cobrem a cama.
Foi neste ambiente que Saladina se aventurou a abrir o seu consultório. Tudo a rigor, como aprendera com os humanos. À entrada, um letreiro que dizia:
DRª SALADINA
Médica Para Todos Os Males
Pouca sorte tinha esta nossa amiguinha. Ninguém lhe batia à porta, nem ninguém lhe marcava uma consulta que fosse. Nem uma assistente conseguira arranjar.
Resolveu, então, na esperança de aparecer alguma emergência, mudar-se de vez para o seu consultório. Ali dormia, ali comia e ali ia espreitando pelas cortinas esfarrapadas da janela, na ânsia de que alguém necessitasse da sua prestimosa sabedoria.
Ora, uma bela noite de lua nova, estando Saladina a contemplar as constelações, apercebeu-se de grande alvoroço no céu. Luzes para aqui, luzes para acolá e um pó dourado que se espalhava por todo o lado. De repente começa a ouvir gritinhos de todas as bruxas e bruxos que deambulavam pela rua e que tombavam no chão como cerejas maduras.
Saladina não pensou duas vezes: toca a recolher os doentes no seu consultório. Os que ainda se conseguiam manter de pé, entravam a correr, tamanha era a sua aflição. Queriam lá saber se ela era a Drª Saladina! Só queriam cura para doença tão súbita e estranha.
Saladina teve necessidade de se concentrar. Sim, porque havia já algum tempo que não praticava. Curou as feridas que viu, ligou os entorses como muito bem aprendera e esperou que os doentes acordassem. Nada. Não acontecia nada. Então Saladina, sem perceber como, ergueu os braços e começou a praguejar:
Afasta-te pó de fada,
Renego teu perfume já.
Xô, xô, penugem de tule,
Abracadabra, já está!
Como por magia, todos acordaram. Quando se aperceberam de quem os tinha salvo, nem queriam acreditar. Muito a medo, lá foram agradecendo à doutora-médica. E envergonhados, saíam fazendo vénias, sem ousar voltar as costas!
Nos jornais do dia seguinte, a nossa amiga era figura de destaque. Que tinha sido corajosa enfrentando aquela epidemia misteriosa. Que até os bruxos mágicos haviam recorrido aos seus serviços.
E nos televisores a notícia repetia-se constantemente, em emissões de última hora.
Quem não entendia muito bem este fenómeno era a própria Saladina, que ainda hoje está para saber como lhe foram sair tais palavras da boca.
O que ela também não sabe é que, naquele dia, os Serviços Secretos do Reino das Bruxas tinham registado uma invasão do seu espaço aéreo por um pelotão de fadas, comandado por Gilda, mais conhecida no meio da espionagem por Agente Secreto Zero-Zero-Pó-Dourado.
Claro está que este facto não veio nos jornais e permaneceu fechado a setenta chaves no cofre dos segredos da bruxa reinante.
Quando passarem por aquela rua além, aquela logo ali acima, se estiverem atentos, poderão ver a fila de clientes que Saladina tem à porta do consultório.
E talvez, com um pouco de sorte, consigam vislumbrar um vulto cor-de-rosa que esvoaça levemente sobre o edifício para não ser detectado pelos radares do reino.
Quem poderá ser?
Pois se virem tudo isto, não se assustem. É que, bem perto de nós, há o Reino das Bruxas e o Reino das Fadas. E só não os vê quem não quer, ou quem tem coração de pedra.
Fonte:
LOPES, Maria Teresa. Histórias Que Acabam Aqui (ilustrações de Sara Costa). Edições ArcosOnline.com (www.arcosonline.com), abril de 2005.
Toda a gente sabe, ou se não sabe devia saber, que os reinos das bruxas e das fadas existem bem perto de nós. Só quem tem coração de pedra é que os não vê.
Ora num desses reinos havia uma bruxinha que, desde muito pequena, se habituara a brincar ao esconde-esconde com uma pequena fada do reino vizinho.
Isto acontecia porque, claro está, nenhuma das famílias tinha conhecimento de tal facto insólito.
Encontravam-se as duas nos limites dos respectivos reinos, escondidas entre os carvalhos e os abetos que serviam de fronteira. Era um regalo vê-las juntas, como se este mundo fosse um só: a fada sempre vestida de cor-de-rosa, asas de tule a esvoaçar ao vento e uma varinha de condão que era a prova incontestável de que ela era realmente uma fada.
A bruxinha, essa vestia sempre de negro, uma túnica que quase lhe chegava aos pés e um chapéu de alto bico que, dada a sua tenra idade, lhe tombava para o lado, sem, porém, nunca lhe ter caído.
Cavalgava, não uma vassoura de piaçaba, mas um modelo mais recente, semi-a-jacto, que seus pais lhe haviam dado pelo seu último aniversário.
Saladina, a bruxa, e Gilda, a fada, voavam por entre as árvores sem lhes tocar, faziam piruetas de sobe-e-desce, e passavam tangentes às corujas e às andorinhas sem nunca, mas nunca, terem tido o menor acidente.
Quando, porém, chegou o dia de frequentarem as respectivas escolas, cada uma seguiu o seu caminho e o tempo para as brincadeiras acabou-se para tristeza de ambas. E nunca mais Saladina viu Gilda. E nunca mais Gilda viu Saladina.
Os anos foram passando, no calendário das bruxas e das fadas, que por acaso é o mesmo, até que um dia Saladina completou o décimo segundo ano e teve de escolher uma profissão: queria ser doutora, mas doutora-médica.
Os pais pasmaram com tamanha pretensão.
.Que bruxa és tu, minha filha! . dizia o pai.
.Querer ser médica? . interrogava-se a mãe.
.Mas, afinal, tu és uma bruxa ou uma fada? . questionavam ambos.
Saladina estremeceu. Será que alguém tinha descoberto o seu segredo de há tantos anos? Que seria feito de Gilda? Não, não era possível. Além de tudo isso ela tinha a certeza que era uma bruxa de pele e osso e ninguém conseguiria demovê-la de seus intentos.
E assim foi. Entre o choro da mãe e o olhar reprovador do pai, lá seguiu para a Grande Escola de Medicina que ficava no reino dos humanos, pois no país das bruxas só havia a Escola Superior de Feitiços e de Magia.
Para trás ficou a túnica negra, o chapéu alto e a vassoura semi-a-jacto. Ficou também a mágoa não só da família, mas de toda a comunidade, que estas notícias espalham-se depressa e ferem a honra. Sim, que as bruxas também têm honra!
Depressa acabou Saladina o seu curso. Aluna brilhante, nunca reprovou nenhum ano e quando se viu com o diploma na mão, não cabia em si de felicidade. Só havia um problema: que fazer agora? Como iriam seus pais recebê-la?
Quando bateu de mansinho à porta de sua casa, o nº 13 da Rua da Assombração, o seu coração de bruxa, pela primeira vez, fraquejou. E, apesar de a terem deixado entrar, logo sentiu que a sua atitude não fora perdoada.
.És a vergonha das bruxas! . disse-lhe o pai. . Mas és feitiço do meu feitiço. Podes ficar nesta casa, embora sejas pouco digna das teias de aranha que te cobrem a cama.
Foi neste ambiente que Saladina se aventurou a abrir o seu consultório. Tudo a rigor, como aprendera com os humanos. À entrada, um letreiro que dizia:
DRª SALADINA
Médica Para Todos Os Males
Pouca sorte tinha esta nossa amiguinha. Ninguém lhe batia à porta, nem ninguém lhe marcava uma consulta que fosse. Nem uma assistente conseguira arranjar.
Resolveu, então, na esperança de aparecer alguma emergência, mudar-se de vez para o seu consultório. Ali dormia, ali comia e ali ia espreitando pelas cortinas esfarrapadas da janela, na ânsia de que alguém necessitasse da sua prestimosa sabedoria.
Ora, uma bela noite de lua nova, estando Saladina a contemplar as constelações, apercebeu-se de grande alvoroço no céu. Luzes para aqui, luzes para acolá e um pó dourado que se espalhava por todo o lado. De repente começa a ouvir gritinhos de todas as bruxas e bruxos que deambulavam pela rua e que tombavam no chão como cerejas maduras.
Saladina não pensou duas vezes: toca a recolher os doentes no seu consultório. Os que ainda se conseguiam manter de pé, entravam a correr, tamanha era a sua aflição. Queriam lá saber se ela era a Drª Saladina! Só queriam cura para doença tão súbita e estranha.
Saladina teve necessidade de se concentrar. Sim, porque havia já algum tempo que não praticava. Curou as feridas que viu, ligou os entorses como muito bem aprendera e esperou que os doentes acordassem. Nada. Não acontecia nada. Então Saladina, sem perceber como, ergueu os braços e começou a praguejar:
Afasta-te pó de fada,
Renego teu perfume já.
Xô, xô, penugem de tule,
Abracadabra, já está!
Como por magia, todos acordaram. Quando se aperceberam de quem os tinha salvo, nem queriam acreditar. Muito a medo, lá foram agradecendo à doutora-médica. E envergonhados, saíam fazendo vénias, sem ousar voltar as costas!
Nos jornais do dia seguinte, a nossa amiga era figura de destaque. Que tinha sido corajosa enfrentando aquela epidemia misteriosa. Que até os bruxos mágicos haviam recorrido aos seus serviços.
E nos televisores a notícia repetia-se constantemente, em emissões de última hora.
Quem não entendia muito bem este fenómeno era a própria Saladina, que ainda hoje está para saber como lhe foram sair tais palavras da boca.
O que ela também não sabe é que, naquele dia, os Serviços Secretos do Reino das Bruxas tinham registado uma invasão do seu espaço aéreo por um pelotão de fadas, comandado por Gilda, mais conhecida no meio da espionagem por Agente Secreto Zero-Zero-Pó-Dourado.
Claro está que este facto não veio nos jornais e permaneceu fechado a setenta chaves no cofre dos segredos da bruxa reinante.
Quando passarem por aquela rua além, aquela logo ali acima, se estiverem atentos, poderão ver a fila de clientes que Saladina tem à porta do consultório.
E talvez, com um pouco de sorte, consigam vislumbrar um vulto cor-de-rosa que esvoaça levemente sobre o edifício para não ser detectado pelos radares do reino.
Quem poderá ser?
Pois se virem tudo isto, não se assustem. É que, bem perto de nós, há o Reino das Bruxas e o Reino das Fadas. E só não os vê quem não quer, ou quem tem coração de pedra.
Fonte:
LOPES, Maria Teresa. Histórias Que Acabam Aqui (ilustrações de Sara Costa). Edições ArcosOnline.com (www.arcosonline.com), abril de 2005.
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